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Na Bolívia, um feminismo que descoloniza as Américas

Ele distingue-se da tradição liberal eurocêntrica com uma perspectiva comunitária. Floresceu como reflexão política durante o governo de Evo Morales. E expande o pensamento para a população majoritária – e mais oprimida – do país

Julieta Paredes, em entrevista à Agência Pública

Alguns minutos conversando com Julieta Paredes são suficientes para você olhar tudo por uma nova perspectiva, desde o conceito de feminismo até a história da América Latina.

Em tom sereno, com argumentos realistas, ela explica, por exemplo, que o feminismo “tradicional” nasceu na Europa em meio à Revolução Francesa de 1789. Por isso, as mulheres indígenas que lutaram com seus povos contra os colonizadores europeus nas Américas, mais de 200 anos antes, não são consideradas parte desse feminismo. Esse foi um dos motivos que estimularam Julieta e outras mulheres bolivianas a desenvolver o feminismo comunitário, uma prática política que floresceu durante o governo Evo Morales (2006-2019) na Bolívia e hoje tem adeptas em todo o continente.

“O feminismo comunitário é a luta de qualquer mulher, em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo da história, que luta e se rebela contra um patriarcado que a oprime ou pretende oprimir”, define. Julieta ressalta que o feminismo comunitário não é uma corrente que deriva do feminismo tradicional eurocêntrico, e sim a forma única como ela e outras mulheres latino-americanas, principalmente de povos originários, passaram a enxergar e se posicionar. “Nós somos feministas comunitárias, e não feministas porque somos mais velhas do que as feministas, que ainda são jovenzinhas, surgiram em 1789 [risos]. Nós estamos lutando desde 1500.”

Julieta veio ao Brasil no início de março para divulgar seu novo livro, Para descolonizar o feminismo. A Agência Pública conversou com ela na Aldeia Jaraguá, território do povo Guarani Mbya no extremo norte da cidade de São Paulo. Sentada em uma rede, cercada de árvores, ela falou sobre diversos temas do ponto de vista de quem esteve no epicentro de muitas das lutas recentes na Bolívia: desde práticas para coibir as altas taxas de violência contra a mulher até a atual situação política do país após a renúncia do ex-presidente Evo Morales, em 2019, motivada por suspeitas de fraude nas eleições. Julieta é categórica ao dizer que não houve fraude, que Morales sofreu um golpe e que o autoritarismo tomou conta do país vizinho: “Há uma ditadura na Bolívia hoje”.

O que é o feminismo comunitário?

Feminismo comunitário é o nome da nossa organização, que também produziu uma prática política das mulheres em toda a Abya Yala [palavra de origem kuna que quer dizer América]. O feminismo comunitário, hoje em dia, também é uma corrente de pensamento. Mas nós não nascemos da academia, da teoria, da intelectualidade. É muito diferente. Nós nascemos como uma prática social que nomeia seus sonhos, suas propostas, suas lutas, e vamos encontrando na construção teórica a explicação do que estamos fazendo.

Quando você, como povo originário – ou indígena, como nos chamam – ou como mulher, é oprimido, você está preocupado em procurar comida, água, uma casa. Você não tem tempo, espaço, tranquilidade e saúde para poder pensar, ler, escrever.

Mas foi o processo de mudança na Bolívia [que nos deu] essas condições para refletir sobre o que estamos fazendo, para refletir sobre o que significam nossos próprios corpos, nossa própria história. Não que [o governo de Evo Morales] tenha sido maravilhoso, assim como o de Lula também não foi. Eles tiveram suas contradições. Mas eram condições favoráveis.

E quais eram as práticas que embasaram o nascimento do feminismo comunitário?

O grupo Mujeres Creando surgiu nos anos 1990. Nos anos 2000, Mujeres Creando se dividiu por causa da relação com o povo. Para o grupo que hoje mantém o nome de Mujeres Creando eram muito importantes a performance política e a arte, e elas consideravam que o povo era muito machista, lesbofóbico, estava muito atrasado para compreender o feminismo das Mujeres Creando.

Já para nós – que adotamos o nome de Mujeres Creando Comunidad – o relacionamento com o povo é essencial, mesmo que ele seja sexista, mesmo que sejam estupradores, que sejam pedófilos, que sejam assassinos de mulheres. Quer dizer, é doloroso que seu próprio povo seja assim, mas é o nosso povo. Nós não dizemos que eles não são responsáveis ​​pelo que fazem, “pobrezinhos”… Não, não, não. Nós também somos fruto de uma sociedade racista e machista, mas não queremos ser machistas ou racistas. Trabalhamos todos os dias para não ser. Então eles também podem trabalhar.

O fundamental para nós é que, para fazer revoluções, mudanças, transformações, tem que ser com os nossos povos, com nossas organizações sociais, com nossos irmãos e irmãs que fazem parte da nossa sociedade. Senão, com que povo vamos fazer a revolução? Quatro gatos-pingados, quatro iluminadas em um café ou em uma festa ou em um 8M (8 de março, dia internacional das Mulheres)? A marcha e o discurso são importantes, mas também são importantes a orgânica, a formação política e até a espiritualidade.

Como o feminismo comunitário se diferencia do feminismo eurocêntrico?

O feminismo nasceu na Europa, a partir da Revolução Francesa, em 1789, e do Estado moderno. Como, a partir de 1500, há um domínio colonialista transnacional e eurocêntrico em todo o planeta, existe também um domínio no plano dos conceitos, dos paradigmas de luta. Não há outro pensamento revolucionário possível para analisar o capitalismo senão o marxismo. Não há luta mais vanguardista para as mulheres do que o feminismo. Mas isso é mentira. Precisamos reconceitualizar o feminismo, porque, se o feminismo se define como a luta das mulheres após 1789, e nós, que não nascemos nem na Europa nem em 1789? Para nós, o feminismo comunitário é a luta de qualquer mulher, em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo da história, que luta e se rebela contra um patriarcado que a oprime ou pretende oprimir.

Em 1500, 1600, nossas avós, nos territórios de Abya Yala, já estavam se rebelando contra o patriarcado. Quando os portugueses chegaram aqui ou os espanhóis chegaram na Bolívia, quando percebemos que eles eram invasores e dominadores, o povo resistiu e as mulheres também se levantaram. Muitas mulheres indígenas guerreiras lutaram contra os portugueses, mas são esquecidas.

Na Abya Yala, até 1492 ou 1500 havia uma cultura, uma língua, um modo de vida que não veio da Europa. Então, essa primeira concepção de tempo e espaço – lá Europa, aqui Abya Yala – nos produz como lutadoras para posicionar nossos corpos, nossa história, nossos pensamentos e desejos. Nós não somos alunas da Europa.

Mas precisamos entender que estamos em um mundo globalizado e, se não levarmos isso em conta, podemos cair em uma folclorização, em um reducionismo do nosso próprio pensamento. Por exemplo, se nós dissermos “as europeias têm o feminismo, e nós, em nosso território, temos Q’amasa Warminanaka”, que no idioma aimará significa “a força das mulheres” – mas isso quem sabe somos nós –, o mundo eurocêntrico, colonialista e racista, pode ouvir isso e dizer: “Ah, indígenas, folclore. Então vocês vão cantar? Dançar? Vender artesanato?”. Nós poderíamos nos nomear assim, mas quem nos entenderia?

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/na-bolivia-um-feminismo-que-descoloniza-as-americas/

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