Estado nacional nunca assegurou os direitos que poderiam constituir uma nação. No vácuo aberto por sua ausência, atuou sempre o cristianismo. E vale reparar: nunca o jesuíta colonial foi tão semelhante a certos pastores…
Por: Fran Alavina
Talvez as principais perguntas que devamos fazer, neste momento cruento de nossas piores tensões sociais (não nos iludamos, estas tensões e confrontos não podem ser extirpadas com o sopro de uma eleição!), são questões urgentes que sempre acompanham as mais diversas tentativas de construção da identidade nacional, uma pergunta que nunca foi bem respondida: o que é o Brasil? E, por conseguinte, por que as tentativas de uma concepção de nação e sentimento nacional sempre tendem ao discurso da religião dominante socialmente?
Nos últimos meses falamos, com certo ar de esperança caduca: refundação e reconstrução! Há dez anos, o jargão político da vez era repactuação: “é preciso repactuar!”. Se esquecia, contudo, que para haver repactuação, era necessário que as classes quisessem um novo pacto. Contudo, nem todas o queriam. Não queriam, e nem querem (Sim, fingimos que repactuamos!). Pois a classe que quebra o pacto impunemente, se vê maior e mais forte que ele. Logo, não irá repactuar, a menos que seja constrangida por elementos mais fortes, ou de mesma densidade política. E até agora não foram!
Refundação seria se tivesse acontecido uma legítima fundação: essa nunca houve. Já se disse, a formação do Estado nacional foi feita à revelia da maioria dos atores sociais. Ademais, o nosso Estado nacional jamais conseguiu induzir um bom caminho de estabelecimento da nação.
Se nos remetermos diretamente ao período de formação da nossa burocracia nacional e nossas primeiras concepções de nação, fica-se com a desconfiança de que a única coisa constante destas nossas concepções de nacionalidade é a tentativa de buscar sempre uma, pois, de fato, todas as que tivemos e temos são mal-ajambradas.
Também reconstrução não pode ser ainda, pois os escombros da má construção da nação caem o tempo todo sobre nós, e das mais diferentes maneiras. Não me refiro aqui aos remendos que serão feitos para que o tecido burocrático do Estado nacional não fique tão nu e possa assegurar direitos.
Refiro-me a algo tão importante quanto, mas que estamos deixando passar. Deixando, porque nos contentamos, mesmo à esquerda, com as seduções do marketing político/eleitoral. As novas roupagens das fórmulas de um passado recente não nos livrarão da questão fundamental: é preciso que ao responder à pergunta “O que é Brasil?” sejamos capazes de começar a tecer uma nova concepção de nação – a primeira que não seja segregacionista, autoritária e/ou feita nos gabinetes. Isso, a burocracia de um partido não é capaz de induzir. Nem eu estou propondo como fazer, leitor. Proponho que façamos o bom diagnóstico.
Qualquer um que observe com as lentes do bom senso a nossa história, desde a invenção do nosso “Estado Nacional”, verá que a trajetória da construção de nossa identidade nacional possui uma pauta constante: essa identidade passa por crises cíclicas. E, em tais crises, sempre se renovam os mitos da nossa má fundação, que foram mantidos das mais diferentes formas. Se essa identidade passa por crises cíclicas, isto é o principal sintoma de que nossa formação nacional, na verdade, é uma deformação. Deformada desde a origem, sempre se põe de pé como um espantalho.
Esta má fundação que engendra estas crises cíclicas, é uma hemorragia sempre tapada, nunca estancada. Como o Estado nacional é incapaz de induzir a devida concepção de nação, ainda que sempre tenha buscado estabelecer várias, desde o império, sobra material aos fundamentalistas religiosos: tecem este pano e o jogam sobre nós, atravessando as noções de cidadania e fé; ação política e proselitismo religioso. Nunca o jesuíta colonial foi tão semelhante a certos pastores. Ainda não se dimensionou bem, como aquela ação colonial catequética determina o modo de ser religioso do brasileiro até hoje.
É impossível entender a sacralização da política e a profanação da fé hoje, sem entender que desde a gênese nacional Igreja e Estado estavam em conluio; e nunca deixaram de estar completamente, só mudando as vias. Quando as lentes se voltam à boa compreensão histórica, a presença dos atores religiosos na política hoje não será uma questão de estupefação: como se tudo tivesse brotado do puro vácuo social. Não basta dizer “as igrejas evangélicas ocupam nas comunidades e bairros periféricos o vácuo que o Estado deixa”. Isso é apenas parte da questão.
Mas se na nossa história igreja e Estado sempre estiveram em conluio, formando a religiosidade política nacional, porque a estupefação? Por que estes atores não iriam querer o protagonismo político, se isto é uma de nossas tradições? E se o mito da má fundação nacional sempre se vinculou à religião? No combo da mistura entre religião e política, ganha-se não só uma fé, mas um pertencimento a uma nação. Daí o bom brasileiro ser, desde sempre, aquele que expressa alguma faceta da religião socialmente dominante.
Neste caso, é preciso pensar que a concepção de Estado laico e de tolerância religiosa, tal como nos chegou da Europa, é inadequada para uma compreensão, portanto incapaz de contribuir para uma resolução da nossa questão nacional. Somos o único Estado moderno de grandes proporções no ocidente em que a questão da tolerância remete não apenas às diferenças entres cristãos, pois há entre nós um largo número de modos distintos de expressar a fé, há diferentes religiões não cristãs, e uma que ainda tenta sincretizar essa diferença entres cristãos e não cristãos.
Sempre ouvimos no passado, dos grupos fundamentalistas: o Brasil é uma pátria católica, um país cristão (por muito tempo se repetia: o Brasil é o maior país católico do mundo), tanto que para alguns nossa história como nação começa com a celebração da primeira missa pela esquadra de Cabral.
Depois, ouvimos com o avanço do movimento protestante que o Brasil é uma nação cristã, expressa por exemplo no movimento Brasil para Cristo. Daí não é simples delírio coletivo que hoje façam parte do kit patriota raiz, junto com a camisa da CBF, um rosário, ou uma bíblia. Contudo, nos perguntamos: se isso é preciso ser sempre dito, reforçado por toda nossa história, não seria porque o Brasil nunca foi, de fato, um país cristão? Não é a repetição discursiva uma das marcas das carências mais determinantes? Sendo preciso repetir isso constantemente, é porque se trata de algo não tangível na realidade.
O discurso Brasil: pátria cristã é sociologicamente um mito de fundação, uma forma de moldar uma imagem fantástica das origens civis dessa parte do mundo. Donde as camisas da seleção que vemos nas ruas nos últimos tempos não se explicam por acaso, e não são simplesmente delírio coletivo dos indivíduos. Expressam o pretenso mito da verdadeira nação, desfilando pelas ruas. Ora, como esse país pode ser chamado de “país cristão” se existe uma infinidade de ritos e religiões diferentes? Tal só pode ocorrer no interior de um discurso totalitário.
Donde, estarmos certos que a tradição autoritária nacional que hoje é fascistização, na qual os grupos fundamentalistas evangélicos, católicos e kardecistas são a correia de transmissão, será uma constante na nossa história, pois já sabemos as crises de identidade nacional são cíclicas. Ademais, será uma constante sempre piorada nos próximos anos, se já não se começar a tecer a boa fundação no plano simbólico. Os patriotas fascistas requentam todo dia, nos piores afetos, o mau mito de fundação. Apenas mostrar a incoerência dos nossos mitos de fundação não é tudo. Daí ser preciso continuar perguntando: o que é o Brasil?
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o-que-e-o-brasil-religiao-e-identidade-nacional/
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