Com relatório em que desconstrói falácias sobre a região, presidência espanhola do Conselho da União Europeia quer ajudar a tirar da gaveta acordo comercial com o Mercosul. “Chance de ouro”, afirmam economistas.
Por: Luis García Casas | Créditos da foto: Nelson Almeida/AFP. O Porto de Santos, no Brasil, é o maior da América Latina e porta de entrada para um mercado consumidor de mais de 200 milhões de pessoas
A relação comercial entre América Latina e Europa é atravessada por reservas e preconceitos de ambos os lados, que às vezes distorcem a percepção que uma região tem da outra.
Esse é o ponto de partida de um estudo realizado pelo think tank espanhol Real Instituto Elcano e comissionado pela Espanha no âmbito de sua presidência do Conselho da União Europeia (UE), órgão que reúne os ministros de governo dos países-membros do bloco, e cujos resultados foram apresentados na semana passada.
Uma das bandeiras da presidência espanhola do Conselho é, justamente, a “ampliação e diversificação” das relações comerciais com os latinos.
Percepção dos europeus sobre a economia não é amparada pelos dados
“A percepção generalizada na Europa é que a América Latina é um desastre político e econômico; que a China ocupou o vácuo deixado por Europa e Estados Unidos, porque eles abandonaram a região; e que as empresas que confiaram na América Latina e investiram ali se desvalorizaram”, resume o presidente do Real Instituto Elcano, José Juan Ruiz.
Essa percepção que Ruiz descreve é o ponto de partida do relatório, intitulado “Por que a América Latina é importante?”.
Ao longo de mais de um ano de pesquisa, foram entrevistados acadêmicos, empresários e políticos europeus. As opiniões colhidas foram comparadas com os dados econômicos para analisar se estão, de fato, amparadas na realidade. A conclusão é que não estão.
Entre os europeus que compartilham dessa visão pessimista sobre a América Latina, uma das exceções é a Alemanha. “Se perguntar aos especialistas aqui [na Alemanha], você não teria, em geral, essas respostas. Se perguntar ao público geral, talvez sim”, afirma à DW Orlando Baquero, presidente da Associação para a América Latina (LAV), organização com sede em Hamburgo. Baquero atribui esse quadro ao parco noticiário sobre a região.
Ele explica que a América Latina “tem riscos mais altos e diferentes dos que se vê na Europa, e algumas empresas não sabem como lidar com eles” – principalmente em episódios de instabilidade política. Baquero, porém, pondera que a região é grande e diversa. “Para cada modelo de negócios há um destino com possibilidades.”
América Latina não é nem desastre econômico, nem fracasso político
Embora a América Latina não tenha conseguido atingir, ao longo das últimas décadas, o nível de renda dos países mais desenvolvidos, Ruiz pondera que o mesmo aconteceu com “a maioria dos países emergentes”, à exceção da China. Segundo o especialista, a região teve um progresso notável no decorrer do século em termos comparativos – aqui também com as exceções de Argentina e Venezuela.
Ruiz destaca ainda que a América Latina, diferentemente dos países árabes ou do sudeste asiático, é a única região emergente buscando o desenvolvimento “a partir da democracia”. Houve crises políticas, instabilidade, divisão e polarização, mas não mais do que em outras regiões afetadas por uma certa tendência global de deslegitimação, argumenta ele.
“Em termos de desenvolvimento democrático e respeito aos direitos humanos, a América Latina está em primeiro lugar entre as regiões em desenvolvimento”, diz o relatório.
Ainda assim, os preconceitos persistem. Seis anos atrás, o Instituto Elcano já havia publicado um relatório com o mesmo título, numa tentativa de convencer as autoridades europeias da importância de estreitar laços com a região. Mas agora, dizem os pesquisadores, o momento é decisivo.
Acordo Mercosul-UE é “chance de ouro”
“A União Europeia tem uma chance de ouro para se transformar em um protagonista [econômico] na região”, argumentou durante a apresentação no Conselho da UE o ex-ministro da Economia uruguaio Ernesto Talbi. “A começar pelo acordo Mercosul-UE.”
Talvi, que é também ex-economista-chefe do Banco Central do Uruguai, destaca a importância de ratificar o acordo de livre comércio entre os blocos, algo que melhoraria as relações comerciais não só entre os dois lados do Atlântico, mas também entre os próprios latino-americanos, com a introdução de “iniciativas técnicas” como a harmonização de normas de origem ou a simplificação do comércio exterior e digital.
A estimativa, segundo o economista, é de que o comércio entre a América Latina e a Europa aumente 70%, e que entre os latinos esse crescimento chegue a 40%. “Isso [o acordo] é de tão evidente interesse mútuo que não pode não ocorrer”, disse Talbi.
Interesses particulares atrapalham acordo de livre comércio
“Sempre que algo é de interesse geral, há o bloqueio por interesses particulares que vão ser afetados”, lamenta Talvi, citando nominalmente o setor agropecuário europeu, liderado pelos franceses, que temem ver sua competitividade prejudicada perante os latinos, cujas regulações ambientais são menos restritivas.
Talvi sugere compensações aos setores afetados como solução para “desbloquear esses obstáculos”. Em vez das tradicionais compensações econômicas, ele fala em oferecer “prazos fiscais ou de adaptação muito mais longos aos setores mais sensíveis”, para que todos os outros setores, onde não houver conflitos de interesses, possam se beneficiar do acordo.
“Acho que, uma vez que esses fluxos começarem a se mover, muitos desses medos se dissiparão”, afirma Talvi. “Há muito a ganhar. Este acordo é, hoje, o com o maior potencial de ganhos mútuos no mundo.”
Baquero, da LAV, concorda. “Creio que o contrato, tal como foi negociado, é muito benéfico”, avalia. “Vale lembrar que só o Brasil é um mercado de 200 milhões de pessoas no qual, sem o acordo, é muito difícil entrar. Os brasileiros têm uma expressão para essas travas aos negócios: o ‘custo Brasil’.”
Para Baquero, o acordo melhoraria tanto a dependência agropecuária da América Latina em relação à China quanto a diversificação de fornecedores na Europa – este último ponto particularmente sensível desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, que botou em xeque a dependência europeia do gás de Moscou. “Não queremos que nos aconteça o mesmo que nos aconteceu com o gás russo na Alemanha”, diz Baquero, recordando o aperto que o país passou nos primeiros meses da guerra.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/qual-a-import%C3%A2ncia-da-am%C3%A9rica-latina-para-a-europa/a-67389134
Comente aqui