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O que Mariátegui diria sobre o levante peruano?

Vale resgatar as ideias do teórico do socialismo indo-americano. Ao analisar a América Latina, ele “traduziu” Marx: a luta entre senhores e peões – indígenas, camponeses e negros –, que hoje tomam as ruas de Lima, é o motor de nossa história

Por: Paul Guillibert | Tradução: Rôney Rodrigues | Imagem: LO Cole

A articulação da luta de classes e do antirracismo divide o campo progressista. Para alguns, a classe constitui o elemento determinante de todas as relações de dominação. Para outros, as formas contemporâneas de racismo são resultado de uma cultura, ou seja, de representações pelas quais uma comunidade define sua identidade e o indivíduo o seu pertencimento ao grupo. Na maioria das vezes, o debate é reativo a uma polêmica estéril que confronta os partidários de uma “abordagem econômica” e os partidários de uma “abordagem cultural”, como se a noção de classe pertencesse exclusivamente ao universo econômico e a de raça ao da esfera cultural. Este debate muitas vezes omite a história do marxismo em um contexto colonial. Entre os pensadores que estudaram as condições econômicas da dominação racial e as condições culturais da dominação de classe, destaca-se uma das mais importantes figuras revolucionárias do continente sul-americano: José Carlos Mariátegui (1894-1930) [1]

Em sua obra mais emblemática, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, publicada em 1928, Mariátegui elabora sua intuição fundamental: nos países antes colonizados da América Latina, a compreensão da história em termos de luta de classes deve atender à especificidade às das sociedades camponesas e indígenas. De um ponto de vista geral, anuncia então um grande movimento de tradução e adaptação do marxismo aos mundos não europeus em vias de descolonização, que encontraremos com outras modalidades nos anos 1950-1960 em Frantz Fanon, Amílcar Cabral ou Ho Chi Ming, por exemplo.

Fundador do Partido Socialista operário e camponês em 1928, e depois do Partido Comunista Peruano em 1930, Mariátegui rejeita qualquer análise sociológica da jovem república que desconsidere o fato colonial. A colonização produziu uma sociedade onde as hierarquias raciais entre brancos, criollos, índios e negros determinam as posições de classe. Para o revolucionário peruano, o racismo pós-colonial não é um problema moral (como sugerem as tradições humanitárias ou filantrópicas), mas político: o da distribuição da propriedade. “Não nos contentamos em reivindicar o direito do índio à educação, à cultura, ao progresso, ao amor e ao céu. Começamos por reivindicar categoricamente o seu direito à terra. Esta reivindicação perfeitamente materialista deveria bastar para que não sejamos confundidos com os herdeiros ou repetidores do grande frade espanhol [Bartolomé de Las Casas], a quem, por outro lado, tanto materialismo não nos impede de estimar fervorosamente”). [2]

Os negros – escravos provenientes do tráfico – se esgotam nas minas, os índios oprimidos se esgotam nas grandes propriedades (latifúndios), os brancos e os criollos dirigem as instituições do poder e do comércio. Para Mariátegui, a relação com a terra e a divisão do trabalho é o que condiciona a posição nas hierarquias raciais e o que explica por que os índios quéchuas ou aimarás veem no mestiço e no branco a figura do opressor. Mariátegui busca demonstrar, tanto contra liberais quanto contra católicos, a dimensão econômica do imperialismo e, ao contrário da visão dominante dentro da Internacional Comunista, que o racismo anti-indígena não poderá ser resolvido no seio das repúblicas independentes e racialmente homogêneas. Em seu discurso no I Congresso da Internacional Comunista na América Latina em 1929, intitulado “O problema das raças na América Latina”Mariátegui escreve que “entre o ‘senhor’ ou o burguês criollo e seus peões de cor não há nada comum. A solidariedade de classe soma-se à solidariedade racial (e ao preconceito) para tornar as burguesias nacionais instrumentos dóceis do imperialismo ianque ou britânico”.[3]

A trilha inca

Por um lado, Mariátegui enfatiza o papel determinante das hierarquias raciais no pertencimento de classe; por outro, considera que estas são produzidas por relações de propriedade, ou seja, que têm uma base econômica (e não apenas cultural), que favorece o desenvolvimento do imperialismo estadunidense. É o acesso e o controle dos meios de subsistência, a começar pela terra, que garante a reprodução do poder branco e imperialista. Essa leitura econômica do racismo levou a uma estratégia revolucionária e anticolonial: a recuperação de terras.

“É lógico afirmar que suas reivindicações naturais [as dos indígenas] consistem em exigir a devolução de todas as terras que possam cultivar.” [4] Mariátegui é comedido: menciona a devolução apenas das terras que os índios possuem a capacidade de cultivar. A revolução agrária supõe então uma transição política que transfere gradualmente a propriedade para os índios, adaptando-se às suas necessidades e aos seus meios. Embora fale de uma “devolução das terras”, a política comunista que ele defende não tem a ambição de copiar identicamente a existência de uma comunidade originária. Pelo contrário, a reapropriação coletiva de uma terra que fornece o sustento da comunidade significa reinventar uma forma antiga em uma sociedade de um novo tipo. A partir de uma rede de ayllus (termo quíchua que designa comunidades rurais coletivizadas), a terra deve fornecer os meios para se libertar da dependência política da burguesia colonial e da dependência econômica do mercado. Aqueles que não dependem de nenhum senhor para sua subsistência podem decidir livremente sobre seu futuro político. Recuperar a terra não é apenas dar a si mesmo os meios de subsistência material, é também ganhar autonomia política em relação ao poder branco e capitalista.

mito de base

Mariátegui acrescenta que a transformação política do mundo econômico requer a adesão a mitos revolucionários. Ao contrário da ideia dita “científica”, segundo a qual o comunismo teria rompido com o utopismo dos primeiros pensamentos socialistas, o pensador peruano considera que toda revolução supõe uma forma de fé. É ao mesmo tempo uma tese geral sobre a história dos povos e uma tentativa de dar à política peruana seu mito fundador: o “comunismo inca”.

Para o intelectual peruano, o conceito designa a existência de um comunismo pré-colonial organizado segundo uma estrutura hierárquica: as comunas rurais agrárias baseadas na distribuição de terras e na ausência de propriedade privada são coordenadas pelo Supremo Inca e pelo poder religioso, que arrecada impostos e tributos para garantir uma série de obras de grande porte, principalmente de irrigação. A maioria dos comentaristas e historiadores criticou o caráter anacrônico da descrição do comunismo para uma sociedade onde uma parte da riqueza produzida pelos camponeses é extraída por uma classe política e religiosa, seja através do imposto, seja através de um sistema de servidão. Dado que de fato uma classe exploradora e uma classe explorada parecem existir dentro do Império Inca, como podemos ver uma forma de comunismo lá?

Para começar, os ayllus são um regime fundiário no qual as terras comunais são distribuídas periodicamente entre cada família, mas exploradas de forma coletiva. Para Mariátegui, essa estrutura social é testemunho de um “comunismo indígena”, até mesmo de uma “mentalidade comunista”, que faz parte da tradição comunitária de uma terra sem proprietário privado e explorada de modo coletivo. Mas sua tese é ainda mais provocativa quando sustenta que o governo autoritário dos incas era a única forma de comunismo adequada para esta época e esta sociedade. Poderíamos, evidentemente, ver ali uma justificativa do stalinismo em processo de estabelecimento na Rússia. Mas Mariátegui na verdade defende uma forma de “relativismo histórico” [5]: não haveria modelo político de comunismo; o termo referir-se-ia apenas a uma organização das relações sociais baseada na ausência de propriedade privada, mas que poderia aparecer sob uma multiplicidade de formas de governo.

Marxismo pós-colonial

O rechaço a um modelo histórico único permite criticar as visões etnocêntricas da história, transmitidas em particular pela Internacional Comunista na América Latina (e segundo as quais os grupos sociais ditos “atrasados” deveriam seguir o caminho dos grupos avançados). É impossível “consubstanciar a ideia abstrata de liberdade com as imagens concretas de uma liberdade com barrete frígio – filha do protestantismo e do Renascimento e da Revolução Francesa”, acrescenta. Para Mariátegui, a ideia de liberdade humana não se resume em sua manifestação europeia moderna, baseada nos direitos humanos burgueses e em sua iconografia. Ela se expressa em singularidades concretas. As formas de governo emergem das sociedades que as viram nascer. É também a razão pela qual o comunismo moderno não pode se desenvolver sem levar em conta essa característica da época que é o individualismo liberal e o direito dos súditos de terem sua particularidade reconhecida.

Mas são necessários mitos, mesmo religiosos, para suscitar a reflexão e mobilizar. Para ele, o mito se refere à dimensão afetiva das representações, cuja força é capaz de transformar a consciência. É neste ponto que o distanciamento do marxismo ortodoxo é o mais importante. Para o socialista andino, a religião moderna é a instituição que assumiu a força afetiva dos mitos antigos. A própria crítica das religiões é “diversão burguesa e liberal” [6], porque “a força dos revolucionários não está em sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual”. [7] A convicção de que a revolução deve ser fundada no mito faz dele um dos precursores da teologia da libertação, que confere à fé cristã uma força emancipadora contra a modernidade capitalista.

Ao longo do século XX, as lutas anticoloniais e antirracistas renovaram as categorias marxistas para pensar as relações entre classe e raça. Em 1944, em Capitalismo e escravidão, Eric Williams, um pensador marxista de Trinidad e Tobago, citou por exemplo esta frase de um cronista inglês: “Nenhum tijolo na cidade de Bristol foi feito sem o sangue de um escravo”. O debate entre classe e raça – que costuma se empobrecer numa polêmica sobre economia ou cultura – ignora toda a história do “marxismo negro” e do “marxismo pós-colonial”, de José Carlos Mariátegui a C.L.R James, de Eric Williams a Cedric Robinson.

Cada um, à sua maneira, demonstra que o marxismo deve ser renovado para existir politicamente: “Certamente não queremos que o socialismo seja uma cópia carbono na América. Deve ser uma criação heróica. Temos que dar vida, com a nossa própria realidade, na nossa própria língua, ao socialismo indo-americano”. [8]

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/o-que-mariategui-diria-sobre-o-levante-peruano/

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