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Omissão e violência marcam os 30 anos da Terra Yanomami

Criada em 1992, Terra Indígena Yanomami sofre com onda de invasões de garimpeiros semelhante à vivida antes da demarcação. Missionário que lutou pelo reconhecimento do território fala em “tragédia inenarrável”.

Por: Nádia Pontes | Créditos da foto: Acervo ISA. Onda atual de invasões à Terra Indígena Yanomami conta com pelo menos 30 mil garimpeiros

Na aldeia Xihopi, no Amazonas, a movimentação aguardada para os próximos dias é inédita. Cerca de 900 convidados de várias partes do mundo viajaram até lá para celebrar o que consideram um marco: os 30 anos da demarcação da Terra Indígena Yanomami.

“Isso significa a resistência do nosso povo. É uma conquista histórica para a nossa e as próximas gerações”, diz à DW por telefone Dario Kopenawa Yanomami, da Hutukara Associação Yanomami, horas antes de embarcar para a região remota na Floresta Amazônica.

O pai dele, Davi Kopenawa Yanomami, chegou com bastante antecedência ao local para receber os visitantes. Davi é figura central na briga pelo uso exclusivo do território pelos habitantes que estão ali há mais de 3 mil anos, e que culminou no reconhecimento oficial dos limites da Terra Indígena (TI) em 25 de maio de 1992.

Davi Kopenawa Yanomami
Davi Kopenawa Yanomami é figura central na briga pelo uso exclusivo do território pelos yanomami que estão ali há mais de 3 mil anosFoto: Right Livelihood Foundation

São 96 mil km² de área contínua nos estados de Amazonas e Roraima, até a fronteira com a Venezuela. No Brasil, a população yanomami é estimada em cerca de 27 mil pessoas, segundo o painel de informações alimentado pelo Instituto Socioambiental (ISA).

“A gente não precisa de demarcação no nosso sistema de organização para proteger o território. Mas nós conquistamos esse direito pela legislação brasileira. Os invasores e os governos têm que respeitar”, comenta Dario.

A alegria dos festejos pelas três décadas do decreto que homologou a TI também é acompanhada de uma carga de preocupação. A onda atual de invasões, semelhante à que o território vivenciou antes da demarcação, conta com pelo menos 30 mil garimpeiros.

“O garimpo ilegal está misturado com facções, crime organizado. Está mais violento”, pontua Dario, lembrando que pelo menos dez indígenas foram assassinados nos últimos anos.

“Quando quer, o Estado retira os invasores”

Indignado, Sydney Possuelo, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), enxerga uma repetição do que viu quando comandou a delimitação do território yanomami. Antes do reconhecimento oficial, ele esteve à frente do processo de expulsão de cerca de 40 mil garimpeiros com a ajuda da Polícia Federal.

“A desintrusão foi antes da demarcação. Praticamente zeramos o número de invasores. Digo isso para afirmar o seguinte: quando o Estado quer, o Estado tem os instrumentos necessários”, afirma  Possuelo sobre o momento atual.

“A TI está invadida hoje por deficiência do Estado, porque Bolsonaro é claramente contra os povos indígenas, contra o meio ambiente, ele não demarca, mas alimenta e incentiva a invasão”, comenta em entrevista à DW Brasil.

Foi por isso que ele devolveu a medalha do Mérito Indigenista, que ganhou há 35 anos por sua atuação, após a mesma condecoração ser dada em março último a Bolsonaro.

Possuelo conviveu com ameaças e foi alvo de teorias da conspiração enquanto esteve na Funai. Jurado de morte em Roraima, ele andou com escolta durante o trabalho no campo. “Você está demarcando o seu túmulo” era a mensagem que recebia por carta.

“Muitas forças se levantaram contra. O Exército dizia que era um perigo à segurança nacional, questões econômicas que envolviam madeira e garimpo criavam problemas nos estados”, relembra Possuelo.

Em 1992, ano do decreto, o Brasil receberia a gigante conferência de meio ambiente das Nações Unidas, a Eco-92, e o país precisava mostrar que dava atenção ao tema. O país acabara de eleger o primeiro presidente após 21 anos de ditadura militar, e Fernando Collor fazia cumprir a Constituição de 1988 ao conceder aos yanomami o direito exclusivo de usufruto das terras.

Chegava ao fim também uma grande campanha internacional de quase 15 anos que pressionou o governo brasileiro. “A campanha internacional foi importante e serviu de motivação. Mas eu sempre digo: demarcação é um ato do governo. Só o Estado pode fazer isso”, pondera Possuelo.

“Uma tragédia inenarrável”

Carlo Zacquini, missionário italiano da Igreja Católica que chegou a Boa Vista em 1965, foi um dos que encabeçaram a campanha fora e dentro do Brasil. Ele ajudou a criar uma das primeiras propostas de delimitação do território, em 1968, e trabalhou ativamente na elaboração da área reconhecida oficialmente mais tarde.

Durante sua convivência de décadas junto aos yanomami, ele diz ter visto projetos como a construção da estrada Perimetral Norte dizimar os indígenas – além do garimpo. Zacquini também aprendeu a língua deles, teve que caçar e cozinhar para sobreviver na mata.

O missionário italiano Carlo Zacquini em seu primeiro contato com os yanomami, em 1965
O missionário italiano Carlo Zacquini em seu primeiro contato com os yanomami, em 1965. Foto: Carlos Zacquini

Em 1978, ao lado da fotógrafa Claudia Andujar, foi um dos fundadores da Comissão Pró-Yanomami (CCPY) e começou a trabalhar com os primeiros mapas disponíveis da área. “Os mapas traziam aldeias plotadas que não existiam mais. Até hoje não sabemos se foram exterminadas ou se mudaram de lugar”, diz Zacquini à DW Brasil.

A caminho da festa organizada pelas lideranças indígenas que marca o aniversário de demarcação, Zacquini não esconde sua angústia. “É uma comemoração e uma coisa triste, porque a terra praticamente não é respeitada por ninguém. Está acontecendo uma tragédia inenarrável. É muito complicado. A gente acaba passando mal”, comenta sobre o aumento das invasões e devastação.

“Os que estão mandando em tudo são os piores exemplares de seres humanos. São destruidores do país”, diz sobre o fracasso do governo em proteger os yanomami.

Repercussão fora do país

A repetição dos eventos assombra também Jan Rocha. A jornalista inglesa, que chegou ao Brasil em 1969, acompanhava os conflitos na Amazônia como correspondente da BBC de Londres e ajudou a repercutir mundialmente episódios violentos como o massacre de Haximu.

Em 1993, após uma série de conflitos entre garimpeiros e indígenas, os invasores aproveitaram a ausência dos homens na aldeia e mataram a tiros e golpes de facão 12 indígenas: um homem, duas idosas, uma mulher, três adolescentes, quatro crianças e um bebê.

“O que está acontecendo agora com os yanomami me lembra muito aquele episódio. Os sobreviventes fugiram com as cinzas e reapareceram numa outra maloca, um mês depois, e contaram o que tinha acontecido”, comenta Rocha sobre o massacre, narrado em livro escrito por ela e publicado primeiramente em inglês.

“É muito triste ver tudo sendo destruído por esse governo que apoia os garimpeiros, na verdade, que quer que eles destruam tudo. Eles querem acabar com as terras indígenas”, analisa Rocha.

Imagem aérea de habitação na Terra Indígena Yanomami
Terra Indígena Yanomami engloba 96 mil km² de área contínua nos estados de Amazonas e Roraima, até a fronteira com a Venezuela. Foto: picture-alliance/robertharding/R. Tenison

As notícias enviadas pela jornalista ao exterior chocaram também Fiona Watson. A escocesa se aproximou dos yanomami enquanto trabalhava num projeto de cooperação científica entre Brasil e Reino Unido, na década de 1980.

“Nós fizemos uma manifestação durante sete anos em frente à embaixada brasileira em Londres, mandávamos cartas para o governo e denúncias para a ONU sobre a situação dos yanomami”, relembra Watson, atual diretora de pesquisa da ONG Survival International.

Foram eles que levaram Davi Kopenawa Yanomami para falar ao público internacional pela primeira vez. Em 1989, acompanhado da ativista Claudia Andujar, Davi relatou a parlamentares em Londres e Estocolmo o que se passava na Amazônia.

“Os yanomami ainda estão lutando por justiça. Naquela época, lutavam pela demarcação, hoje  lutam para manter a terra. A omissão do governo brasileiro é grande”, comenta Watson sobre as semelhanças dos períodos.

“A maior diferença é a escala da catástrofe humana hoje. Os invasores têm mais equipamentos, têm muita força econômica e política. São dragas, mercúrio, desmatamento… um desastre ecológico sem tamanho com muita violência. É uma guerra”, opina.

“A floresta é importante para todos”

Dario Kopenawa Yanomami culpa também a indústria do ouro, que compra o metal extraído à base de violência contra os indígenas.

“Tem todo esse sistema da indústria por trás, junto com corrupção, destruição e desmatamento”, lamenta. “Eles estão destruindo a vida, as águas, o ambiente. E o cenário politico atual é de ameaça constante”, adiciona.

Na cosmologia yanomami, foi o criador Omama que fez a terra para a população indígena. “Agora ela é a nossa casa, é a nossa mãe, faz parte do ser humano. A gente protege todo esse território não só para os indígenas, mas para todos. Porque a floresta, os rios, os animais não sustentam só os indígenas, mas são importantes para todo o planeta.”

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/omiss%C3%A3o-e-viol%C3%AAncia-marcam-os-30-anos-da-terra-ind%C3%ADgena-yanomami/a-61924315

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