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Uma moeda comum para o Mercosul é uma boa ideia, mas não é suficiente

Embora a moeda comum seja um instrumento para driblar o dólar e melhorar as condições de comércio no interior do bloco, apenas esse instrumento tem pouca chance de funcionar sem um conjunto de políticas complementares que promovam uma integração produtiva regional e mais infraestrutura, com portos, rodovias e ferrovias integrados entre os países do Cone Sul.

Por: Marco Antonio Rocha | Créditos da foto: Ricardo Stucker / Agência Brasil. Na Argentina, Lula defende moeda comum do Mercosul ou do Brics. O conteúdo de CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos

Apesar de todo o alarde e da confusão gerada com o anúncio das discussões preliminares sobre a construção de uma moeda comum ao Mercosul realizado pelo novo governo, a proposta significaria, em termos práticos, a ampliação e melhoria de alguns instrumentos já existentes. O que não deixa de ser um esforço importante, dado os problemas estruturais enfrentados pelo Mercosul. Ainda assim, sem um conjunto de iniciativas complementares pouco mudará na realidade do bloco.

O Mercosul – criado em 1991 e pensado de forma seminal no estudo dirigido por Raul Prebisch em 1959 – seria um instrumento de desenvolvimento econômico dos países membros, possibilitando maior aproveitamento das escalas produtivas da indústria da região e maior integração comercial entre os países do Cone Sul. Passados mais de 30 anos, o que os dados indicam não é muito animador, o comércio intrabloco evoluiu para uma menor complementaridade comercial entre o Brasil – a maior economia do bloco – e os demais países membros, há déficits persistentes entre as demais economias do bloco e o Brasil e a produção manufatureira vem perdendo espaço para a produção asiática ano após ano.

“A princípio a proposta representa um bom negócio para ambas as partes, a Argentina é o maior comprador de bens manufaturados brasileiros no comércio internacional.”

Além de uma série de questões políticas, como o crescente desinteresse do Uruguai no formato atual do bloco, há dificuldades históricas que pesam desde sempre, como a baixa integração das cadeias produtivas da região, a dificuldade em se ampliar o comércio interno ao Mercosul – dada a baixa competitividade industrial dos países membros – o baixo crescimento da economia brasileira e a falta de coordenação entre as políticas científicas, tecnológicas e industriais no interior do bloco. Atualmente, a importância relativa, o interesse e a perspectiva sobre a evolução do bloco é bem distinta para cada um dos países.

Moeda comum

Criar alguma convergência entre as perspectivas de cada país membro com relação ao Mercosul passa por fortalecer o comércio no interior do bloco, aumentando a complementaridade comercial entre as economias e fomentando a divisão regional do trabalho entre as cadeias produtivas locais. Por esse motivo, a proposta da moeda comum é bem vinda, embora seja necessário entender do que se trata especificamente, seus problemas e seus limites.

A proposta, pelas declarações de membros do governo, se refere à adoção de uma moeda de liquidação das transações comerciais entre os países membros. Diferente do caso de uma União Monetária, a moeda seria apenas uma unidade de liquidação das transações comerciais entre as economias, ampliando os prazos para a liquidação dos déficits, reduzindo a necessidade de saldar as diferenças através da utilização do dólar e facilitando o financiamento das transações de bens e serviços de empresas do Mercosul. Como o próprio Ministro da Fazenda declarou: “Estamos defendendo nova engenharia que não chegue a pagamento em moedas locais, que deram errado anteriormente. Mas que não chegue ao estágio de unificação monetária, como é o caso do euro.”

“No caso específico da Argentina – segunda maior economia do bloco e terceiro parceiro comercial mais importante do Brasil – o instrumento ampliaria o financiamento para as importações argentinas.”

O instrumento viria a se somar a outros dois similares na facilitação do comércio no bloco – o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos, que permite que a liquidação das operações comerciais entre países membros da ALADI seja feito a cada quatro meses, e o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), incluindo apenas países do Mercosul e que permite aos países realizar e receber por transações comerciais nas respectivas moedas.

Driblando o dólar

No caso específico da Argentina – segunda maior economia do bloco e terceiro parceiro comercial mais importante do Brasil – o instrumento ampliaria o financiamento para as importações argentinas provenientes do Brasil, mitigando a dificuldade do financiamento em dólar das operações externas da economia argentina. A princípio a proposta representa um bom negócio para ambas as partes, a Argentina é o maior comprador de bens manufaturados brasileiros no comércio internacional e conta com algumas cadeias produtivas com algum nível de integração regional com a indústria brasileira.

Entretanto, o próprio bom funcionamento de um instrumento desse tipo requer também a correção de desequilíbrios comerciais existentes no interior do bloco.  Em primeiro lugar, o saldo comercial entre Brasil e Argentina vem evoluindo nas últimas décadas de forma bem desfavorável para a Argentina. Na última década (2010/2020), o déficit comercial acumulado com o Brasil foi de US$ 33,2 bilhões, sendo que apenas em um ano, 2019, a Argentina obteve superávit com o Brasil. Desde a crise da Argentina em 2001, o déficit acumulado é de US$ 50,7 bilhões.

“Embora a moeda comum seja um instrumento para melhorar as condições de comércio no interior do bloco, apenas esse instrumento tem pouca chance de funcionar sem um conjunto de políticas complementares.”

Desde 2013, a corrente de comércio (soma das exportações e importações) do Brasil com a Argentina permanece oscilando em torno de uma média de cerca de US$ 23 bilhões, enquanto o valor da corrente de comércio do Brasil com o resto do mundo cresceu de aproximadamente US$ 474 bilhões para US$ 606,7 bilhões no mesmo período. O que os dados demonstram é tanto uma perda de importância relativa do comércio com a Argentina, assim como a perda de competitividade da economia argentina frente à economia brasileira. Até a pandemia, o mercado argentino respondia por cerca de 4% das exportações brasileiras e 5% das importações, enquanto o Brasil respondia por aproximadamente 15% das exportações argentinas e 21% das importações.

Outros países e problema com a moeda comum

Para as demais economias do bloco a relação com o MERCOSUL parece igualmente complicada. No caso do Uruguai, o déficit comercial acumulado entre 2010 e 2022 com o restante do bloco é de US$ 13 bilhões e vem acumulando déficits com Brasil e Argentina desde 2015. O Uruguai reclama justamente da baixa complementaridade comercial de seus produtos com a pauta de importação dos demais países do bloco e defende um Mercosul aberto para negociações unilaterais dos países membros com outros blocos.

Em 2020, a corrente de comércio entre Brasil e Argentina foi de US$ 16,3 bilhões, valor aproximadamente seis vezes maior que a corrente de comércio entre Brasil e Uruguai e cerca de três vezes o valor da corrente entre Brasil e Paraguai. Como a relação comercial entre Brasil e Paraguai está altamente condicionada na comercialização da energia de Itaipu e na expansão da fronteira agrícola brasileira para a produção de soja e gado no país vizinho – e mais recentemente da expansão maquilladora da indústria brasileira aproveitando incentivos fiscais no Paraguai – o comércio entre Brasil e Argentina tem um papel fundamental na definição dos rumos do bloco.

Embora, a moeda comum seja um instrumento no sentido de contribuir para melhorar as condições de comércio no interior do bloco, apenas esse instrumento tem pouca chance de funcionar sem um conjunto de políticas complementares para o processo de integração. A situação externa da Argentina dificulta a criação de uma moeda comum. A economia argentina tem passado por recorrentes desvalorizações cambiais por conta de problemas no balanço de pagamento, alto endividamento externo, alta inflação e possui uma taxa de câmbio com alta volatilidade – característica, aliás, compartilhada com o Real.

“O bom funcionamento da moeda comum tende a depender da redução das assimetrias comerciais dentro do bloco.”

A persistência dos déficits comerciais da Argentina com o Brasil, a escassez de dólares pela qual passa a economia argentina e a alta correlação do comportamento do saldo comercial de ambos os países com o ciclo de preço das commodities são fatos que, por exemplo, criam dificuldades relevantes para o funcionamento de uma moeda comum. A dificuldade do financiamento externo da economia argentina continuará pesando, ainda que o Brasil consiga fornecer algumas garantias e condições que mitiguem ou posterguem o problema.

Nesse sentido, o bom funcionamento da moeda comum tende a depender da redução das assimetrias comerciais dentro do bloco, ampliação da complementaridade comercial entre as economias e, sobretudo no curto prazo, uma maior taxa de crescimento da economia brasileira para expandir as exportações da Argentina. Sem isso, a moeda comum tende a encarar problemas como o acumulo de déficits comerciais entre Argentina e Brasil e a deterioração da situação externa da Argentina – e a crescente escassez de dólares – que podem impor dificuldades no funcionamento de uma moeda para liquidação das operações comerciais, mas que, em última instância, precisa em algum momento liquidar os saldos deficitários em dólar.

As perspectivas sobre as relações comerciais entre Brasil e Argentina tampouco tem caminhado no sentido de se animar com o bom funcionamento da moeda comum. A relação comercial entre os dois países tem perdido importância relativa no comércio exterior de ambos, há alta participação do complexo automotivo no intercâmbio entre os dois países – em que o Cone Sul tem sido alvo do crescente desinteresse por parte das grandes montadoras internacionais – e as duas economias passam, em menor ou maior grau, por um processo de desindustrialização de algumas décadas e que diminui ainda mais a capacidade de se pensar em uma maior integração das cadeias manufatureiras locais.

“O retorno da Venezuela ao bloco seria também de grande importância, inclusive para o melhor funcionamento da moeda comum.”

Modificar as condições estruturais de comércio dentro do Mercosul é uma condição fundamental para o bom funcionamento da moeda comum e essa, por sua vez, não tem a capacidade de reverter os condicionantes estruturais que moldam o comércio bilateral entre Brasil e Argentina e do bloco com o resto do mundo. O padrão de comércio entre os dois países está condicionado por questões referentes à evolução da especialização produtiva e comercial das duas economias nas últimas décadas e a falta de uma divisão regional do trabalho na indústria manufatureira para além de algumas poucas cadeias produtivas mais integradas regionalmente.

Divisão regional do trabalho e a importância da Venezuela

Mais do que a discussão da moeda comum, é necessário retomar os instrumentos de integração e direcionar outros para construir uma agenda de integração produtiva e a construção de uma divisão regional do trabalho – isto é, de complementaridade produtiva entre as economias da região. Isso demanda a retomada do papel ativo dos bancos de desenvolvimento, com direcionamento de esforços para o financiamento da infraestrutura conjunta e da reindustrialização das economias do bloco, assim como, a construção de uma agenda para a convergência das políticas científicas, tecnológicas e industriais, necessárias para avançar na complementaridade produtiva e comercial entre as economias do bloco, única via para expandir o comércio entre as economias do Mercosul.

Nesse sentido, o retorno da Venezuela ao bloco seria também de grande importância, inclusive para o melhor funcionamento da moeda comum. Ainda que a economia venezuelana venha enfrentando sérios problemas, historicamente a Venezuela apresenta uma balança comercial com superávit significativo com o resto do mundo, acumula déficits comerciais com as demais economias do Mercosul e é uma demandante tanto de alimentos como de bens manufaturados do Cone Sul, além de ter reservas petrolíferas significativas. A posição externa da economia venezuelana poderia ajudar muito no incremento do comércio intrabloco e no financiamento externo das economias.

“A integração produtiva com a Venezuela tende também a ajudar o desenvolvimento industrial da região Norte e Nordeste do Brasil, pela proximidade com o país.”

A Venezuela além de contribuir para aumentar a complementaridade comercial dentro do bloco, pode contribuir muito para o lastreamento da moeda comum e para o financiamento das operações comerciais da economia argentina com o restante do bloco. A integração produtiva com a Venezuela tende também a ajudar o desenvolvimento industrial da região Norte e Nordeste do Brasil, pela proximidade com o país.

Creio que no caso da discussão sobre a moeda comum caiba a observação pertinente do peruano José Carlos Mariátegui:

“A limitação das comunicações e dos transportes é, na América indo-espanhola, uma consequência das limitações das relações econômicas. Não se implanta uma linha férrea para satisfazer uma necessidade do espírito ou da cultura.”

Integração regional se faz primeiramente com integração produtiva e com infraestrutura de comunicação, portos, rodovias e ferrovias que transportem, para além de cultura, mercadorias entre os países. A ampliação do comércio será sempre beneficiada de melhores condições financeiras, porém sem a construção de uma política para o desenvolvimento produtivo conjunto para as economias da região, a moeda comum pouco poderá fazer para mudar o cenário atual.

 

veja em: https://jacobin.com.br/2023/06/uma-moeda-comum-para-o-mercosul-e-uma-boa-ideia-mas-nao-e-suficiente/

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