O novo governo precisará reverter a terra arrasada no ensino e pesquisa — e a proteção da Amazônia será decisiva. Antes, porém, será preciso remover o entulho fascista que aparelha a Educação e deter o gravíssimo o êxodo de cérebros
Por: Eleonora Albano | Imagem: Antoninho Perri e João Marcos Rosa/AmazonFace
Esta série de ensaios se iniciou quando surgiram no país os primeiros laivos de otimismo em torno da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência. É uma alegria retomá-la depois que esse otimismo foi referendado pelas urnas e materializado na posse.
Recapitulemos que a defesa do possível destaque do Brasil na democratização da ciência no mundo baseou-se nos seguintes argumentos: 1) é, entre todos os países, do Sul e do Norte globais, o que possui a maior rede de universidades e institutos de pesquisa públicos; 2) é também o que possui a maior comunidade de cientistas engajados, a julgar pelas suas associações científicas e pelos seus sindicatos de docentes, pesquisadores e demais trabalhadores do setor, inclusive os pós-graduandos; 3) nessa comunidade, a pesquisa básica tem, cada vez mais, estimulado a pesquisa aplicada e a inovação com novas e arrojadas ideias; 4) ela é, provavelmente, a única em que a diversidade introduzida pelos programas de ação afirmativa vem inspirando novos rumos para a pesquisa.
Apesar de tantas razões para o otimismo, é inquietante constatar, agora, que os danos causados pela ultradireita à universidade, à ciência e à tecnologia, assim como à educação em geral, foram bem maiores que os esperados. Enquanto o capitão exorbitava da bufonaria, os militares lotados em funções civis voltaram diretamente a sua artilharia para a nossa Constituição, enfraquecendo-a ou desvirtuando-a a ponto de prejudicar todas as nossas instituições públicas. Para isso, bastou-lhes resgatar algumas das artimanhas jurídicas da ditadura militar e lançar mão de meios digitais de propagar a desinformação e o obscurantismo.
Por tudo isso, encontramo-nos diante da nossa última chance de varrer esse lixo da nossa história. Se golpistas, terroristas e obscurantistas continuarem impunes, o Brasil terá uma perda catastrófica e irreversível: fracassaremos em fazer a nossa parte no controle da crise climática e perderemos o crédito para exercer qualquer liderança na comunidade científica internacional.
É urgente – e imprescindível – que se apurem as responsabilidades por cada vida perdida, cada hectare de floresta abatido, cada manancial contaminado, cada linha da Constituição ameaçada ou adulterada, cada bem público depredado pelo terrorismo de estadoi. Só assim teremos chances de superar a nossa herança colonial, que, dando vez e voz ao racismo, ao patriarcalismo e ao escravagismo, nos impede de avançar rumo à sustentabilidade e à justiça social.
Um protagonismo resgatado em boa hora
É preciso reconhecer que o resultado da eleição presidencial deu ao Brasil uma chance única de resgatar o seu protagonismo numa discussão imprescindível à democratização da ciência no mundo: a proteção da Amazônia e a preservação da sua incomparável diversidade biológica, étnica, cultural e linguística. Trata-se de um clamor que tem corrido mundo; não podemos nos furtar à responsabilidade de ouvi-lo.
Como expus no ensaio precedente desta série, a base de conhecimento que a ciência brasileira vem construindo sobre a região já contém elementos suficientes para subsidiar políticas públicas que facilitem uma economia sustentável, com aproveitamento respeitoso dos saberes dos povos locais.
Além disso, a excelente recepção da mídia e da diplomacia internacionais ao discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido na COP 27 logo após a sua eleição, indicou um caminho, tão desafiador quanto promissor, para o reparo dos danos causados à educação, ciência, tecnologia e inovação brasileiras pela política de terra arrasada do último governo. Senão vejamos.
Visto que o mapeamento do território arrasado é uma condição sine qua non para a sua reconstrução, é prudente que essa se inicie onde o mapa já estiver ao menos esboçado. Esse é o caso da Amazônia. O seu papel na crise climática tornou-a a maior bandeira da resistência dos nossos cientistas ao governo negacionista e obscurantista. Isso a qualifica como prioridade máxima na reconstrução do sistema de pesquisa brasileiro.
Dois fatos sinalizam inequivocamente esse seu lugar. O primeiro é a atenção que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) lhe tem conferido nas suas reuniões e publicações. O segundo é a recente colaboração entre agências de fomento federais e estaduais para estimular a participação de pesquisadores de vários estados em estudos que abordem a terra, a gente e os recursos naturais da região.
Essa vontade coletiva está claramente expressa no Caderno 1907 da SBPC, Projeto para um Brasil Novo, lançado em julho passado, e no edital Iniciativa Amazônia + 10, lançado pelo Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) em junho passado.
A publicação da SBPC faz 25 referências explícitas à Amazônia, enquanto expõe e discute três questões julgadas essenciais para a saúde da sua fauna e flora, bem como dos seus 30 milhões de habitantes. São elas: (1) a obrigatoriedade de eliminar o desmatamento ainda nesta década; (2) a urgência de criar políticas públicas de restauração e reflorestamento; (3) a necessidade de fortalecer a formação científica local, recompondo e ampliando o financiamento às universidades e institutos de pesquisa de toda a região e incentivando a criação de programas de pós-graduação inovadores, ambiciosos e mesmo ousados.
O edital colaborativo das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) congregou 20 unidades federativas, a saber: Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins. O investimento conjunto foi de 52 milhões de reais. A esses somaram-se 12 milhões contribuídos pelo CNPq, sob forma de bolsas de estudo e pesquisa.
Inscreveram-se 152 projetos, representando a resposta de cerca de 500 grupos interestaduais de pesquisa aos três eixos temáticos propostos pelo edital: 1) território; 2) povos da Amazônia; e 3) fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis. Inicialmente, os 100 projetos habilitados para avaliação passaram por uma triagem baseada em pareceres de assessores ad hoc. Um comitê de renomados especialistas nas áreas envolvidas tomou a decisão final, selecionando 39 deles.
Essa iniciativa inédita criou um novo modelo de desenvolvimento científico para a Amazônia, que pode ser facilmente expandido e aperfeiçoado para facilitar a adesão de cientistas e agências de fomento do exterior. Como sabemos, muitos países do Norte e do Sul globais têm interesse em colaborar com o Brasil na regeneração e proteção dos biomas amazônicos. Ademais, os cortes no financiamento à pesquisa são um problema mundial, o que estimula a multilateralidade das equipes e do financiamento.
Entretanto, esse exemplo histórico de criatividade, resistência e resiliência dos nossos cientistas e gestores de ciência pode cair no vazio se a região não for alvo imediato de uma política eficaz de tolerância zero às ações criminosas da pecuária, do agronegócio e da mineração.
A última, em particular, estabeleceu uma forma de predação muito difícil de erradicar. Conforme demonstrou o cientista político José Raimundo Trindadeii, ela aufere lucros exorbitantes, devido à associação perversa entre o baixo custo e a desregulação. Esses lucros propiciaram a financeirização das commodities minerais brasileiras no mercado global, o que alimenta a demanda e realimenta a devastação.
Não bastassem os efeitos econômicos adversos da mineração, a sua desregulação constitui uma séria ameaça à saúde das comunidades indígenas e ribeirinhas da região.
Por exemplo, no rio Tapajós, o mercúrio lançado ilegalmente pelo garimpo do ouro vem contaminando as águas e peixes e, com eles, o povo mundurucu. Crianças e adultos dessa etnia vêm apresentando um conjunto de sintomas neurológicos denominados doença de Minamata, cidade pesqueira japonesa cujas águas foram contaminadas pelo mercúrio lançado por uma fábrica de plástico por volta de 1950iii. Sabe-se também que essa contaminação já chegou à Guiana Francesaiv, prejudicando o seu meio ambiente e a sua população.
Como veremos abaixo, um conjunto de medidas emitidas sub-repticiamente pelo governo passado, tais como decretos, portarias, resoluções, etc., facilitou deliberadamente a grilagem das terras utilizadas na agricultura e na pecuária, assim como o garimpo ilegal. Particularmente preocupante é o decreto 10.966, de 11 de fevereiro de 2022, cuja pomposa ementav rotulou de “artesanal” o garimpo de pequeno porte, a fim de facilitá-lo e intensificá-lo, realimentando a financeirização.
Mas a espoliação irrefreada da Amazônia e os cortes drásticos de verbas não são o único legado nefasto do governo de extrema direita à comunidade científica brasileira. Para que o sistema público de ensino e pesquisa volte a funcionar nos níveis anteriores ao golpe de 2016, é preciso enfrentar dois outros problemas ainda mais difíceis de equacionar.
O primeiro é o aparelhamento do ensino público em todos os níveis. Não basta demitir ou neutralizar aqueles que se apropriaram de cargos no ensino superior público planejando privatizá-lo e/ou vinculá-lo à ideologia de extrema direita. É preciso também deter aqueles que tentam inocular o autoritarismo na educação de qualquer nível.
O segundo problema é o agravamento acentuado da fuga de cérebros no país. Uma razão para tanto é a austeridade praticada desde 2016, que reduziu brutalmente as bolsas de estudo, os auxílios à pesquisa e os postos científicos disponíveis. Outra razão é que, a partir de 2019, o governo federal passou a empreender uma perseguição política sem trégua à comunidade científica.
Na próxima seção, examinaremos a urgência de desarticular o aparelhamento do nosso sistema educacional pela extrema direita. Isso não só conteria planos militaristas e/ou golpistas mas também ofereceria respaldo a cientistas e intelectuais evadidos dispostos a regressar. Como veremos a seguir, esse regresso, mesmo que parcial, poderia otimizar o aproveitamento da contribuição da diáspora científica ao país.
Outra prioridade inadiável: remover o entulho fascista da educação
Para refletir sobre a forma como o governo passado golpeou a educação, é preciso esquadrinhar o processo de produção do entulho fascista que solapou a nossa democracia nos últimos quatro anos.
Reedições do fascismo adaptadas aos novos tempos estão ocorrendo em todo o mundo. São provocadas e alimentadas, principalmente, pela falência do capitalismo financeiro, que, na esteira do desemprego, arrasta insegurança, ressentimento, hostilidade e competição – solo fértil para as autocracias. Esse processo se agrava ainda mais na América Latina, historicamente servil e economicamente dependente dos países coloniais. No Brasil, o agravamento é máximo, dada a persistente influência da ditadura militar, que permanece atuando nos bastidores desde o fim do regime.
A impunidade dos crimes contra a humanidade cometidos pelos militares nos seus 21 anos de poder deu-lhes a oportunidade de continuar chantageando a república com ameaças de golpe, sob os auspícios velados das elites, a cujos interesses sempre serviram e ainda servem fielmente.
Na minha opinião, a preparação ininterrupta da caserna para uma eventual retomada do poder é o que melhor explica o sucesso de um governo tantas vezes dito desgoverno em desmontar significativamente, em tempo recorde, a nossa frágil democracia, por regulamentada que estivesse a desde 1988.
É evidente que o mandatário passado, um homem tosco, despreparado até como militar, não pode ter sido, ao mesmo tempo, o mentor e o executor do desmonte. Precisamos, portanto, avaliar a extensão da destruição, a fim de melhor refletir sobre a sua autoria.
Felizmente, a parte mais difícil do trabalho já está disponível, num extenso relatóriovi, produzido por um grupo de pesquisadores da UFRJ liderados pelo cientista político Josué Medeirosvii. Elas/es reuniram e analisaram, com admirável rigor, mais de 20 mil documentos que atestam a meticulosidade com que o desmonte foi executado pelo governo federal, evidenciando a existência de um planejamento. A documentação concerne uma vultosa massa de medidas infralegais, entre decretos, portarias, resoluções e instruções normativas. As/os pesquisadoras/es organizaram-na ao longo de quatro eixos, a saber: o orçamento, o público, as instituições e as ideologias.
Salta aos olhos que a educação foi violentamente atacada em todos os quatro eixos. Além de reduzir o orçamento em 44 %, as medidas abriram caminho à privatização de escolas públicas, desobrigaram o MEC de prestar contas à sociedade, e preconizaram abertamente o ensino baseado em valores conservadores. Como assinalam as/os pesquisadoras/es, o entulho autoritário acumulado é suficiente para promover a curto prazo uma mudança estrutural na educação de primeiro e segundo graus de modo a permitir que milhões de crianças e adolescentes sejam formados dentro de um pensamento único de viés fortemente conservador.
Ilustram-no duas iniciativas já bastante adiantadas: o projeto de legalizar o chamado homeschooling, sustado pelo STF em 2018; e a implantação do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, cuja meta era criar 216 delas até 2023.
Atualmente, o projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar, aprovado pela Câmara, encontra-se no Senado à espera de votação. Já o ensino cívico-militar é ministrado por escolas civis públicas cujos gestores optaram por aderir ao programa, lançado pelo MEC com farto financiamento em 2019. Entre as vantagens alegadas estão a colaboração de policiais na manutenção da disciplina – o que, segundo os seus proponentes, teria o efeito de reduzir a delinquência juvenil. Como é de esperar, os alvos são as camadas mais pobres da população.
A militarização não começou no governo Bolsonaro. Faz parte de um amplo programa de privatização das instituições públicas em geral e das escolas de primeiro e segundo grau em particular. Iniciou-se no governo Collor e cresceu desde então, com desaceleração, mas sem interrupção, nos governos petistas.
O seu intuito é reprimir a revolta dos jovens das periferias e atrair investimentos privados, selando parcerias que facilitem a posterior privatização. Um forte indício de que esse tipo de escola tem muitos apoiadores e financiadores é que, no apagar das luzes do governo passado, o MEC anunciou novas medidas de ampliação do programa.
Tais medidas requerem combate urgente. São mais uma tentativa de solapar as bases da democracia educacional cuja construção já ia adiantada antes do golpe de 2016. Evidentemente, jovens de hábitos conservadores que tenham sido treinadas/os para a submissão perdem contato com os seus direitos e tendem a ignorar as oportunidades disponíveis nos sistemas federal e estaduais de universidades públicas. Uma universidade com alunas/os oriundas/os, na maioria, das classes média e alta torna-se alvo fácil de campanhas privatizantes.
Observe-se que a equipe de transição do governo empossado tem pleno conhecimento do relatório do Revogaço e já se pronunciou a favor do engavetamento do homeschooling e da revogação do Decreto 10.004, de 5 de setembro de 2019, que instaurou o Programa Escolas Cívico-Militares. Com isso, não se salvam apenas os direitos de uma geração de baixa renda que vem sendo prejudicada e perseguida; salva-se também o potencial de diversificação da produção intelectual e científica do país.
O Brasil tem chances de liderar a democratização da ciência no mundo porque construiu um sistema de ensino público capaz de permitir que crianças e jovens de quaisquer classes, credos, cores e gêneros aspirem a uma participação efetiva na construção da nossa ciência e cultura. A multiculturalidade fomenta a renovação de ideias, fertilizando-as com imaginários distintos do dominante. É por isso que a universidade democrática, fortemente atacada nestes quatro anos, precisa estar entre as prioridades da pauta da reconstrução.
Há atualmente dois textos produzidos pelo governo passado e/ou por seus apoiadores que deixam claro que o desmonte em curso da nossa democracia visa alienar a juventude desta e das próximas gerações. Um é um projeto de renovação da tutela dos militares, com duração prevista para mais de uma década. O outro é a PEC 32-2020, que pretende acabar com o serviço público, sob a égide da reforma administrativa. Ambos atingem em cheio a educação e a saúde públicas.
A politização histórica das Forças Armadas, além de manifestar-se nos quase 7 mil cargos civis ocupados por militares no governo do capitão, foi explicitada num texto que o historiador Manoel Domingos Neto chamou de “delírio militarista”viii. Trata-se do projeto de um grupo do alto escalão das Forças Armadas que visa a defender o Estado contra supostos inimigos internos, ou seja, contra todos os que contestem o conservadorismo dos seus autores – herdeiros diretos da ditadura militar.
Assim, o primeiro dos textos mencionados, intitulado “Projeto de Nação – o Brasil em 2035”ix, apresenta, nas suas 97 páginas, os planos de longo prazo dos militares. Foi lançado em maio passado por três institutos movidos a verbas públicas, a saber: o Sagres, o Federalista e o General Villas Bôasx. Parece, de fato, delirante, pois pretende ser uma avaliação retrospectiva do quanto o Brasil terá progredido em 2035, quando supostamente se tiverem aplicado as diretrizes ditadas por uma metodologia de prospecção denominada “Ferramentas Integradas de Gestão Estratégica”, atribuída ao Instituto Sagres.
Causa espécie que o resultado da ficção, exposto sob a rubrica “temas estratégicos”, dedique apenas oito páginas às funções precípuas das Forças Armadas, i.e., a defesa e a segurança – e dê espaço bem maior a uma crítica vaga e superficial da nossa academia, acusada de defasagem “em relação aos países mais desenvolvidos no que tange a graduados e pós-graduados, basicamente, em relação a ciências exatas” (sic). A conclusão preconiza a desestatização do sistema de ciência, tecnologia e inovação até 2035, por meio de parcerias público-privadas.
Tudo isso seria apenas um delírio inconsequente se os últimos quatro anos não tivessem assistido a uma reedição do modo de governar da ditadura militar, que desmonta instituições por meio de bloqueios orçamentários, aliados a sucessivas e silenciosas medidas infralegais. Assim foi destruída a Constituição de 1946. Assim também foi golpeada a Constituição de 1988 – com a diferença de que, desta vez, não se chegou ao extremo dos atos institucionais. De qualquer forma, um “revogaço”, como enfatizaram os pesquisadores da UFRJ, é o único meio de reverter a sua desfiguração.
Igualmente urgente é derrubar a PEC 32/2020, que extingue a estabilidade no serviço público, reservando-a às “carreiras de Estado”, a serem definidas posteriormente por lei complementar. Tendo em vista que os profissionais da educação e da saúde jamais foram incluídos nas tentativas de definir esse tipo de carreira, o SUS, assim como as escolas públicas de todos os níveis, seriam privados da sua raiz mais profunda, constituída pelos seus quadros permanentes.
Quem se disporia a empenhar toda a dedicação que essas atividades exigem sem qualquer promessa de estabilidade futura? Nesse cenário, a sangria de talentos teria dois rumos certos: as empresas nascidas da privatização dos sistemas desmontados, onde a precarização é certa, ou a porta de saída do país. Assim como a Índia, o Brasil passaria a abastecer os países ricos com cientistas e profissionais de saúde de sólida formação em busca de postos em falta em casa.
Em suma, o Brasil “ascenderia”, da posição de pária em que Bolsonaro o lançou, a um típico país de segunda categoria. Certamente é isso que querem os militares e seus acólitos, a fim de continuar loteando o nosso patrimônio entre aventureiros daqui e do resto do mundo. Haja vista a Instrução Normativa nº 12, de 31 de outubro de 2022 (N.B.: trata-se do dia seguinte à eleição presidencial), em que a Funai e o Ibama estabeleceram um suposto “Plano de Manejo Florestal Sustentável Comunitário”, liberando a exploração de madeira em terras indígenas.
Porém, não foi esse o recado dado pela maioria do povo brasileiro às urnas na véspera. Ao contrário, os eleitores mostraram que anseiam por mais oportunidades, mais educação, mais ciência, mais cultura – o que exigirá uma recomposição rápida e eficiente de todos os degraus da nossa democracia educacional.
O que se perdeu com a redução de quase metade do orçamento da educação não foi só a perspectiva de novas vagas discentes e docentes. Foi também – e sobretudo – a permanência das/os desprivilegiadas/os que já estavam no sistema graças aos dispositivos legais que garantem os seus direitos. Assim como a merenda escolar é essencial para a saúde física e mental da criança no ensino fundamental, a moradia estudantil, o transporte e as refeições gratuitas são essenciais para a saúde física e mental das/os jovens que tiveram acesso à universidade pública graças a leis como a das cotas.
O governo passado inviabilizou esse tipo de suporte, pois os recursos remanescentes após os cortes do orçamento são insuficientes para pagar até as contas de luz e água das instituições envolvidas. Portanto, na recomposição da educação pública, a recuperação financeira é indissociável da recuperação demográfica, já que alguns excluídos históricos voltaram a sê-lo. É preciso, antes de mais nada, garantir que a adesão da população de baixa renda à educação pública volte aos níveis anteriores ao golpe de 2016 e à pandemia.
Ainda outra prioridade inadiável: mapear e organizar a diáspora científica
Para cumprir a missão de liderar a construção de uma nova ciência – ecológica, democrática e sensível às causas sociais – o Brasil não deve mais tolerar o desperdício dos seus investimentos em formação de pessoal de alto nível. Deve, ao contrário, atrair de volta os evadidos que queiram desenvolver aqui as perspectivas de trabalho abertas por atividades exercidas fora. Ou, para os de fato já radicados em outros países, deve estimular conexões com pares das nossas universidades e institutos de pesquisa, através de grupos de trabalho interinstitucionais que versem sobre temas de interesse para a nossa sociedade. Antes, porém, é preciso reconhecer a dificuldade de reverter a fuga de cérebros sofrida pelo país nos últimos anos e construir uma estratégia para enfrentá-la.
Ainda que a comunidade científica brasileira tenha plena consciência de que os seus emigrados já constituem uma diáspora, pouco se sabe sobre o tamanho e as áreas do conhecimento dessa população. Quando a pressão migratória decorria sobretudo da recessão exportada pela bolha imobiliária estadunidense para o resto do mundo em 2008, tinha-se a impressão de que os brasileiros a buscar oportunidades no exterior eram os profissionais ligados às ciências exatas e às tecnologias. Com o advento da onda conservadora que aqui se manifestou com a ascensão do presidente fascista, profissionais da filosofia, das artes e das ciências humanas e sociais passaram a ser perseguidos e emigrar sistematicamente.
Essas são, contudo, observações meramente impressionistas, recolhidas em conversas informais com colegas concernidos. Na verdade, a pesquisa demográfica que descreve esse fluxo migratório ainda é incipiente, apesar de contar com o apoio de instituições importantes, como a SBPCxi e a Academia Brasileira de Ciênciasxii. É que as bases de dados necessárias ao levantamento dos dados estão espalhadas pelo mundo e padecem de um atraso no Brasil, devido à exclusão das questões de migração internacional do Censo de 2020. O campo, que não pode prescindir do apoio do Ministério das Relações Exteriores, foi muito prejudicado pelo obscurantismo do governo passado.
Felizmente, há setores da diplomacia brasileira que resistiram a mais esse ataque. Um exemplo é uma iniciativa recente da Embaixada do Brasil na Áustria. Trata-se do relatório de um projeto denominado Mapeamento da Diáspora Brasileira de Ciência, Tecnologia e Inovação na Áustria, na Eslováquia e na Eslovêniaxiii, publicado em setembro de 2021. O objetivo é fomentar a troca de experiências da comunidade científica expatriada, por meio de redes e contatos diretos, e estimulá-la a criar uma associação que represente os interesses dos cientistas brasileiros nesses países, a qual poderia inspirar iniciativas análogas no resto da Europa.
Com a participação de 83 respondentes, apurou-se que a maior concentração dessa diáspora reside nas engenharias (38%), seguidas pelas Ciências Biológicas (15%), Exatas e da Terra (11%), Saúde (11%) e Sociais Aplicadas (9%).
Esse panorama é coerente com a situação retratada pelo Censo de 2010, que caracteriza o Brasil como um dos países de maior percentual de emigrantes qualificados vivendo sob a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2010, o número de brasileiros de nível de superior nos países envolvidos chegava a 291.510. Isso representava 28,9% do total dos então residentes, o que revelava um crescimento de 102% em relação a 2000.
Outra iniciativa que merece menção é a existência de um sitexiv, de autoria não identificada, dedicado à coleta de informações voluntárias dos membros da diáspora em todo o mundo. A ferramenta fornece um contato no Twitter e um breve panorama das fontes de informação disponíveis, com o objetivo de resumir os dados numa lista e num mapa. A versão atual do mapa confirma a impressão generalizada de que a maior parte dos cientistas expatriados está nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.
Para resumir esse panorama disperso, porém animador, vale citar as considerações finais da recente retrospectiva de Carneiro et al. (2020)xv, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp:
“Assim, o desafio que se coloca para agora é duplo: não apenas mapear e engajar essa comunidade de brasileiros no exterior, mas, simultaneamente, expandir a colaboração em temas estratégicos para o Brasil, nos quais a colaboração se dê numa via de mão dupla.”
Considerações finais
Em conclusão, é importante ressaltar que o desastre dos últimos quatro anos só não foi maior por causa da resistência da comunidade científica. O diagnóstico e a prospecção da reconstrução têm contado também com a participação de partidos políticos e organizações não-governamentais. Por exemplo, contribuíram para a construção do minucioso relatório do Revogaço a Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, vinculada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e a Fundação Rosa Luxemburgo, vinculada ao partido alemão Die Linke (a esquerda), que desenvolve projetos de cooperação com o Brasil desde 2003.
Fizeram também a sua parte, como já vimos, diretorias de sociedades científicas, reitorias de universidades públicas e diplomatas envolvidos com organismos internacionais de educação e cultura. Foram igualmente importantes os sindicatos de docentes e técnicos-administrativos e o movimento estudantil.
Por tudo isso, é com entusiasmo e confiança que me dedicarei, no último ensaio desta série, a discutir as propostas que estão na mesa para o futuro da ciência e da tecnologia no Brasil. Não são poucas/os as/os nossas/os intelectuais de esquerda que têm defendido a possibilidade de uma ciência de ponta engajada – a qual, aliás, como veremos em breve, não pode ser confundida com uma ciência utilitarista.
Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/um-novo-horizonte-para-a-ciencia-brasileira/
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