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Quem limita a difusão da ciência e do saber

Relato de um conflito oculto. Mega-editoras multiplicam lucros cobrando pelo acesso a pesquisas científicas, financiadas pelos Estados. Cientistas reagem com o movimento Acesso Aberto. Até onde irá a mercantilização do trabalho intelectual?

Por: Marcos Barbosa de Oliveira | Imagem: Davide Bonazzi/Salzman Art

Título original: Neoliberalismo e Direitos de Propriedade Intelectual na ciência e tecnologia

Por que o neoliberalismo promove os Direitos de Propriedade Intelectual, apesar do caráter monopolista do sistema, contraditório com o princípio do livre-comércio? Como os neoliberais lidam com a contradição entre o financiamento público da pesquisa científica e a doutrina do Estado mínimo? De que modo as políticas científicas neoliberais buscam colocar nas mãos do mercado a determinação dos rumos das pesquisa científica? Quais são as estratégias das editoras de revistas científicas para fazer com que atuem como parasitas, sugando recursos financeiros da comunidade científica? Por que têm sido frustrantes os resultados do movimento em prol do Acesso Aberto?

Essas são as perguntas que este ensaio procura responder.

1. O neoliberalismo e a mercantilização dos bens intelectuais

As operações de compra e venda, próprias da mercadoria, pressupõem a propriedade privada. Em contraste com os bens materiais, os bens intelectuais, sendo abstratos, têm certas peculiaridades, as quais são responsáveis pelo fato de que a instauração da propriedade em relação a eles requer um dispositivo jurídico específico – a saber, o dos Direitos de Propriedade Intelectual (DPI). Os DPI mercantilizam os bens intelectuais, isto é, fazem deles possíveis objetos de compra e venda. Dividem-se em dois grandes ramos: o da propriedade industrial – que inclui vários tipos de patentes, marcas, desenhos (designs) industriais, indicações geográficas de origem, e outros – e o dos direitos autorais e direitos conexos.

Os precursores das patentes e direitos autorais compartilham as mesmas época e região de surgimento: ambos tiveram origem durante o Renascimento, nas repúblicas de Florença e Veneza. A primeira patente da qual se tem registro escrito foi concedida em Florença, em 1421, a Filippo Brunelleschi, para um novo tipo de embarcação adequado ao transporte de cargas. Essa concessão é em geral considerada o marco do surgimento das patentes. O marco análogo na história dos direitos autorais foi a concessão, a John of Spyer, em 1469, da exclusividade no uso da imprensa em Veneza. A partir dessas origens, as práticas de concessão de patentes e licenças exclusivas para a impressão de livros foram se difundindo pela Europa, depois pelos Estados Unidos, e aos poucos pelo mundo todo. Além de se difundirem, elas foram se transformando ao longo do tempo, aproximando-se por etapas da forma que têm hoje1

Entre os defensores dos DPI, destacam-se nas últimas décadas os neoliberais. O problema mais sério que eles enfrentam é o do caráter monopolista dos DPI, que contraria o espírito do neoliberalismo, no que ele tem em comum com o antigo liberalismo econômico, ou seja, a visão positiva do livre-comércio, e do mercado enquanto o melhor sistema regulador das atividades econômicas, e motor do progresso. A justificativa teórica para essa concepção depende muito das virtudes da concorrência; assim, tudo o que a impede representa uma interferência com as leis do mercado, tendo consequências nefastas. Um monopólio é um direito exclusivo a explorar a produção ou distribuição de uma determinada categoria de bens. Sendo direitos exclusivos, os monopólios eliminam a concorrência, tornando viável a cobrança de preços mais altos pelos bens, dessa forma maximizando os lucros das empresas, em detrimento das vantagens dos compradores. Por esse motivo, o liberalismo já nasce combatendo-os. Ora, e o que são os DPI senão formas de monopólio, ainda que de duração limitada? Tem-se aí exposto o caráter paradoxal dos bens intelectuais: o paradoxo consiste em que sua mercantilização requer uma instituição – o monopólio – que contradiz os princípios do livre-comércio (os quais são indispensáveis para a legitimação do capitalismo, já que constituem premissas do argumento da mão invisível).

A réplica dos neoliberais consiste no que vou chamar de argumento do financiamento, tradicionalmente mais conhecido como argumento do incentivo. A razão para a mudança consiste em que mais importante que o incentivo, os DPI proporcionam, no caso dos artistas, o sustento, e os meios de adquirir os instrumentos e materiais necessários para o exercício de sua arte; no caso dos inventores, os recursos financeiros para a realização de suas pesquisas.

A réplica pode então ser colocada nos seguintes termos: de fato, o caráter monopolista dos DPI não se coaduna com a defesa do livre-comércio, mas trata-se de uma exceção, justificada exatamente pelo caráter peculiar dos bens intelectuais, que impede que eles sejam mercantilizados da maneira normal, não-monopolista, que vigora em relação aos bens materiais. Trata-se de um argumento logicamente respeitável, que dá margem entretanto a uma tréplica, em que se aceita a necessidade de um dispositivo que proporcione o financiamento necessário, sugerindo porém alternativas ao sistema dos DPI.

2. O neoliberalismo e o financiamento público da pesquisa

No plano conceitual, o neoliberalismo pode ser definido como a fase do capitalismo em que se exacerba o princípio, assumido dogmaticamente, da excelência do mercado enquanto sistema organizador da vida econômica e social. Na visão neoliberal, mercado e Estado são duas esferas a disputar espaço: quanto mais de um, menos do outro. Embora a imperfeição do sistema seja admitida, devido às “falhas do mercado”, não há sistema melhor. Como dizia Margaret Thatcher , There is no alternative. Levado ao extremo, o dogma neoliberal implicaria a extinção do Estado. A tendência mercantilizadora do capitalismo, entretanto, tem limites: acompanhando seus predecessores do liberalismo clássico, os neoliberais admitem a existência de certas funções que só o Estado pode desempenhar, principalmente a administração da moeda, o estabelecimento de direitos de propriedade privada e a manutenção de órgãos responsáveis pelo uso da força para a defesa da nação e a imposição das leis. O resultado é a doutrina do Estado mínimo, que mantém o Estado como responsável por essas funções, porém estipula com mais ênfase aquilo que o Estado não deve fazer: não deve se imiscuir na economia, empreendendo atividades produtivas ou comerciais, ou interferindo no funcionamento do mercado. A doutrina dá origem às políticas de privatização, de redução dos benefícios do Estado de Bem-Estar Social, de desregulamentação dos mercados, eliminação de medidas protecionistas no comércio internacional, em prol da globalização, empreendedorismo (que transforma os trabalhadores em empresas, fenômeno que no Brasil se manifesta como “pejotização”), etc.

Alguns críticos do neoliberalismo na tradição marxista denunciam a concepção “quanto mais de um, menos do outro” alegando que, para entender corretamente a relação entre mercado e Estado, é preciso levar em conta que as políticas adotadas pelo Estado podem ser favoráveis ou desfavoráveis à expansão e fortalecimento do mercado. O que importa não é o tamanho do Estado, mas a natureza de suas ações. As políticas defendidas pelos neoliberais são, evidentemente, as favoráveis ao mercado. Trata-se do Estado a serviço do mercado. Ou: menos Estado para os pobres, mais Estado para os ricos. Consequentemente, é possível haver processos que geram ao mesmo tempo mais Estado e mais mercado (Dardot & Laval, 2016; Harvey; 2015).

Isso posto, quais são as implicações do neoliberalismo para as atividades científicas, especialmente a pesquisa? À primeira vista, pode-se dizer que a realização de pesquisas científicas não faz parte das funções privativas do Estado, não devendo, portanto, serem financiadas pelo Estado. Sendo assim, na visão neoliberal, elas deveriam inserir-se no sistema de mercado para conseguir os recursos necessários para seu financiamento, prescindindo do financiamento público. Seguindo essa linha de pensamento, em princípios da década de 1980, alguns economistas neoliberais defenderam a extinção do financiamento público. Milton Friedman, por exemplo, termina um artigo sobre o tema dizendo: “Portanto, sou favorável a cortes radicais nos auxílios do NSF [National Science Foundation] para todas as disciplinas enquanto um passo adiante no processo de sua extinção”. (Friedman, 1981) (Cf. também Mirowski, 2011). A posição de Friedman, e outras similares, entretanto, não prosperou, e continua a vigorar nos dias de hoje, praticamente no mundo inteiro, tanto no domínio das ideias quanto na prática, a tese de que a pesquisa básica deve ser financiada pelo Estado.

Qual a razão para esse fracasso das posições neoliberais mais radicais? Um elemento fundamental da resposta é o que diz respeito aos DPI e, em particular, a distinção entre direitos autorais patrimoniais (ou econômicos) e direitos autorais morais (ligados ao reconhecimento). Os primeiros são os que proporcionam vantagens monetárias a seus detentores, como acontece com as patentes. Já os direitos morais são inalienáveis, não podem ser transferidos dos autores para outras pessoas por venda ou doação, e não têm prazo de validade.

Grosso modo, os direitos autorais patrimoniais vigoram no campo da Arte, mas não ‒ e este é o ponto crucial ‒ no campo da Ciência. A explicação para tal diferença reside numa norma que nasce junto com a Revolução Científica, a saber a de que o conhecimento científico deve ser livremente acessível a qualquer pessoa. No pensamento de Robert Merton, trata-se de uma das normas do ethos científico, por ele denominada “comunismo”, e identificada com a ideia da ciência como patrimônio comum da humanidade.2 A norma implica que o autor de uma contribuição tem sobre ela direitos morais, mas não direitos patrimoniais. Sendo assim, os DPI não podem funcionar como fonte de recursos para o financiamento da pesquisa científica, o que explica a diferença em pauta. Tal linha de pensamento não se aplica à pesquisa tecnológica, cujos resultados são patenteáveis.

Por um lado, o reconhecimento da necessidade do financiamento público representa um afastamento do neoliberalismo enquanto tipo ideal. Mas por outro o impulso mercantilizador não deixa de se afirmar, na forma das políticas científicas, de que tratei em vários escritos, alguns publicados aqui no Outras Palavras. A tese neles defendida é a de que o cerne dessas políticas corresponde ao movimento denominado inovacionismo, que eleva a produção de inovações à função primordial da pesquisa científica, entendendo por “inovação” as invenções rentáveis, que podem ser patenteadas e implementadas por empresas, contribuindo para a maximização de seus lucros, a curto ou médio prazo. A instância que determina o que é rentável é o mercado, que dessa forma define os rumos da pesquisa científica, isto é, o que deve, ou não deve, ser financiado com recursos públicos. O caso em pauta constitui um bom exemplo de fenômeno que contraria a concepção do “quanto mais de um menos do outro”: A imposição de políticas científicas representa mais Estado, a valorização das inovações, mais mercado.

São duas as críticas ao inovacionismo expostas nesses textos. A primeira aplica-se a todos os países que aderem ao movimento, e sustenta que a supervalorização do potencial de produzir invenções rentáveis implica a desvalorização de áreas desprovidas desse potencial, mas inegavelmente benéficas para a sociedade. Fazem parte do conjunto a ciência básica (que tem o potencial de gerar invenções rentáveis, mas apenas incertamente, e a longo prazo), as humanidades, boa parte das ciências humanas, e a ciência do interesse público, que envolve as pesquisas capazes de gerar conhecimentos que beneficiam a população diretamente, sem passar pelo mercado.

A segunda crítica aplica-se ao Brasil e a outros países periféricos, onde o inovacionismo constitui uma ideia fora do lugar, como atestado pelo inegável fracasso das políticas voltadas para o incremento da produção de inovações (Oliveira 2014a, 2014b, 2018, 2019a, 2021).

3. A publicação do conhecimento científico e seu financiamento

Começando com um pouco de história, vale a pena lembrar que, durante a Revolução Científica, a comunicação entre os filósofos da Natureza dava-se por meio de cartas, monografias e livros. A primeira revista científica (journal) foi o Journal des Sçavans, lançado na França em janeiro de 1665. No mesmo ano, em março, foi a vez das Philosophical Transactions, publicadas pela Royal Society of London. Na sequência, o número de revistas foi crescendo, por obra das sociedades científicas, até meados do século XIX quando surgem as primeiras revistas publicadas por editoras com fins lucrativos (Larivière et al., 2015). No período pós-Segunda Guerra, as atividades científicas tiveram uma enorme expansão, com isso acelerando o crescimento do número de novas revistas. Nas últimas décadas, a avaliação quantitativa neoliberal na Academia, que valoriza acima de tudo a publicação de artigos, também fomenta a proliferação de revistas. Estima-se que atualmente existam 2.000 editoras e 30.000 revistas, que publicam mais de 2,3 milhões de artigos por ano (Musa, 2021; Pierro, 2019). Nos últimos tempos, a publicação de revistas científicas tornou-se um grande negócio ‒ nos dois sentidos, de movimentar valores monetários muito elevados, e de proporcionar altíssimas taxas de lucro. Com faturamento global acima de £19 bilhões (em 2010) , o setor situa-se, desse ponto de vista, entre as gravadoras e as empresas cinematográficas, porém, como veremos, são muito mais lucrativas.

Para ser lucrativa, uma editora deve possuir uma fonte de renda. Paradigmaticamente, a fonte é gerada pelo seguinte arranjo. Para os pesquisadores, os direitos autorais são apenas os morais. Quando um artigo é aceito para publicação, outros direitos sobre ele são doados (transferidos gratuitamente) às editoras, transformando-se, no processo, em direitos autorais patrimoniais. De posse desses direitos, as editoras obtêm renda cobrando pelo acesso aos artigos, por meio da venda de assinaturas de revistas, sendo as bibliotecas acadêmicas os principais compradores.

Por se apoiar nos por direitos patrimoniais, esse arranjo enfrenta a crítica referente ao caráter monopolista do sistema, contraditório com os fundamentos do liberalismo. Como em casos semelhantes, a réplica baseia-se no argumento do financiamento. O processo de publicação de revistas científicas é bastante complexo, envolve a seleção dos artigos que merecem ser publicados, por meio da avaliação por pares (peer review), os vários serviços de editoração (revisão, formatação, padronização, etc.) e, tradicionalmente, o papel, a tinta, e trabalho usados na impressão e transporte das revistas. A cobrança por assinaturas se justificaria então como forma de cobrir esses custos e, no contexto do capitalismo, proporcionar uma margem razoável de lucro.

Acontece, entretanto, que muito pelo contrário: longe de razoáveis, as taxas de lucro são enormes, graças aos preços exorbitantes, e sempre crescentes, dos preços cobrados pelas assinaturas. Segundo Buranyi (2017), p. ex., entre 1975 e 1985, o preço médio de uma assinatura simplesmente dobrou.

O setor é dominado atualmente por cinco grandes editoras: Elsevier, Springer Nature, Wiley, Taylor & Francis e ACS (American Chemical Society). Segundo um levantamento envolvendo 26 países da Europa, realizado em 2017, 75% dos gastos com a publicação foram pagos às ‘big five’, responsáveis por 56% dos artigos publicados (Mehta, 2019). Trata-se portanto de uma situação de oligopólio, mas, como diz Suber (2012, p. 39), esse oligopólio tem entretanto uma peculiaridade, a de que cada revista constitui um “mini-monopólio”, uma vez que nenhuma outra pode publicar os mesmos artigos. A mais poderosa entre as cinco é a Elsevier, responsável globalmente por 25% das publicações, e 42,4 % do faturamento. Em 2010, seu setor editorial relatou lucros de £724 milhões, com base num faturamento de £2 bilhões. A taxa de lucro foi 36%, maior que as da Apple, Google ou Amazon declaradas nesse ano (Buranyi, 2017). Para fins de comparação, a taxa da Exxon Mobil foi 28,1% (Suber, 2012, p. 32), a do Walmart 2,78% (Smits & Pells, 2022, p. 12).

Antes de aprofundar essa análise, é necessário voltar à história, tratando de um episódio crucial das últimas décadas, não apenas para a ciência, mas para toda a humanidade, a saber, a Revolução das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), com destaque para a criação da internet e da World Wide Web (www). A capacidade das TICs de representar digitalmente todas as formas de informação ‒ verbais, visuais, sonoras, etc., ‒ aliada às de processar, reproduzir e transmitir informações, deu origem, no campo da ciência, a uma nova forma de publicação ‒ a digital, ou internética.

Num primeiro momento, a nova forma não alterou o arranjo financeiro, isto é, as editoras continuaram a obter renda por meio do pagamento de assinaturas, independentemente da natureza impressa e/ou digital das revistas. Se a crítica às editoras já era válida em relação à forma tradicional de publicação impressa, torna-se ainda mais pertinente em relação à publicação digital uma vez que os novos recursos tecnológicos reduzem os custos de publicação, por facilitar a editoração dos artigos, a organização da revisão por pares, além de, nas versões digitais, eliminar os gastos com papel, tinta, impressão e transporte das revistas. Tal impacto deveria, naturalmente (com base numa ética do preço justo), atuar no sentido de uma redução, não de uma elevação dos preços, como tem acontecido.

A insatisfação com os preços das assinaturas ocasionou um novo episódio marcante em nossa história, a criação, na virada do século, do movimento do Acesso Aberto (AA; em inglês, Open Access, OA)3. A insatisfação já existia há tempos; a reação não veio à tona antes porque faltava o elemento que viabilizou a proposta de um sistema alternativo, a saber, a forma digital de publicação possibilitada pelas TICs.

Em que consiste o AA? O já mencionado Peter Suber, um dos mais influentes líderes do AA, propõe a seguinte definição sumária: “A literatura AA é digital, disponível na rede (online), gratuita, e livre da maioria dos direitos autorais patrimoniais e das restrições de licenciamento” (Suber, 2012, p. 4). Definições mais detalhadas especificam que os artigos acessados podem não apenas ser lidos, mas também copiados, distribuídos impressos, indexados, etc. (Suber, 2012, p. 7).4

Há várias modalidades de AA, algumas delas designadas com nomes de cores. A mais importante é o AA dourado (gold OA), que compreende os artigos publicados em revistas mantidas por editoras comerciais, as quais organizam a revisão por pares. Vale a pena notar que o AA dourado não afeta a rentabilidade das editoras: o que muda é apenas a fonte do faturamento. Nesse contexto, a possibilidade de publicação digital criada pelas TICs tem um lado positivo, o de viabilizar o AA. Mas tem também um lado negativo, na medida em que dá margem aos periódicos predatórios.5

Outra modalidade é a AA verde, correspondente aos artigos publicados em repositórios. A principal diferença entre as duas modalidades consiste em que a dourada exige a revisão por pares realizada pelas próprias editoras, enquanto a verde disponibiliza artigos submetidos à revisão por outras instâncias, ou simplesmente não submetidos a revisão. Como os custos da manutenção de repositórios são significativamente menores que os das revistas, as instituições de pesquisa não têm grandes dificuldades em mantê-los. Na verdade, qualquer internauta pode criar um repositório, pagando um preço razoável pela hospedagem numa plataforma, e muitos sítios (siteshomepages) pessoais constituem, ou incluem, repositórios.6

A iniciativa mais frequentemente citada como o marco zero do movimento em prol do AA originou-se numa reunião do Open Society Institute (o instituto fundado pelo magnata George Soros) realizada em dezembro de 2001, em Budapeste. Fruto da reunião, em fevereiro de 2002, foi lançado o manifesto Budapest Open Access Initiative (BOAI). Embora um pouco longo, vale a pena citar o parágrafo de abertura do manifesto:

Uma antiga tradição e uma nova tecnologia convergiram para tornar possível um inaudito bem público. A antiga tradição é a disponibilidade dos cientistas e estudiosos (scholars) para publicar os frutos de suas pesquisas em revistas acadêmicas sem pagamento, em prol da investigação e do conhecimento. A nova tecnologia é a internet. O bem público que elas tornam possível é a distribuição eletrônica global da literatura das revistas com revisão por pares, e o acesso completamente livre e irrestrito a ela por todos os cientistas, estudiosos, professores, estudantes e outras mentes curiosas. A remoção de barreiras ao acesso a essa literatura vai acelerar a pesquisa, enriquecer a educação, compartilhar o saber dos ricos com os pobres, e dos pobres com os ricos, tornar a literatura tão útil quanto possível, e assentar o fundamento para a união da humanidade numa conversa intelectual comum em busca do conhecimento. (BOAI, 2002)

Influenciados pelo BOAI, foram lançados o Bethesda Statement on Open Access Publishing (Brown et al., 2003), e logo após, a Berlin Declaration on Open Access to Knowledge in the Sciences and Humanities (Max Planck Society, 2003). Esses três, além de vários outros manifestos lançados na época, foram subscritos por números significativos de instituições e indivíduos.

A viabilidade do AA depende naturalmente da existência de uma fonte alternativa de renda, que substitua a cobrança de assinaturas na função de proporcionar os recursos necessários para cobrir os custos de publicação. Obtém-se tal fonte transferindo o ônus dos compradores do acesso para os produtores dos conteúdos. Ou seja, em vez de os leitores pagarem pelo acesso, os pesquisadores ‒ ou, mais comumente, as instituições a que são filiados, ou as agências financiadoras da pesquisa ‒ pagam pela publicação dos artigos.

Neste ponto cabe um esclarecimento terminológico. Na literatura em inglês, os custos de publicação de artigos recebem o nome de Article Processing Charges (APC). O termo, entretanto, é ambíguo, sendo usado para designar também as taxas que as editoras cobram dos autores, alegadamente para cobrir tais custos. O uso do mesmo termo para os dois conceitos tende a ocultar o fato de que, em geral, as taxas cobradas são muito superiores aos custos. Para maior clareza, e traduzindo para o português, adoto a seguir as expressões ‘custo de publicação de artigo’ (CPA) e ‘taxa de publicação de artigo’ (TPA), para deixar clara a distinção.

O valor médio das TPAs, é US$ 1.626 (Morrison et al. (2021). A mais elevada até o momento é a imposta pela Nature a um grupo de 32 revistas: nada menos que € 9.500! (Brainard, 2020). Quanto ao CPA, os valores variam de menos de US$ 200 por artigo a US$ 1.000 em revistas de grande prestígio, com taxas de rejeição acima de 90%. O valor médio é aproximadamente US$ 400 (Grossmann & Börn, (2021). Ao lado das taxas de lucro, a disparidade entre o CPA e o TPA é um indicador do grau em que a comunidade científica é explorada pelas editoras.

A mudança no sentido do AA constitui uma ameaça aos interesses das editoras, que reagem vigorosamente, alegando toda sorte de impactos deletérios que adviriam de sua implementação. O argumento baseado nas vantagens do AA para toda a sociedade, entretanto, é tão poderoso que inviabiliza a adoção, pelas editoras, de uma postura de rejeição completa do AA. Para superar essa dificuldade, elas adotam a estratégia de, por um lado, reconhecer tais vantagens, por outro, alegar que a transição de um modelo para o outro é um processo extremamente complexo que, para não levar a consequências nefastas, precisa ser conduzido com muito cuidado, e gradativamente. Tendo por objetivo implantar essa forma gradativa, as editoras criaram um novo modelo de negócio, defendido como uma modalidade transitória entre o acesso pago e o AA, a saber, o modelo híbrido. No modelo tradicional, os custos de publicação em que incorrem as editoras são compensados pela renda proveniente das assinaturas. O modelo híbrido mantém esse arranjo, porém ‒ e essa é a diferença ‒ a editora faculta ao autor a possibilidade de disponibilizar o artigo em AA em troca do pagamento de uma taxa, a TPA.

A réplica dos partidários do AA consiste em denunciar o reconhecimento das vantagens do AA, e o interesse pelo bem de todos, da parte das editoras, como carentes de sinceridade, prevalecendo entre elas o objetivo primordial da maximização dos lucros. Além disso, é baixíssima a aceitação da opção de pagar para ter o artigo disponível em acesso aberto, por volta de 1% (Suber, 2022, at p. 141). O tópico das revistas híbridas é central na luta do movimento AA contra a espoliação das editoras. Mas por enquanto são elas que estão levando a melhor, a julgar pelo número de revistas híbridas: a primeira foi lançada em 2004, pela Springer Nature; em 2009 eram 2 mil, em 2016 quase 10 mil (Pierro, 2019).

Outra estratégia maximizadora de lucros adotada pelas editoras é a mudança no modelo de negócio: em vez de revista por revista (à la carte, por assim dizer), o que passou a ser negociado foram pacotes (packages) de revistas. Um aspecto que ilustra bem o conflito entre o objetivo empresarial de maximização dos lucros e os interesses dos compradores é a cláusula de confidencialidade imposta nos contratos, de modo que cada biblioteca acadêmica não pode saber quanto outras pagam por pacotes análogos. O objetivo da estratégia, evidentemente, é dificultar a associação de bibliotecas, de modo a poder negociar os contratos em bloco, aumentando seu poder de barganha nas negociações (Suber, 2012, p. 33). Além desse tipo de venda, mantém-se um outro, “à la carte”, em que o interessado pode adquirir o acesso a cada artigo individualmente. O preço típico dessa modalidade de aquisição é US$ 40 por artigo.7

Um outro tipo de crítica à forma tradicional da publicação de artigos é de que o Estado paga triplamente pelas pesquisas científicas e a divulgação de seu resultados: as universidades e institutos públicos de pesquisa pagam os salários dos pesquisadores, as agências de fomento pagam as despesas com as pesquisas, e as bibliotecas acadêmicas pagam as assinaturas das revistas (Smits & Pells, 2022, p. 11; Buranyi, 2017). Nessa perspectiva, em termos orgânicos, as editoras figuram como parasitas ‒ e não, como poderia e deveria ser, fazendo par com a Academia numa relação de simbiose, mutuamente benéfica.

Esse tipo de argumento é complementado pela alegação, verdadeira, de que o trabalho envolvido na revisão por pares não é remunerado. Na tradição marxista, pode ser condenado enquanto uma espécie de mais-valia. Enquanto crítica, a alegação, a meu ver, não se sustenta, se for interpretada como implicando a proposta de que os pares sejam remunerados por seu trabalho. Uma visão não mercantilista revela aspectos da prática da revisão por pares que fazem dela muito mais que um serviço dotado, real ou potencialmente, de valor de troca. Ela é parte imprescindível da vida acadêmica, benéfica diretamente para os pares e os autores, indiretamente para a ciência como um todo. Como tudo na vida, a prática tem um lado negativo: para o parecerista, a necessidade de emitir pareceres negativos, especialmente quando o artigo é de muito baixa qualidade. Não é uma tarefa agradável. Mas, de maneira geral, o parecerista se beneficia, atualizando ou aprofundando seu conhecimento sobre a temática do artigo ou, em outras palavras, familiarizando-se com o “estado da arte”. Os autores, por razões óbvias, também em princípio, se beneficiam. Em princípio porque não é necessário negar a existência de pareceres de baixa qualidade, feitos sem o devido cuidado, e/ou parciais, etc. Por outro lado, introduzir o pagamento pela elaboração de pareceres seria mais um passo no sentido da mercantilização da ciência, com inevitáveis consequências nefastas, do tipo das que apontamos em Oliveira (2022a e 2022b).

Embora o movimento pró AA tenha se desenvolvido vigorosamente nos quinze anos após seu lançamento em 2003, os resultados deixaram muito a desejar, para a frustração de seus adeptos. Em 2018, segundo uma estimativa, 72% dos artigos publicados estavam em acesso pago. A lentidão do avanço, segundo alguns, configura nada menos que uma estagnação (Smits & Pells, 2022). Muito sucintamente, pode-se dizer que a principal causa da dificuldade consiste na articulação de três aspectos do processo, a saber: (1) a maximização dos lucros adotada (não só pelos executivos, mas também pelos acionistas das empresas editoriais) como valor supremo da vida econômica, passando por cima dos valores da justiça social, da honestidade, da solidariedade, etc.; (2) as vantagens da falta de concorrência decorrente do caráter monopolista do negócio, que viabiliza altíssimas taxas de lucro; e (3) as dimensões econômicas das empresas que, refletindo o caráter plutocrático extremado do neoliberalismo, resultam em grande poderio econômico, exercido por meio de intensos lobbies e estratégias inescrupulosas de marketing (Smits & Pells, 2022, p. 49), (Buranyi, 2017).

A impaciência com a lentidão do avanço do AA levou o movimento a radicalizar, tomando uma medida muito mais drástica do que as anteriores, a ponto de constituir mais um marco na história dos DPI na ciência, a saber, a elaboração a implementação do chamado Plano S (Plan S). O processo teve início em meados da década de 2010, quando começaram a se articular novas forças no movimento, inicialmente no âmbito da União Europeia, sob a liderança de Robert-Jan Smits, conselheiro sênior em Acesso Aberto da Comissão Europeia. O espírito da iniciativa é o de que, se as editoras não moderam sua ganância, atuando efetivamente em prol do AA o AA por bem, que seja por mal, isto é, na base não da persuasão, mas da coerção. Por obra de Smits, realizou-se em Amsterdam, em abril de 2016, uma reunião da qual resultou o que veio a se chamar o Amsterdam Call for Action on Open Science. Por volta de dois anos depois, as agências financiadoras de pesquisa científica da França, Reino Unido, Holanda, e mais 8 países europeus formaram o consórcio cOAlition S, responsável pelo lançamento, em 4 de setembro de 2018, do Plano S. O núcleo do Plano é a norma segundo a qual os artigos resultantes de pesquisas financiadas com recursos públicos, em todos os países do mundo, devem ser divulgados em AA.

Com vigência a partir de 2021, todas as produções acadêmicas referentes aos resultados de pesquisas financiadas por recursos públicos ou privados, fornecidos por conselhos de pesquisa ou agências financiadoras nacionais, regionais e internacionais devem ser publicadas em revistas de acesso aberto, em plataformas de acesso aberto, ou disponibilizadas por meio de repositórios com acesso aberto, sem restrições. (cOAlition, 2020)

A radicalidade da norma reside em que ela proíbe os autores de artigos decorrentes de pesquisa financiada com recursos estatais de publicá-los em revistas de acesso pago, levando em conta que, como vimos, a quase totalidade das pesquisas científicas é financiada dessa maneira. A implementação do Plano afetaria decisivamente a lucratividade das editoras. Não afeta em virtude da estratégia das editoras, de impor a categorização das revistas híbridas como sendo de AA.

Embora não se discutam as boas intenções dos proponentes do Plano S, o fato é que continuam operando as forças que impediam o movimento AA de deslanchar. Cedendo a pressões, foram amenizadas muitas das normas do Plano. A própria data de instauração foi adiada, de 1º de janeiro de 2020 para 2021. Um relato detalhado dos contratempos enfrentados pela iniciativa é proporcionado por seu principal líder, Robert-Jan Smits, no livro já mencionado (Smits & Peel, 2022).

O campo onde se dão as disputas é extremamente complexo, envolvendo muitos aspectos, partes interessadas (stakeholders), empresas, instituições, questões técnicas, etc. Por outro lado, encontra-se em forte turbulência, de modo que uma análise mais detalhada pode perder a validade num curso espaço de tempo. Dados esses fatores, não convém alongar este ensaio.8 Concluo com a seguinte observação.

Até o momento parece claro que as editoras levaram a melhor, continuam de diferentes maneiras a explorar a comunidade científica de uma forma claramente caracterizada como um roubo. Que perspectiva se pode vislumbrar para o futuro? Além do impacto da Revolução das TICs, o sistema de publicação de artigos científicos, como vimos, tem sido moldado por políticas neoliberais. Por outro lado, o desenrolar da história no século XXI vem solapando os fundamentos do neoliberalismo. Entre os fatores que promovem essa tendência, destacam-se a crise de 2008, e o impacto da pandemia, que obrigou os Estados a atuarem de maneira oposta ao ideário neoliberal, injetando gigantescas quantias de dinheiro na economia. Com isso, cresce a cada dia o número de pensadores que dão como certo o fim do neoliberalismo – embora estejam muito pouco claras as características do que virá a seguir (Streek, 2017; Stiglitz, 2019; Durand, 2021; Gestle, 2022). De qualquer forma, procurando razões para o otimismo, pode-se sustentar que a queda do neoliberalismo poderá levar o AA a se tornar a forma dominante da publicação dos resultados das pesquisas científicas.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/quem-limita-a-difusao-ciencia-e-do-saber/

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