Brasil, país do futuro? Sim, mas não como se pensava. Filósofo aponta que, no neoliberalismo, mundo tornou-se um grande Brasil – universalizou-se a ordem social brutalmente racializada e desigual que nos era peculiar. Sortearemos 2 exemplares do livro
Por: Guilherme Arruda
Os países centrais não parecem mais conseguir se livrar das múltiplas crises em que se meteram desde 2008. Com isso, vem ganhando força a imagem de um Primeiro Mundo que cada vez mais se espelha na autoritária, desigual e racista estrutura social do… Brasil. A mundialização da forma brasileira de explorar e oprimir. Mais recentemente, essa imagem apareceu em ensaios como The Brazilianization of the World, publicado por Alex Hochuli (dono, por sinal, do ótimo podcastAufhebunga Bunga) na American Affairs e comentado até pela grande mídia nacional. Apareceu também em um meme bastante replicado por aí.
A origem dessa ideia, porém, é um pouco anterior. Sua aparição mais instigante na crítica nacional aconteceu em A fratura brasileira do mundo – visões do laboratório brasileiro da mundialização, ensaio de Paulo Arantes agora relançado pela Editora 34. Publicado originalmente em 2001, em coletânea organizada por nosso colaborador José Luís Fiori, o texto retorna agora em edição própria, com posfácio do professor de filosofia da UFRJ Marildo Menegat.
Operando nas disjuntivas exploradas por Roberto Schwarz em seus escritos sobre a formação nacional e antes ainda por outros autores, o professor de Filosofia da USP observa: durante todo o século XX, a consigna “Brasil, país do futuro” hegemonizou nosso imaginário político, se orientando por noções de desenvolvimento, prosperidade e bem-estar que inevitavelmente chegariam até o nosso berço esplêndido por razões assentadas em umas ou outras características de nossa sociedade. Da direita à esquerda, de Gilberto Freyre a Celso Furtado, encontram-se traços dessa esperança no devir nacional.
Ironicamente, o futuro era mesmo da pátria, mas em outro sentido. O mundo é que acabou por “tornar-se um imenso Brasil”, para parafrasear Ruy Guerra e Chico Buarque. Ou, pelo menos, é esta a interpretação de cada vez mais intelectuais e acadêmicos. Arantes mapeia os caminhos dessa tese, que dos anos 90 em diante (não por coincidência, tempo da vitória “final” do neoliberalismo sobre o socialismo e outros projetos alternativos de sociedade) vai ganhando cada vez mais audiência.
A partir do advento da era neoliberal, Edward Luttwak, Michael Lind, Christopher Lasch e Richard Rorty e vários outros começaram a notar os sinais: uma elite inculta e sem projeto estratégico, que paulatinamente se isola do resto da sociedade; a míngua das classes médias, cada vez menos numerosas e mais inseguras de sua posição social; a crescente massa, majoritariamente não-branca, que vive em amarga pobreza; a imobilidade social, que cruza critérios de raça e classe, sustentada por extrema violência. Os rasgos de Brasil chegavam ao centro do Ocidente. A maior parte dos adeptos da tese da brasilianização provinha dos Estados Unidos, já à época mais afetado que a Europa pelo fenômeno – principalmente desde Reagan –, ainda que europeus como Ulrich Beck também tenham se servido da ideia.
Se um segmento do pensamento modernizante entendia o Brasil como um país atrasado, aqui já se percebe que o Brasil está mesmo bem adiante. Sua formação econômico-social precedeu as sendas que todas as nações viriam a trilhar séculos depois. Arantes recorre às pertinentes observações de Caio Prado Júnior sobre o sentido da colonização. Nem feudal nem semifeudal, o Brasil Colônia é um exemplo precoce de sociedade cuja lógica de funcionamento é inteiramente voltada para o mercado mundial. O capitalismo nasceu aqui, na terra das ideias fora do lugar, dos argumentos liberais de intelectuais-senhores-de-engenho em favor da manutenção de milhões na condição de escravos, e esta face do sistema agora se espalha por todos os continentes.
Empilhando contradições, o fenômeno de abrasileiramento (e, portanto, aprofundamento das desigualdades) da estrutura social do mundo veio na mochila de uma reorganização sistêmica que prometia riqueza para todos. A grande falsa promessa do neoliberalismo foi a “primeiro-mundização” dos pobres e subdesenvolvidos de todas as regiões do planeta.
Como ficam agora os italianos, que de Silvio Berlusconi em diante foram de mal a pior? E os estadunidenses, que, não achando Reagan o bastante, elegeram Trump? E os demais pujantes e fortes Estados-símbolo da superioridade ocidental, todos cada vez mais economicamente estagnados, desindustrializados, com o tecido social esgarçado e presos em modelos políticos comprometidos até a medula com o privilégio dos poucos ricos e a submissão dos muitos pobres? Vendo daqui do laboratório desta mundialização cruel, os problemas que eles enfrentam no Norte parecem, em certa medida, bem reconhecíveis.
Instigante desde sua primeira publicação, o ensaio de Paulo Arantes é cada vez mais relevante – e, por isso, a reedição feita pela Editora 34 chega em boa hora, subsidiando as reflexões dos que buscam destrinchar e combater os problemas sistêmicos que avultam. De 2001 para 2023, certas questões discutidas no texto só se aprofundaram – ainda que, em outras, começamos a encontrar saídas –, e sua leitura, combinada com a de outros analistas contemporâneos dos descaminhos do capitalismo, pode ser bem frutífera.
Veja em: https://outraspalavras.net/blog/paulo-arantes-e-a-brasilianizacao-do-mundo/
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