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Romantizar esforços bem-sucedidos perpetua a desigualdade

O uso de casos raros de sucesso para falar por grupos inteiros valida a premissa da meritocracia, isenta governantes de suas obrigações e responsabiliza os próprios indivíduos pela desigualdade em que vivem.

Por: Vinícius De Andrade | Créditos da foto: Joacy Souza/PantherMedia/IMAGO

Há algumas semanas, escrevi uma coluna sobre como, dependendo da abordagem escolhida ao retratar casos de aprovações no ensino superior, veículos midiáticos podem aproximar ou distanciar os jovens das figuras que estão utilizando como exemplo.

Na época, notei que o tema caminhava muito para a questão da romantização do sofrimento e do excessivo esforço para alcançar a vaga em uma universidade, e fiz questão de deixar o gancho para um texto sobre esse recorte específico. Bom, chegou o momento.

Primeiro, como sempre, gosto de pintar o cenário da realidade que irei trazer para a discussão. O acesso ao ensino superior no país, especialmente ao ensino público, é indiscutivelmente desigual. Dessa forma, foram necessárias várias políticas de inclusão para tentar preencher os cursos com metade dos discentes oriundos da rede pública básica de ensino. Isso em um país em que há, pelo menos, quatro vezes mais jovens na rede básica pública do que na privada.

Reflexo da desigualdade brasileira

Nesse contexto, após “N” filtros sociais, quem começa a trilhar o caminho rumo à aprovação enfrentará desafios com os quais quem é da rede privada nem sonha, e poderá passar por questões tão básicas como precisar trabalhar para sobreviver. Didaticamente: gosto de falar que, para ingressar na universidade, jovens da rede pública enfrentam dois processos seletivos: o vestibular em si e um outro que é próprio, exclusivo para eles e que ilustra bem a desigualdade brasileira.

Dentro do grupo dos resistentes, vira e mexe surgem alguns belos “cases de sucesso”, como por exemplo: “jovem de periferia, preta e filha de doméstica, é aprovada em 15 universidades de medicina”, “ex-catador de latinhas se torna juiz” e “ex-faxineira se torna médica no hospital em que faxinava”. Já leu algo do tipo, né? Aposto que sim.

Nesse momento da discussão quero aproveitar para registrar: não estou tirando o mérito desses casos e nem dizendo que o melhor cenário seria o de esforço zero. Não é o que eu acredito e nem o que estou dizendo.

O problema não está nas pessoas por trás das histórias. Eu mesmo tenho uma grande amiga que tem uma história lindíssima e que emociona. Ela saiu de uma situação de extrema pobreza para ocupar hoje uma posição de grande destaque. Sua história é de muita luta e ela é, provavelmente, uma das pessoas mais persistentes e esforçadas que já conheci. Merece tudo o que conquistou, o que está vivendo e o que ainda irá viver.

Qual o problema então?

A conquista dela será utilizada por agentes com uma perigosa agenda: validar a premissa da meritocracia. Eles pegam casos fora da curva para falar por um grupo todo e vendem a ideia de que o único ingrediente para o sucesso é o esforço, e que todos, exatamente todos, têm as mesmas chances de chegar no lugar almejado, não importando, assim, o ponto de partida.

Alunos sentados separados em sala de aula escrevendo prova
Esforço é importante, mas não é o único ingrediente para chegar à universidade. Foto: Joacy Souza/PantherMedia/IMAGO

Esforço é sim um importante ingrediente e sempre há casos para corroborar o padrão: sair de um lugar de total pobreza e limitações para espaços elitizados e que eram, ou ainda são, majoritariamente ocupados por um grupo muito específico de pessoas.

No entanto, sejamos honestos: o esforço não é o único ingrediente. O discurso da meritocracia, nesse recorte, é raso, faz um desserviço e chega a ser até mesmo cruel.

Primeiro que nem todos iniciam do mesmo ponto de partida. Além disso, durante o caminho, variáveis diferentes irão afetar cada pessoa e não podemos subestimar o peso que cada uma delas terá na árdua trajetória. Por fim, é preciso falar sobre a questão do acesso à informação e às oportunidades. Estas, infelizmente, são um privilégio de poucos.

O efeito do discurso pautado na meritocracia

O problema exposto, na minha perspectiva, irá gerar duas perigosas consequências.

A primeira é o efeito que o discurso pautado na meritocracia terá nos jovens: “Me sinto muito desmotivada. Quando vejo todo o esforço que a pessoa teve e comparo com meu desempenho, sinto que não sou capaz. É realmente horrível como as matérias desse tipo influenciam nosso bem-estar, muitas vezes perco a vontade de tentar! Me vem o pensamento: Será que vale a pena mesmo? Será que eu também consigo?”, afirma Ana Raquel Ferreira Silva, estudante cearense.

Falei com vários jovens sobre o assunto. Alguns disseram que há, sim, o teor de motivação que chega com a difusão da conquista desses casos fora da curva. No entanto, todos foram enfáticos: o padrão criado, sendo medido pela régua dos fora da curva, é assustador e desmotivador. Os faz acreditar que, se não seguirem os exatos mesmos passos, passarem pelas mesmas dificuldades ou sofrerem tanto quanto, simplesmente não serão merecedores de conquistarem seus sonhos.

O segundo efeito é sistemático, sutil e bem mais grave: é preciso nos atentarmos que o uso desses casos, não coincidentemente, corroboram a ideia da meritocracia e tiram o foco do real problema.

Romantização do sofrimento nas histórias de sucesso

“Tentam romantizar a rotina estudantil exaustiva para encobrir a carência de infraestrutura física e de pessoal nas escolas, ao tempo em que vemos um adoecimento e esgotamento mental de tantos, além do sentimento de frustração quando o objetivo não é alcançado. Quando eu era adolescente, achava tão inspiradoras aquelas matérias do Fantástico, com uma narrativa linda de alguém que tanto lutou para conseguir realizar os sonhos. Eu costumava dizer para mim mesma: com esforço, eu posso conseguir. Porém, esse discurso responsabiliza de um jeito absurdo as pessoas para a realização ou não de suas conquistas; e o pior: isenta e tira a responsabilidade do Estado, dos governantes, como um todo, de cumprirem o seu papel.”

Acima compartilho a perspectiva de Karine Luana Amorim Braga, estudante alagoense. Fiz questão, pois ela retrata bem o efeito que estou tentando problematizar.

Em um cenário em que usamos casos fora da curva para falar por grupos inteiros, estamos isentando agentes de suas obrigações e responsabilizando indivíduos pela desigualdade em que vivem e por não “terem sido capazes” de realizar os próprios sonhos. Isso é muito grave e limita o avanço de mudanças estruturais.

É necessário que haja, de nossa parte, sempre um olhar crítico sobre a romantização do sofrimento por trás das histórias de sucesso em que tanto gostamos de nos envolver e que, de fato, tanto nos emocionam.

Podemos, sim, continuar nos emocionando e parabenizando os personagens protagonistas dessas narrativas. Eles merecem mesmo e podem abrir o caminho para os seus semelhantes. Acredito nisso e já vi acontecer vezes o bastante para acreditar.

O que não podemos mais nos permitir é perder as oportunidades de problematizar e responsabilizar o sistema que fez com que uma quantidade desproporcional, e desumana, de esforço e abdicação da vida pessoal fosse necessária. Não nos deixemos enganar: a leitura que devemos fazer desses “cases de sucesso” não é a de que está tudo bem e funcionando. Na verdade, sugiro que utilizemos como uma lembrança constante do quanto nosso país é desigual e que tentemos imaginar quantos milhares de outros simplesmente não conseguiram resistir a tantos obstáculos.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/romantizar-esfor%C3%A7os-bem-sucedidos-perpetua-a-desigualdade/a-65186077

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