O caso do pijama da Riachuelo que emulava uniforme de campos de concentração nazistas levanta questões sobre os riscos de banalização e dessensibilização em relação a esses símbolos no mundo da moda.
Por: Jéssica Moura | Crédito Foto: Imago/R. Wölk. Camiseta com símbolo nazista
Ao circular entre as araras de uma loja de departamentos em São Paulo na noite de 10 de setembro, Maria Eugênya Pacioni se deparou com uma cena que a deixou espantada: várias peças de um conjunto de camisa e calça listradas em azul e branco. “Parecia que estava em uma vitrine do museu do Holocausto “. Por isso, ela, que é pesquisadora de Cultura Material e do Consumo da Universidade de São Paulo (USP), sacou o celular, fez uma foto e publicou a imagem em seu perfil no X, antigo Twitter.
“Não escrevi, em um primeiro momento, da relação com o uniforme que os nazistas davam às vítimas, mas era óbvio”. Em pouco tempo, a postagem gerou impasse entre os usuários e alcançou 126 mil curtidas e 1,8 mil comentários. Enquanto parte dos internautas se escandalizou com a imagem, outros responderam com ironia: “Se a pessoa achar legal, compra. Eu acho que isso não tem nada a ver”, escreveu uma seguidara.
Pacione pondera que nas coleções de estações como primavera-verão, é comum que as roupas tenham esse padrão de listras azuis e brancas, que remetem aos marinheiros. Mas ressalva: “quando você olha para o conjunto de mangas longas, a espessura das listras, o tom acinzentado, e diante de toda a divulgação do que aconteceu na Segunda Guerra, é muito preocupante que as pessoas não remetam ao Holocausto”.
Diante da reprovação nas redes sociais, em 11 de setembro a Riachuelo informou por meio de uma nota à imprensa que iria colocar as roupas das lojas físicas e do e-commerce.
“Em nenhum momento, houve a intenção de fazer qualquer alusão a um período histórico que feriu os direitos humanos de tanta gente. A escolha do modelo das peças e da cartela de cores realmente foi uma infelicidade”, disse o texto. “Pedimos desculpas a todas as pessoas que se sentiram ofendidas pelo que o produto pudesse ter representado”.
Estratégia de venda
Mesmo que não seja possível ser categórico quanto à intenção da marca de associar o conjunto com a estética nazista , o professor de Filosofia e pesquisador da extrema direita, Renato Levin-Borges, diz que a polêmica é uma estratégia de marketing para colocar produtos em evidência nas redes sociais, onde está o público-alvo dessas empresas de fast fashion.
“Dentro da economia da atenção, a Riachuelo se tornou um assunto e está se beneficiando disso. É um cálculo de marketing que desconsidera questões éticas”, afirma. “Acho bastante problemático porque o regime nazista se baseia na estética, pelos núcleos e símbolos”.
Levin-Borges explica que os adeptos do pensamento da direita invalidaram as críticas feitas ao episódio, sob o argumento de que é algo corriqueiro, e assim, tornaram aceitáveis na cultura ícones associados ao nazismo. “A defesa de teses do nazismo não acontece de maneira crua, mas na dimensão cultural. A estratégia que adotamos para entrar no debate público é defender e fazer símbolos e ideias circulares”.
Associação recorrente
Essa não é a primeira vez que uma marca é alvo de críticas por vender produtos que emulam símbolos do nazismo . Outras empresas já foram acusadas por consumidores pela prática. Foi o caso da Zara, em 2014, quando a empresa vendeu um pijama listrado com uma estrela de Davi amarela. Sete anos antes, a mesma rede de lojas vendia uma bolsa feminina com uma suástica bordada.
Também em 2018, a varejista Lança Perfume lançou uma coleção de roupas parecidas com uniformes militares alemães chamada de “Uma Noite em Berlim”. “Todos esses usos têm um contexto. Muito embora a suástica, por exemplo, tenha origem hindu, no Ocidente a tendência é associada ao regime nazista, assim como as listras”, ressalta o professor Renato Levin-Borges.
Segundo os especialistas, o contexto atual de ascensão da direita e ideias supremacistas em países como Brasil, Alemanha e Itália, favorecendo que ícones nazistas sejam repetidamente usados pela indústria da moda.
Um estudo da antropóloga Adriana Dias, da Universidade de Campinas (Unicamp), publicado em 2022, mapeou 530 grupos extremistas no Brasil. A pesquisa apontou o crescimento de 258% de células nazifacistas no país entre 2019 e 2021. Nos últimos anos, os casos de apologia ao nazismo, que é crime no Brasil, também subiram. Segundo dados da Polícia Federal, que após denúncias, entre 2019 e 2023, houve um salto de 75% na quantidade de casos investigados, passando de 12 para 21 neste ano.
Nazismo e cultura
Adolf Hitler ascendeu ao poder na Alemanha em 1933, inicialmente como chanceler pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP). Um dos recursos para se consolidar no poder e divulgar seu programa de perseguição a judeus, opositores, homossexuais e pessoas com deficiência foi o investimento em propaganda e controle dos meios de comunicação de massa, por meio de filmes, rádio, revistas.
Uma máquina de propaganda foi chefiada pelo ministro Joseph Goebbels. “Os filmes da cineasta alemã Leni Riefenstahl propagavam ideias de superioridade racial e instigavam o culto à personalidade de Hitler. Um estado totalitário não se contenta apenas com o domínio da política, ele também quer o domínio da cultura, da vida privada, das relações sociais . Sem isso, ele não consegue forjar a ideia de unidade entre nação e estado”, explica o historiador Bruno Leal, da Universidade de Brasília (UnB).
O professor de Estudos Literários da Unicamp Márcio Seligmann diz que, ao contrário do senso comum, a extrema direita se importa com a cultura. “Tanto Mussolini como Hitler deram bola para a construção de uma cultura de extrema direita, nossas sociedades têm a cultura como esteio de ações políticas”. Durante esse período do regime totalitário, que terminou com o fim da guerra em 1945, mais de 6 milhões de prisioneiros foram mortos em campos de concentração.
História apagada
Maria Eugênia Pacioni ressalta que, assim como no passado, a reprodução desses símbolos nazistas em mercadorias tem consequências práticas para a sociedade.
“Não é a memória sozinha que vai impedir que aconteça de novo uma ditadura ou holocausto, mas traz contexto histórico, ainda mais em era de fake news . Sem se atentar à História, é mais fácil ficar suscetível ao uso da estética e das imagens e cair novamente em um regime autoritário, que corroi a democracia por dentro”.
Para Márcio Seligmann, esses casos “trazem água para o moinho da direita”. Ele diz que “se a indústria cultural retira o significado de coisas que deveriam ser pensadas historicamente e dentro de seu contexto político, há uma dessensibilização, e mais facilmente as pessoas são cooptadas para discursos de direita”.
Reação
Por isso, os estudiosos do tema argumentam que episódios como esse do Riachuelo têm de ser reprovados. “A única forma de reforçar isso é apontar como essas estruturas funcionam através da estética e da cultura. Não é óbvio, pois não seria um triunfo se falassem tão abertamente”, diz Maria Eugênya Pacione.
Já Renato Levin-Borges afirma que a resposta da empresa deveria vir por meio de material educativo, inclusive divulgada nas redes sociais. “Se não fica desigual em relação à amplitude que a propaganda do produto teve”.
“O nazismo sobreviveu ao fim da guerra. Não é uma ameaça do passado, simplesmente, mas do presente ainda”, finalizou Bruno Leal.
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