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“Racismo recreativo é ódio sem manchar imagem de brancos”

Termo ganhou notoriedade após vídeo envolvendo crianças negras. Em entrevista à DW, Adilson José Moreira afirma que humor racista é uma forma sutil de discriminação difícil de responsabilizar criminalmente.

Por: Matheus Moreira | Crédito Foto: Allison Sales/dpa/picture aliance. Manifestantes antirracistas se reúnem em frente ao Consulado Geral da Espanha em São Paulo em protetso contra os ataques racistas ao jogador brasileiro Vinicius Junior, do Real Madrid

O termo “racismo recreativo” ganhou notoriedade recentemente após o caso de duas tiktokers que gravaram a si mesmas entregando bananas e macacos de pelúcia para crianças negras. O caso, que aconteceu no Rio de Janeiro e veio à tona no fim de maio, é investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) sob suspeita de racismo ou injúria racial.

Racismo recreativo é tema de um dos livros de Adilson José Moreira, professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em direito pela Universidade de Harvard. O conceito, segundo Moreira, refere-se ao meio pelo qual a discriminação racial se manifesta através do humor.

“O racismo também se manifesta por meio de mensagens, de gestos, falas e atitudes que não são abertamente racistas”, destaca Moreira. Em entrevista à DW, pesquisador fala sobre diferenças entre os conceitos que envolvem racismo, como funciona a prática e qual seu impacto sobre em crianças e adultos negros.

DW: O que é racismo recreativo?

Adilson José Moreira: O racismo é um sistema de dominação social que tem dois propósitos fundamentais: garantir que vantagens competitivas e respeitabilidade social sejam atributos exclusivos de pessoas brancas.

Já o racismo recreativo é um tipo de política cultural que tem como objetivo expressar desprezo, ódio e condescendência por pessoas não brancas, mantendo, porém, uma imagem positiva de pessoas brancas sob o argumento de que todas as formas de humor são benignas. Legitimando, assim, a reprodução de hierarquias raciais por meio da degradação moral de pessoas não brancas.

No livro Racismo Recreativo, o senhor cita o racismo aversivo como parte do racismo recreativo. Qual é a diferença entre esses conceitos e como eles se comunicam?

A teoria do racismo aversivo surgiu nos Estados Unidos para descrever como o processo de socialização após o fim do sistema oficial de segregação continuou influenciando a percepção de brancos em relação a negros. O que levou ao que existe hoje [racismo aversivo]: pessoas brancas que dizem não ser racistas e até lutam por igualdade racial, mas não têm negros em seus círculos sociais e, na esfera privada, se relacionam apenas com pessoas brancas.

Embora essa teoria tenha se desenvolvido nos EUA, aplica-se perfeitamente ao Brasil. Porque temos no país a influência da ideologia da democracia racial [mito de que não há discriminação no país devido à miscigenação].

O que está por trás do racismo recreativo é o racismo aversivo que aparece, por exemplo, no comportamento de uma pessoa que usa o humor racista de forma estratégica para incomodar uma pessoa negra e, para não ser classificada como racista, usa artifícios como dizer ter amigos ou familiares negros. Há, então, o racismo aversivo pelo humor. O humor é uma forma de comunicação e, neste caso, uma comunicação pelo desprezo, que por sua vez, revela ódio.

Em discussões sobre racismo, não é incomum ouvir o termo microagressão. O que são microagressões e como se relacionam com o racismo recreativo?

Ainda nos EUA, nas décadas de 60 e 70, houve uma tentativa de construção de um consenso sobre o que era o racismo. Sendo o racismo incompatível com a democracia e com o fim das leis de segregação, afirmava-se que o racismo tinha acabado.

Em 1972, reagindo a essa ideia, um professor e psiquiatra americano escreveu um artigo de oito páginas no qual desenvolvia o conceito de microagressões. Ele afirma que o fato de termos eliminado o regime oficial de segregação não significa que a cultura que legitimava esse regime tenha deixado de existir.

O racismo também se manifesta por meio de mensagens, de gestos, falas e atitudes que não são abertamente racistas e que são difíceis de caracterizar como discriminação direta ou indireta, mas que, ainda assim, expressam desprezo e ausência de reconhecimento de pessoas não brancas. Uma microagressão é, portanto, um ato que expressa o desprezo racial, mas que não é suficientemente grave para caracterizar crime.

O senhor escreve que há subdivisões no âmbito das microagressões. Quais seriam essas subdivisões?

Imagine que uma pessoa negra, nascida na Alemanha, é questionada por uma pessoa branca sobre de onde ela é. A resposta é “sou alemão”. Então, a pessoa branca pergunta, “sim, mas de onde você veio?”. Isso é um microinsulto [um tipo de microagressão], porque ser branco é o que é esperado como característica do povo alemão. Portanto, se você é negro, só pode ser estrangeiro.

Já um microassalto, podemos exemplificar com uma trombada de uma pessoa branca com uma negra na rua. A pessoa branca não pede desculpas, mas teria se desculpado se tivesse trombado com outra pessoa branca.

Agora imagine que uma pessoa negra praticante de religiões de matriz africana tem os valores morais e religiosos previstos na sua religião negados por uma pessoa cristã — religiosidade europeia e imposta pelo homem branco ao mundo. Essa negação indica que a crença daquela pessoa negra não tem valor e que o que interessa é o que a religião cristã, do grupo dominante, tem a dizer. Isso é uma microinvalidação.

Tudo isso revela que aquilo está por trás do racismo recreativo é a preservação da supremacia branca.

Na última semana, viralizou a história de uma tiktoker que filmava a entrega de bananas e macacos de pelúcia para crianças negras. O caso reacendeu o debate sobre racismo recreativo. Quais são os impactos dessas agressões em crianças e adultos negros?

O racismo é um fator que produz estresse emocional com graves consequências na vida de pessoas negras. Uma delas é a ansiedade. Vítimas de racismo podem sofrer de ansiedade pela expectativa de que serão discriminadas e desrespeitadas, levando a um estado de vigilância constante. O estresse emocional permanente produz alterações no funcionamento do cérebro.

Crianças negras começam a sofrer com o estresse emocional já na infância quando outras as chamam de macaco. Como essas violências acontecem ao longo da vida, isso causa o que pesquisas recentes chamam de trauma emocional, que corresponde a um processo histórico de discriminação que impacta pessoas negras biologicamente.

Quando analisamos o Brasil, vemos que as pessoas que mais cometem suicídio são homens negros, por exemplo. O racismo é uma experiência permanente de estresse emocional, e a classe social não protege as pessoas. Mesmo uma pessoa negra e rica sofre com esse estresse, porque haverá um embate direto na disputa de oportunidades sociais com pessoas brancas que, historicamente, ocupam espaços de prestígio.

Como lidar com o racismo recreativo? É possível responsabilizar quem pratica a discriminação com esse termo?

Em primeiro lugar, o problema é o sistema judiciário não aplicar a lei de maneira adequada, Precisamos educar os membros do sistema judiciário brasileiro, assim como policiais, delegados e promotores, que são majoritariamente brancos.

A outra coisa importante é o debate público e na mídia. Os mesmos meios de comunicação que reproduzem o racismo recreativo devem cumprir a sua função constitucionalmente prevista e utilizar o seu poder para dizer às pessoas que o uso do humor racista é incompatível com uma sociedade comprometida com a democracia.

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/racismo-recreativo-%C3%A9-%C3%B3dio-sem-manchar-imagem-de-brancos/a-65810312

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