Ensaio sobre um debate filosófico essencial. Como a corrente de pensamento articulada por Eric Fromm e Marcuse emergiu, no pós-guerra. Sua potência política. Seu declínio, no período neoliberal. E seus aportes, para novas construções pós-capitalistas
Por: Ian H. Angus1 , na Logos Journal |Tradução: Eleutério Prado |Imagem: Xul Solar
- Introdução
Em 1906, Benedetto Croce, em seu O que está vivo e o que está morto na filosofia de Hegel, questionou a filosofia de uma nova maneira. Em vez de perguntar o que é verdadeiro e o que é falso na linguagem estabelecida da filosofia, ele colocou a questão de uma maneira que era imediatamente histórica: o que era verdadeiro poderia ter se tornado falso e o que era falso poderia ter se tornado verdade. Perguntava sobre o aqui e agora da filosofia, não sobre o seu conteúdo eterno.
É certo que essa referência histórica já existia em Hegel na medida em que a verdade era entendida como algo que vai surgindo, mas também era vista como culminação da lógica – isto é, a verdade encapsulava a história mesmo emergindo dela. Croce afirmou implicitamente a incompatibilidade entre lógica e história.
O seu veredicto condenava à morte a redução da filosofia à lógica e à dialética das ciências positivas, tal como fora feito por Friedrich Engels. O que é vivo é a ideia de uma filosofia concreta, “uma forma de mente, que deve ser móvel como o movimento do real“.2 Para que o pensamento móvel capte o movimento da realidade, ele deve estar disposto a se despedir, não só das falsidades do passado, mas também de suas verdades.
Dado que já se passaram mais de meio século desde o icônico ano de 1968 e dada a nossa distância dessa data, uma reflexão sobre a situação filosófica daquela época, pode ser feita agora.3 1968 não é simplesmente mais um ano, mas um nome para o que é conhecido como “os anos sessenta”, um tempo cujo mito ainda sobrevive em nossa história cultural. A filosofia naquela época fazia parte do fenômeno internacional dos anos sessenta, no qual a descolonização, a Nova Esquerda, a política juvenil, a luta contra o racismo institucional, a libertação das mulheres, o ativismo antiguerra, o radicalismo cultural e muitas outras vertentes foram tecidas.
A filosofia dos anos sessenta a que me refiro não é o pensamento de uma pessoa situada, nem o de um grupo, muito menos de um partido. É um espaço discursivo dentro do qual operam filosofias orientadas para o seu tempo. Por espaço discursivo, refiro-me a um domínio em que se podem fazer argumentos e explicações, que se estrutura de certa forma, mas que permanece como pano de fundo para articulações e debates filosóficos explícitos.
A interação entre pressupostos de fundo mais ou menos estruturados e articulações explícitas implica que, embora certamente existam filosofias características da época, aquelas que são menos marcadas são subliminarmente necessárias para abordar aquelas que se afiguram como dominantes. Tratarei do espaço discursivo filosófico dos anos sessenta fazendo referência a figuras influentes; contudo, o próprio espaço discursivo é um fenômeno mais abrangente, cuja explicação completa exigiria uma investigação muito mais detalhada.4
A própria luta pela verdade opera dentro de tal espaço discursivo. Desse modo, não apenas se nasce em um tempo determinado, mas se luta para vir a ser filho verdadeiro de nosso tempo. Portanto, são os adultos aqueles que talvez possam definir o seu tempo, desempenhando um papel em moldá-lo.
Sem mais preâmbulo, quero afirmar que a filosofia dominante dos anos sessenta era o humanismo marxista ou o marxismo existencial. Quero dizer, ademais, que não vejo nenhuma distinção entre esses dois termos que estavam muito em evidência na época. A interação entre três termos-chave define o espaço discursivo desse período: uma certa compreensão de Marx, o existencialismo (principalmente da variedade francesa) e o humanismo – um termo com uma longa história que assumiu um significado bastante específico.
O humanismo marxista começou nos intercâmbios filosóficos entre a Europa Ocidental e Oriental e tornou-se um fenômeno mundial dominando o “discurso” da época. O que está vivo e o que está morto no humanismo marxista? Essa pergunta pode ser dividida em três partes: 1) o que ele foi? 2) como e por que se dissolveu? E, finalmente, 3) que pontos cegos no humanismo marxista podem ser descobertos retrospectivamente?
. O que foi o humanismo marxista?
A leitura humanista de Marx tem uma marca inicia: a publicação do livro O conceito de homem em Marx de Erich Fromm, em 1961, o qual teve dezesseis reimpressões até 1971. Fromm convenceu T.B. Bottomore a traduzir os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx de 1844 para o inglês, com o fim de inclui-lo no seu livro.5 Os manuscritos estavam disponíveis em alemão desde 1932, mas não haviam entrado nas discussões em inglês. Mesmo na Europa, a Segunda Guerra Mundial interrompeu o estudo da teoria marxista, de modo que a leitura dos anos 1960 ocorreu em grande parte independentemente das discussões anteriores. Bottomore também publicou, em 1963, os Primeiros Escritos de Marx, que incluíam os Manuscritos, em uma edição separada.
O prefácio de Fromm enfatizava que “Marx era um humanista, para quem a liberdade, a dignidade e a atividade do homem eram as premissas básicas da ‘boa sociedade‘”.6 Da mesma forma, em sua interpretação introdutória em O conceito de homem em Marx, ele enfatizou que “a crítica central de Marx ao capitalismo não é a injustiça na distribuição da riqueza; é a perversão do trabalho em trabalho forçado, alienado, sem sentido, daí a transformação do homem em um ‘aleijão monstruoso’“.7
A apropriação de Marx pelo humanismo marxista elaborou a concepção de que o ser humano é capaz de recuperar a sua essência alienada pelo capitalismo por meio da atividade do trabalho criativo. Essa concepção permitiu uma dupla crítica à Guerra Fria: o consumismo como alienante no Ocidente e a sujeição do indivíduo pelo Estado no bloco soviético.8
Em 1965, Fromm editou um volume de ensaios com trinta e cinco colaboradores do Oriente e do Ocidente que mostravam que o humanismo socialista havia se tornado não apenas uma tendência filosófica, mas um grito de guerra. Como disse na introdução, “o humanismo socialista não é mais a preocupação de alguns intelectuais dispersos, mas um movimento que se encontra em todo o mundo“.9
O controle hierárquico do processo de trabalho, assim como a sujeição do trabalhador individual à fábrica, não parecia diferente em ambos os lados da “cortina”. O humanismo marxista visava evitar o confronto entre Oriente e Ocidente por meio de um retorno ao indivíduo criativo em busca de relações sociais e de trabalho não alienadas.
Essa interpretação humanista estava tão em pauta que Louis Althusser, ao responder à tradução francesa dos Manuscritos na revista comunista La Pensée, em 1962, tentou traçar uma linha estrita entre dois Marx. Assim, relegou a sua obra inicial a um período superado, marcado como mera ideologia política, o qual fora deixado inédito por boas razões.10 Podemos ver essa pauta também na interpretação de Freud feita por Fromm; pois o conceito de alienação lhe permitiu ver Marx e Freud como pensadores paralelos: por meio de uma análise dos fatores externos que condicionam e limitam os seres humanos, a capacidade de liberdade e ação consciente pode ser reavivada e devolvida ao sujeito humanista.
Como disse: “sendo conduzido por forças para ele desconhecidas, o homem não é livre. Ele só pode alcançar a liberdade (e a saúde) tomando consciência dessas forças motivadoras, isto é, da realidade, e assim pode se tornar o senhor de sua vida (dentro das limitações da realidade) em vez de escravo de forças cegas.”11 Tanto Marx quanto Freud foram interpretados como autores que descobriram as barreiras que precisam ser removidas para que o sujeito humano possa se tornar livre e autodeterminado.
O marxismo humanista deu base para a crítica da alienação tanto no Ocidente como no Oriente – e não apenas no Ocidente. A Escola Práxis, com sede em Zagreb e Belgrado, que se reunia anualmente no Encontro Verão em Korčula e se expressava na revista internacional Práxis, desenvolveu uma crítica ao autoritarismo soviético em diálogo com vozes críticas no Ocidente. Gajo Petrovi enfatizou que o humanismo de Marx era uma filosofia da práxis e que a ação requer uma orientação para o futuro, de modo que o humanismo seja orientado para “possibilidades humanas historicamente criadas”.12
Ivan Svitak elaborou uma tese sobre a convergência entre o Oriente e o Ocidente, sugerindo que a maturidade industrial da União Soviética havia levado à adoção de “uma versão modificada do modo de vida americano“, pois fazia de um alto nível de consumo sua principal prioridade.13 A possibilidade futura pareceu, assim, estar alinhada com uma crítica à sociedade de consumo e uma recuperação da atividade criativa dos indivíduos sociais.
Uma das principais fontes de orientação veio do Estado da autogestão industrial na Iugoslávia. Sem ignorar as suas dificuldades, a autogestão dentro dos países mais independentes do socialismo de Estado forneceu um ponto de partida para o desenvolvimento da democracia industrial como a forma de organização do trabalho, a qual se encaixaria na perspectiva do humanismo marxista. Mihailo Marković argumentou que a “extensão natural e integração de vários órgãos de autogestão em um todo seria uma negação prática do Estado e poria fim à política profissional“.14
Enquanto a rejeição do Estado autoritário foi mais uma questão de reação imediata no Ocidente, no Oriente provocou a análise do fracasso do socialismo de Estado, assim como orientou uma tentativa de recuperar um Marx humanista da ideologia oficial do Estado. O fato de a propriedade privada já ter sido abolida nas sociedades de estilo soviético mostrava que a revolução social tinha que ir além dela. Como disse Marković, “a característica essencial da revolução consiste numa transformação radical do limite interno essencial de uma determinada formação social“.15
Era objetivo do humanismo marxista delimitar a sociedade de consumo em suas formas gêmeas de capitalismo e socialismo de Estado e propor uma forma futura de participação individual ativa na vida social autêntica, fundamentada nas relações de trabalho e que se estendesse por todas as instituições. Um aspecto dessa abordagem que precisava ser destacado especialmente era o papel do indivíduo devido à negligência ou mesmo a sua supressão em todas as formas prevalecentes do marxismo.
Nesse aspecto, o existencialismo, especialmente, mas não exclusivamente, da variedade francesa, passou a desempenhar um papel complementar essencial à redescoberta do primeiro Marx. Fromm, em apoio à sua afirmação de que “o objetivo de Marx [era] o desenvolvimento da personalidade humana“, referiu-se à sua filosofia como existencialismo humanista.16 O filósofo tcheco Karel Kosik argumentou que “a pseudoconcreticidade do mundo cotidiano alienado, dominado pelo estranhamento, é destruído pela mudança existencial e pela transformação revolucionária“.17 Em sua crítica ao foco unilateral do marxismo ortodoxo na mudança estrutural, Kosik sugeriu que um ato individual pode transformar a realidade meramente aceita numa forma ativa de viver autenticamente.
Sem essa modificação existencial, a subsunção do indivíduo às estruturas sociais persistiria após a mudança revolucionária. Kosik utilizou sua apropriação da fenomenologia e do existencialismo para mostrar que a filosofia é uma abertura da realidade humana para o ser. Enquanto na sociedade contemporânea “o homem está emparedado em sua socialidade” – isso é visto como uma limitação –, a filosofia da práxis de Marx é orientada para “o processo de formação de uma realidade socio-humana, bem como a abertura do homem para o ser e para a verdade dos objetos“.18 O existencialismo veio em auxílio do marxismo para reavivar sua relação com a filosofia, permitindo entender a filosofia como uma postura ativa no mundo.
A figura-chave do existencialismo que prosperou no período foi Jean-Paul Sartre; o fundamento dessa corrente foi fornecido pelo texto de Sartre de 1936, Transcendência do Ego, no qual ele criticou a filosofia fenomenológica de Edmund Husserl. Husserl, como se sabe, é uma das figuras mais significativas da filosofia do século XX, cuja influência foi muito além daqueles que permaneceram fiéis às suas ideias. Husserl distinguiu entre o ego humano, concreto (ou individual) e o ego transcendental.
O ego transcendental surgiu por meio do que se chamou de redução transcendental em que a questão da realidade do mundo não era afirmada nem negada, mas simplesmente deixada de lado. Isso permitiu que o mundo humano como um mundo de significados emergisse e se tornasse sistematicamente investigado.
Na linguagem filosófica, transcendental refere-se não aos conteúdos imediatos da experiência, mas às condições ou fundamentos que permitem que esses conteúdos apareçam. A fenomenologia, nos termos de Husserl, investigaria o significado dos acontecimentos no mundo humano em relação à fonte última de tais significados. Essa dualidade foi expressa por meio de uma diferença entre o sujeito concreto, ou sócio-histórico, individual e o ego transcendental que é anônimo, não individual e está fora da história.
Na visão de Husserl, o ego transcendental era um aspecto necessário da percepção ordinária, na medida em que a percepção ordinária pressupõe uma estrutura temporal, uma relação intencional entre percepção e objeto percebido, um mundo que inclui tanto o perceptor quanto o percebido etc. Nenhuma delas é construída pelo sujeito individual. Ele falava dessas características transcendentais da experiência como pertencentes a um ego transcendental e é justa neste ponto que Sartre o questiona.
Sartre argumentava que o que quer que pudesse ser chamado de transcendental não é um ego, mas uma espontaneidade impessoal pura sem características egóicas.19 A consequência foi que a fenomenologia a partir daí trouxe o homem de volta ao mundo; ela deu, assim, plena medida às agonias do homem, mas também às suas rebeliões. Contudo, infelizmente, enquanto o eu permanecer uma estrutura de consciência absoluta, ainda assim se poderá recriminar a fenomenologia por ser uma doutrina escapista… Parece-nos, entretanto, que essa reprovação já não se justifica se o humano vem a ser pensado como um ser estritamente contemporâneo do mundo, cuja existência tem as mesmas características essenciais que o mundo.20
A rejeição de Sartre do ego transcendental marcou a sua saída da fenomenologia husserliana e a sua entrada na filosofia existencial que ele elaboraria em O ser e o nada. Um sujeito que era completamente mundano não poderia buscar sua autenticidade no ir além das condições históricas imediatas, mas apenas confrontá-las com base em sua própria responsabilidade. Essa ênfase na escolha e na liberdade individuais foi o banho ácido do qual o marxismo humanista poderia emergir sem qualquer mancha remanescente que o ligasse ao marxismo ortodoxo, autoritário, centrado no Estado, do tipo soviético.
Contudo, ao fazer a transcendência depender da livre escolha individual, a opção de Sartre parecia cambalear em uma ladeira escorregadia em direção ao egoísmo ou mesmo ao solipsismo. Assim como Kosík, ele argumentou que isso não significava optar por um enclausuramento do indivíduo em si mesmo, mas sim em tomar o indivíduo uma base necessária para a abertura ao compromisso social autêntico.
Como a escolha pela resistência contra a ocupação nazista era para Sartre, assim como para os seus leitores de então, uma memória recente, essa opção poderia, em certo sentido, ser reprisada durante a década de 1960 como uma escolha livre por uma oposição extraparlamentar. Nessa medida, ele se mostrava tanto antiautoritário e anarquista quanto marxista – tal como foi muitas vezes a prática da Nova Esquerda. Como disse Sartre numa palestra em 1945, “o existencialismo é um humanismo“:
Quando dizemos que o homem escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós deve escolher a si mesmo; mas com isso também queremos dizer que, ao escolher por si mesmo, ele escolhe por todos os homens… Escolher entre isto ou aquilo é, ao mesmo tempo, afirmar o valor daquilo que é escolhido; pois não podemos escolher o pior. O que escolhemos é sempre melhor; e nada pode ser melhor para nós a menos que seja melhor para todos.21
Em 1948, de modo essencialmente contemporâneo à palestra pública de Sartre, Herbert Marcuse criticou o existencialismo de O ser e o nada de Sartre afirmando que se tratava de um tratado positivista que perdia a transcendência do mundo dado, algo que cabia à filosofia fornecer.22 No entanto, quando republicou o ensaio em 1972, Marcuse mudou de tom:
O conceito existencialista básico é elevado por meio da consciência que declara guerra a essa realidade – sabendo que a realidade continuará sendo vencedora. Por quanto tempo? Essa pergunta, que não tem resposta, não altera a validade da posição que hoje é a única possível para uma pessoa pensante.23
Dessa forma, a escolha existencialista tornou-se fundamental para o humanismo marxista: um sujeito totalmente imerso no mundo, mas ainda assim mantendo a liberdade de escolher se revoltar, poderia entrar na análise histórica e na transformação revolucionária proposta pelo marxismo sem sacrifício de valor nem responsabilidade individual.
Esse sujeito humanista foi levado a subjugar todas as diferentes formas de opressão e exploração. No Brasil, Paulo Freire partiu, a partir daí, para aprofundar a crítica de Sartre à educação. Esta última não poderia ser uma forma de digestão em que os alunos são passivamente alimentados com conhecimentos pelos professores.24 Entrou também no exame de Simone de Beauvoir sobre a situação e as possibilidades da mulher. Isso permitiu que Sartre declarasse em sua introdução ao Condenados da Terra de Frantz Fanon que “o terceiro mundo se encontra e fala consigo mesmo nesta voz“.25
É certo que a crítica ao consumismo coexistiu de certa forma incomodamente com a crítica ao colonialismo, mas eles foram mantidos unidos pelo conceito de libertação humana como o desenvolvimento das capacidades humanas em uma forma social. Kwame Nkrumah enfatizou a necessidade de uma nova filosofia socialista que pudesse sintetizar a base humanista da sociedade tradicional africana com o humanismo islâmico e eurocristão.26
Em todas essas versões, o sujeito humanista “homem” foi tomado como uma unidade explicativa que não minaria uma expressão filosófica que pudesse abordar todas as diferentes formas de opressão e exploração. Assim, forneceria uma necessária explicação dessas formas considerando também as diferenças de sexo, gênero, raça, centro/periferia etc.
A escolha existencial preencheu um buraco – de que tipo fosse – aberto no marxismo pela ênfase na mudança na estrutura de classes e na ordem mundial desde a época de Marx. A decisão existencial do indivíduo tomada sozinho por meio da livre escolha, mas a favor da liberdade de todos, parecia ser capaz de manter unidos os projetos de descolonização, da libertação das mulheres, do socialismo da classe trabalhadora e da busca de sentido individual, em uma grande teoria da libertação humana.
Talvez o índice mais significativo disso seja que o influente livro de Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional, sem dúvida o livro mais característico dos anos 1960, poderia oscilar irresolutamente entre a expectativa de que a sociedade industrial avançada poderia conter suas contradições e que uma ruptura explosiva poderia ocorrer.27 Marcuse apresentou uma montanha de evidências para a contenção, mas claramente apelou ao leitor para segui-lo ao retratar o momento da liberdade como seu salto infundado do confinamento dentro de uma dada realidade para um compromisso de fazer um novo mundo.
A década de 1960 foi uma era de descolonização no que era então chamado de Terceiro Mundo, ao lado de um radicalismo interno dentro da divisão Leste-Oeste do mundo industrializado. O primeiro estava orientado por movimentos de libertação nacional que visavam acabar com a exploração imperialista e a subjugação cultural. O último estava orientado por uma crítica do consumismo avançado no Ocidente e da aspiração de igualar ou superar o consumismo ocidental no Oriente.
Foi a capitulação da esquerda social-democrata e do marxismo soviético a um modelo consumista que permitiu à Nova Esquerda sintetizar uma crítica ao consumismo com apoio aos movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo. Era necessário abordar a divisão do mundo na Guerra Fria em Oriente e Ocidente, o compromisso do Estado de bem-estar social no Ocidente que elevou o padrão de vida da classe trabalhadora, o salário familiar que enviou as mulheres de volta à esfera doméstica, a ascensão do capitalismo de consumo, o racismo institucionalizado e a descolonização no chamado Terceiro Mundo. Todos esses eventos se sobrepuseram e se reforçaram de muitas maneiras. Como Kwame Nkrumah apontou:
Nos países industrialmente mais desenvolvidos, o capitalismo, longe de desaparecer, tornou-se infinitamente mais forte. Essa força só foi alcançada pelo sacrifício de dois princípios que inspiraram o capitalismo primitivo, a saber, a subjugação das classes trabalhadoras dentro de cada país individual e a exclusão do Estado de qualquer interferência no controle da empresa capitalista. Agora, eles esses dois princípios foram abandonados, sendo substituído por “estados de bem-estar” baseados em altos padrões de vida da classe trabalhadora e em um capitalismo regulado pelo Estado. Os países desenvolvidos conseguiram exportar seu problema interno e transferir o conflito entre ricos e pobres do cenário nacional para o internacional.28
Como se referia de forma integrada a tais realidades históricas e políticas, o humanismo marxista se tornou uma filosofia tanto da época quanto para a época. Tanto expressava uma situação partilhada em comum quanto fornecia pontos de referência para transformá-la – mesmo que as perspectivas dos vários grupos importantes em seu interior diferissem entre si até certo ponto. Ora, o que nos falta hoje em dia é justamente uma filosofia comum que possa articular os diferentes pontos de vista dos diversos grupos situados dentro do sistema-mundo.
O pano de fundo desse radicalismo ocidental foi o compromisso do estado de bem-estar social que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. A classe trabalhadora havia sido trazida para o sistema por meio de um pacote de políticas de bem-estar social, incluindo seguro-desemprego, educação superior subsidiada e legislação salarial progressiva. Na atual era neoliberal, após décadas de ataques da direita até mesmo às formas mais brandas de bem-estar social, é surpreendente lembrar em que medida as conquistas da social-democracia e do Estado de bem-estar social eram dadas como certas naquela época.
A principal razão foi que os social-democratas haviam comprado a ideologia da guerra fria e apoiado a guerra no Vietnã, além de se beneficiarem da exploração imperialista. Movimentos radicais tomaram como dado esse pano de fundo de um estado de bem-estar social e lutaram por sua extensão a grupos ainda sem direitos. Assim, a crítica ao consumismo conviveu de forma um tanto incômoda com o objetivo de estabelecer um padrão de vida decente no terceiro mundo. Eles foram mantidos juntos pelo objetivo de construir um modelo diferente de desenvolvimento que espalhasse a riqueza material de forma mais igualitária e, também, desenvolvesse o trabalho cooperativo e as relações sociais. Em seu foco crítico, foi uma era de anti-imperialismo.
Enquanto a teoria marxista apontava a classe operária industrial como ator político, outros movimentos variados desenvolviam críticas a esse foco com base em um modelo de libertação nacional. Muitas análises retrospectivas dos anos sessenta interpretaram o radicalismo estudantil e juvenil no Ocidente como sendo, principalmente, um movimento de reforma destinado a desenvolver alternativas culturais e relações sociopolíticas menos hierárquicas. Embora haja algum mérito nisso como uma avaliação do resultado de tais movimentos, ela ignora inteiramente o papel central dos movimentos de libertação nacional como centro espiritual da ideia de novas relações sociais.
Foi fundamentalmente um período anti-imperialista e mesmo muitas questões políticas dentro do Ocidente avançado foram vistas nesses termos – como a libertação de Quebec, a libertação das mulheres, a libertação negra (especialmente nos EUA), o poder vermelho etc. Em nosso tempo, apenas os resquícios de um Estado de bem-estar social sobrevivem. No entanto, a economia capitalista não está mais suficientemente contida dentro dos limites do Estado-nação e os pressupostos político-econômicos de fundo do discurso do humanismo marxista não mais se verificam.
3. A dissolução do marxismo humanista
Sugeri que a filosofia dos anos sessenta deveria ser entendida como um espaço discursivo próprio e não como uma doutrina específica. Agora quero me concentrar em certos aspectos problemáticos do humanismo marxista, os quais provocaram reações e desenvolvimentos subsequentes que levaram à sua dissolução. Usando a terminologia em uso no discurso filosófico contemporâneo, esses desenvolvimentos constituíram o campo do “pós-estruturalismo”. Podem, assim, ser explicados com referência a várias obras altamente influentes de Michel Foucault e Jacques Derrida. Abrindo um parêntese, pode-se dizer o discurso anglófono foi assim marcado por uma mudança na referência primária já que se transladou da filosofia alemã para a francesa. E essa dissolução começou já no auge do humanismo marxista.
A obra-prima inicial de Foucault, A ordem das coisas: uma arqueologia das ciências humanas, apareceu em francês em 1966 e em inglês em 1970. Uma de suas principais teses era a de que a tentativa moderna de compreender a realidade humana empírica por meio das ciências humanas implica numa duplicação. Por um lado, a humanidade aparece aí como objeto das várias ciências, as quais, pelo menos em princípio, se somariam para formar um conhecimento eventualmente completo da humanidade empiricamente existente; por outro, ela aparece também como sujeito do conhecimento – como um sujeito transcendental. É certo que esta não era, em si mesma, uma tese original. Notavelmente, ela apareceu já na fenomenologia de Edmund Husserl, especialmente em sua última obra, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental.
A tese específica de Foucault é a de que essa duplicação da humanidade, empírica e transcendental, não poderia ser mantida como duas dimensões separadas. A partir do conceito central de crítica, advém a ideia de que um verdadeiro discurso científico não pode ser transcendental e empírico ao mesmo tempo. “Na verdade, não se trata tanto de uma alternativa, mas de uma flutuação inerente a toda análise, que traz à tona o valor do empírico no nível transcendental.”29 A flutuação necessária na duplicação do homem (sic) põe a questão radical de saber se o “homem” existe de fato – ou se ele pode ser extinto. Como diz a famosa última frase do livro, o pensamento moderno clássico pode terminar de tal forma que “o homem venha a ser finalmente apagado, tal como um rosto desenhado na areia à beira do mar“.30
No entanto, apesar dessa primeira e poderosa ressalva no ambíguo conceito de homem, central no humanismo marxista, era muito difícil que esse texto tivesse um efeito geral e muito extenso. A rejeição mais clara e influente do humanismo marxista veio no primeiro volume da História da Sexualidade, também de Michel Foucault, que apareceu em 1976 e foi traduzido para o inglês dois anos depois. Ele identificou o que chamou de “hipótese repressiva”. Eis que coloca em paralelo a repressão da sexualidade e a ascensão do capitalismo devido à incompatibilidade do prazer com o trabalho. Contra isso, ele afirmou que a ideia do sexo reprimido alimenta uma pose fácil de transgressão. Eis que isso caracteriza a sociedade que há mais de um século se castiga ruidosamente por sua hipocrisia e que fala verbosamente de seu próprio silêncio. Pois, ela se esforça para relatar detalhadamente as coisas não ditas, denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das próprias leis que a fizeram funcionar.31
O próprio programa de Foucault era, ao contrário, investigar o poder produtivo dos discursos sobre sexo e, para além do sexo. Assim, a ideia da produtividade do discurso na constituição das subjetividades tornou-se desde então a figura geral da análise social. Desse ponto de vista, Freud, ao invés de aparecer como um grande libertador, tornou-se produtor de discursos que constituíam subjetividades constrangidas.
Marx foi tratado com mais cuidado. Foi mencionado apenas uma vez no texto de Foucault para mostrar que a burguesia demorou a reconhecer os corpos e o sexo do proletariado.32 No entanto, a inversão direta da forma de crítica sugeria que “é um ardil fazer da proibição o elemento básico e constitutivo a partir do qual se seria capaz de escrever a história do que foi dito sobre o sexo a partir da época moderna“.33
Desde então, Foucault e sua análise do poder como produtivo e não repressivo tornaram-se onipresentes nas ciências sociais anglófonas. Podemos notar que, se essa abordagem fosse aplicada a Marx, sugeriria que também é um ardil afirmar que o trabalho em sua forma capitalista é uma proibição, uma contenção ou uma perda dos poderes verdadeiramente humanos do trabalhador. Talvez isso explique por que Marx desapareceu em grande parte dos escritos daqueles que partem da noção de produtividade discursiva.
A inversão do modelo de crítica de Foucault foi elaborada em oposição direta à figura humanista marxista da alienação. Se se aplicou muito bem a Freud ou Marx está aberto ao debate, mas certamente se aplicou à síntese de Marx e Freud através do conceito de alienação que imediatamente o precedeu. Isso nos leva a questionar a premissa humanista expressa sucintamente na frase de Fromm que mencionei anteriormente, de que alguém só pode “alcançar a liberdade (e a saúde) tomando consciência dessas forças motivadoras [e] tornando-se o senhor de sua vida (dentro das limitações da realidade) em vez de escravo de forças cegas“.34
Tudo o que está em causa depende desta pequena inserção, quase entre parênteses, “dentro das limitações da realidade“. Se há limites para ser senhor e não escravo, como conhecer esses limites? Há elementos do ser humano que não são captados adequadamente dentro da alternativa “senhor ou escravo”? Se não há sujeito humano original e, portanto, não há essência humana, como pode a revolução social pretender estabelecer poderes criativos humanos em uma forma social autêntica?
As intervenções de Derrida mostram uma oscilação semelhante entre as dimensões filosófica e popular. Em 1966, ele deu uma palestra na famosa conferência John Hopkins sobre A Linguagem da Crítica e as Ciências do Homem, que versava ostensivamente sobre o estruturalismo francês. No entanto, a palestra de Derrida – mais tarde publicada no livro amplamente lido que continha os artigos de conferência – anunciou o fim do estruturalismo. Como se sabe, a sua crítica se centrou especificamente numa crítica a Lévi-Strauss.
Argumentando que toda estrutura requer um centro que esteja acima da estrutura e que organize a sua dispersão, ele elaborou a desconstrução do duplo empírico-transcendental. A problemática da linguagem, determinante como tal do estruturalismo, entrou em pauta “quando tudo se tornou um sistema onde o significado central, o significado original ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças“.35
A superabundância, ou o caráter aparentemente transcendental, do centro deve, portanto, ser entendida como um suplemento da finitude ou da realidade empírica. Eis que deriva de uma falta dentro da própria realidade finita. O fim do conhecimento moderno estaria no abandono de qualquer centralidade humanista “diante do ainda inominável que se proclama a si mesmo“.36
Uma outra palestra, em 1968, solidificou o papel de Derrida na dissolução do humanismo. “Os fins do homem” começa com uma longa reflexão sobre o propósito dos encontros filosóficos internacionais e sobre o significado de categorizar a filosofia por nação, no curso do qual ele se referiu ao assassinato de Martin Luther King Jr., ao Vietnã e às convulsões universitárias de Paris. Embora essas referências fossem curtas e bastante indefinidas, ele afirmou que “esses sentimentos me parecem pertencer por direito ao domínio essencial e à problemática geral enfrentada por esta conferência“, dando-lhes uma referência histórica contemporânea nítida.37
Para abordar a questão de como a França se posiciona com a questão do homem, ele analisou, por meio de uma reação, os três pensadores alemães Hegel, Husserl, Heidegger, os quais havia definido amplamente o pensamento francês recente. A sua tese é que a recepção francesa desses pensadores, todos tidos como críticos do antropologismo, ainda era uma crítica humanista. Nesse sentido, aludiu que a filosofia francesa atual “parece… amalgamar Hegel, Husserl e, de maneira mais difusa e ambígua, Heidegger, com a velha metafísica humanista“.38
A situação atual abre, assim, duas possibilidades: ou tentar uma desconstrução que repita os gestos fundadores da metafísica da presença ou “decidir mudar de terreno, de forma descontínua e eruptiva, pisando abruptamente para fora e afirmando a ruptura e a diferença absolutas“.39 É naturalmente a última alternativa com a qual Derrida se identificou e que ele perseguiu por meio de uma aplicação da tese de Heidegger. Segundo essa tese, uma metafísica da presença infectava a filosofia desde Platão à filosofia francesa atual, marcando-a como insuficientemente anti-humanista. As referências pouco desenvolvidas à política contemporânea dos anos 1960 serviram para colorir essa tese filosófica com um radicalismo político, ou aparentemente político.
Essas intervenções de Foucault e Derrida na década de 1960 abriram uma brecha no discurso predominante do humanismo marxista. Na época, elas ocorreram em contextos filosóficos relativamente esotéricos, mas com o tempo sua tese do fim, ou morte, do “homem” passou a ser aceita como se provada sem sombra de dúvidas. Isso ocorreu, principalmente, por meio de sua popularização do volume I da História da sexualidade de Foucault.
Lembre-se que a discussão aqui está orientada para a mudança num discurso filosófico dominante; ela não questiona a validade intrínseca dos textos e seus argumentos em si. Em suma, eles serviram para deslocar o conceito central de “homem” que ancorava o humanismo marxista e para inaugurar um novo discurso, muitas vezes chamado de pós-estruturalismo, que não tinha o papel geralmente convincente do humanismo marxista. De fato, desde então, o discurso filosófico tornou-se muito mais plural; quanto a isso, note-se, uma substituição não está no horizonte.
4. Pontos cegos no humanismo marxista
Até agora, concentrei-me no termo central “homem” por meio do qual o humanismo marxista foi articulado, tendo sido depois criticado pelo emergente discurso pós-estruturalista. Essa crítica abriu o espaço do discurso para um fracionamento por raça, sexo, gênero e outras posições sociais e minou a unidade da teoria da libertação proposta pelo humanismo marxista.
Embora possamos marcar a dissolução do marxismo humanista com bastante clareza, ela não é suficiente para responder à questão de como seu papel emancipatório pode ser transformado e renovado à luz de novos desafios políticos e filosóficos. De fato, a rejeição total do humanismo marxista parece motivar um abandono em larga escala de uma filosofia da libertação humana – ou pelo menos de qualquer teoria unificada ou geral.40 Façamos agora um exame mais detalhado das características específicas do marxismo humanista que exigiram reavaliação, tomando cada uma de suas três partes por sua vez: marxismo, humanismo, existencialismo.
O marxismo foi entendido nos termos da crítica inicial de Marx à sociedade capitalista, de tal forma que a crítica posterior, detalhada e teoricamente rica da economia política em O Capital foi interpretada como se não acrescentasse nada significativo ao conceito de alienação.41 Na década de 1960, enquanto o humanismo marxista e o estruturalismo althusseriano eram vistos como uma decisão entre o primeiro e o último Marx, agora se tornou possível ver que a crítica tardia da economia política é um desenvolvimento da teoria da alienação inicial. Nesse sentido, é preciso buscar uma definição precisa de quais aspectos são significativamente melhorados. Quero fazer apenas duas observações sobre esse avanço.
Quando Marx retorna em O Capital à relação dialética entre humanidade e natureza que descreveu inicialmente em sua obra inicial, ele acrescenta significativamente a tecnologia como mediação entre humanidade e natureza.42 Ele descreve as características transistóricas – ontológicas – do trabalho em seus componentes do processo de trabalho: o material natural trabalhado e os instrumentos (ou tecnologia) usados. A tecnologia é o aspecto especificamente humano do trabalho, que é ao mesmo tempo produto de um processo de trabalho anterior e operativo no trabalho vivo. A categoria de tecnologia é curiosamente elástica. Marx diz:
Em um sentido mais amplo, podemos incluir entre os instrumentos de trabalho… todas as condições objetivas necessárias para o prosseguimento do processo de trabalho. (…) A própria terra é um instrumento universal desse tipo, pois fornece ao trabalhador o chão sob seus pés e um “campo de emprego” para seu próprio processo particular. Instrumentos desse tipo, que já foram mediados por trabalhos passados, incluem oficinas, canais etc.43
Esse sentido mais amplo de tecnologia inclui, portanto, a Terra como ela foi modificada pela atividade humana anterior, bem como a Terra não modificada na condição de “solo nu”, na medida em que é uma condição necessária para o trabalho vivo – como água, ar, gravidade etc. Nesse sentido, Marx inclui o que Hegel chama de primeira e segunda natureza como aspectos da tecnologia. Tecnologia, mesmo “em um sentido mais amplo”, parece um nome estranho para se referir a tudo isso.
Provavelmente chamaríamos, agora, tudo isso de meio ambiente ou mesmo de ecologia, um ambiente construído, introduzindo assim um sentido mais amplo de tecnologia. Marx visava um sentido de natureza, ou ambiente, que pode muito bem ser alterado pela atividade humana, mas não tem sido em sua totalidade o objeto da atividade humana. Marx não chegou a essa conclusão, mas ela está implícita em sua concepção ampliada de tecnologia. A natureza e o ambiente construído são o resultado cumulativo e não intencional do trabalho anterior que sustenta e condiciona o trabalho vivo subsequente.
Uma vez que a atividade humana visa objetivos específicos, essa totalidade histórica cumulativa da natureza original e do ambiente construído modificado pela tecnologia não pode ser entendida como um produto pretendido da ação humana. Nesse sentido, o próprio Marx não me parece culpado do prometeanismo da dominação da natureza de que muitas vezes é acusado, mas que se aplica às versões oficiais dominantes do marxismo. A questão filosófica passa a ser a da ecologia natural inicial, sua transformação pela tecnologia no ambiente construído, e o trabalho excedente por meio do qual a atividade humana excede a simples reprodução e permite o desenvolvimento de tecnologia que altera historicamente o caráter do processo de trabalho.
No Livro I, curiosamente, enquanto Marx utiliza a produtividade excedente do trabalho para explicar o mais-valor que é apropriado no processo de trabalho pelo capitalista, ele não explica a sua origem até a discussão da renda fundiária no Livro III. Aí se torna evidente que o excedente de produtividade do trabalho acaba por assentar num fato natural que é mais evidente no trabalho agrícola, no intercâmbio direto entre o trabalho humano e a natureza.
A base natural do trabalho excedente em geral tem um pré-requisito natural sem o qual esse trabalho não pode ser realizado. E ele consiste no fato de que a natureza deve fornecer – sob a forma de produtos animais ou vegetais da terra, na pesca etc. – os meios de subsistência necessários em condições de um gasto de trabalho que não consuma toda a jornada de trabalho. Essa produtividade natural do trabalho agrícola (que inclui aqui o trabalho de simples coleta, caça, pesca e pecuária) é a base de todo o trabalho excedente, pois todo o trabalho é direcionado primária e inicialmente para a apropriação e produção de alimentos.44
Podemos chamar esse fato natural que torna possível a produtividade excedente de fecundidade natural. Ela está incrustada na ecologia natural antes da intervenção humana por meio da tecnologia, embora possa ser multiplicada por essa intervenção. Nesse sentido, o Marx tardio fundamenta a dialética da humanidade e da natureza na fecundidade da ecologia natural.
Enquanto a inflexão do marxismo humanista implicou numa preferência pelos escritos iniciais em relação aos tardios, a inflexão do humanismo marxista significou uma renovação da tradição humanista por meio de sua extensão para a esfera do trabalho e suas estruturas de exploração. A teoria inicial da alienação de Marx permitiu que essa extensão do humanismo fosse entendida como uma perda e posterior recuperação do verdadeiro sujeito humano.
O modelo de alienação é originalmente uma estrutura trinitária de uma autêntica interioridade, uma exteriorização, e depois uma nova internalização que incorpora algumas das características da exteriorização, mas as devolve a uma coerência interna. É claro que esse modelo tem sido complicado em muitas de suas aplicações, mas a estrutura básica persiste: o si mesmo outro expande o si mesmo.
Esse modelo foi o que permitiu ao humanismo marxista assumir o sujeito humano como ponto de partida e de chegada e, assim, lançar críticas à alienação no mundo atual. Fundamenta também um paralelismo entre críticas individuais e sociais, o próprio paralelismo que permitiu a Fromm e outros tratar as críticas marxistas e freudianas como em princípio idênticas, de modo que a ideia de um retorno à autenticidade a partir da alienação social e da neurose individual governava a prática da crítica.
Colocando o sujeito humanista como ponto de origem autêntica, a constituição do sujeito como tal não era motivo de preocupação. Por essa razão, a base ética e o objetivo do humanismo marxista pareciam estar garantidos. Desde então, tornamo-nos muito mais conscientes da formação do sujeito como um processo sociopsicológico de tal forma que as pluralidades de gênero, raça etc. não são vistas simplesmente como alienações que devem ser descartadas, mas como construções que pluralizam a noção do próprio sujeito humano.
Hoje em dia há uma tendência generalizada, que se assemelha à da invocação de Foucault ou Derrida, de citar a noção de sujeito interpelado de Althusser como se fosse característica dos anos sessenta. Mas se o sujeito é estruturalmente gerado, como ele pode permanecer eticamente importante? Uma vez que entendemos o indivíduo como constituído por meio de processo sociais – e não simplesmente alienado por processos sociais –, o sentido em que se poderia retornar a um eu autêntico torna-se bastante incerto. Como consequência, muitas vezes parece que perdemos esse senso de universalidade humana em um sentido ético que animava o humanismo marxista. Nossa tarefa agora, eu sugeriria, é compreender a constituição plural das subjetividades ao lado de uma universalidade ética.
Isso é especialmente significativo para a interpretação de Freud como humanista. Certamente, a análise freudiana visa libertar o sujeito para que as neuroses não dominem mais a ação em um sentido automático, como afirmava Fromm. Mas não há nenhum sentido em que o inconsciente freudiano possa ser tornado plenamente consciente – de modo que a constituição do sujeito significa que ele nunca poderia se recuperar em uma apropriação plena de seu próprio terreno. Um ponto semelhante pode ser feito em referência ao entendimento de Marković de revolução como transgressão dos limites internos de uma formação social.
Parece bastante incrível que tais limites pudessem ser plenamente conscientes dentro da formação social de modo a permitir que ela fosse ativamente transformada de modo a romper esses limites e se tornar uma nova forma social na qual o que esses limites ocultam pudesse ser evidenciado. Uma forma social, assim como a transição entre formas sociais, provavelmente não se tornará transparente nesse sentido.
A questão é que a compreensão marxista do humanismo por meio da história da alienação simplificou muito a questão de como o indivíduo humano é construído por forças que o indivíduo não pode controlar – nem mesmo em princípio – e, consequentemente, a questão de como as limitações de uma ordem social podem ser evidenciadas dentro dela. E, mais ainda, como tais percepções e entendimentos limitantes podem se tornar objeto de ação revolucionária.
Essa mesma questão aparece dentro da inflexão existencialista que colapsou o que Husserl chamou de ego transcendental e ego empírico. Para Husserl, o significado intencional mundano em sua estrutura inerentemente dual de perceptivo-percebido, agido-agido sobre ou pensador-objeto de pensamento, significava que, para revelar e compreender essa estrutura, era necessária uma perspectiva que pudesse ir abaixo dela até a sua origem.
Ele chamou isso de ego transcendental. Não vou entrar nisso agora, mas não está nada claro por que Husserl pensava que a reflexão transcendental tinha a estrutura de um ego – especialmente porque englobava tanto o perceptivo quanto o percebido etc. Mas não há dúvida de que chamá-lo de ego fez parecer que era um ego no mesmo sentido, ou similar, em que um ego concreto, ou uma pessoa individual, é um ego. Husserl chamou isso de “paradoxo da subjetividade humana”, a de ser o sujeito de toda experiência possível do mundo e, ao mesmo tempo, ser um objeto dentro do mundo.
Embora ele tenha chamado isso de “equivocação”, ele ainda assim o achava essencial ou mesmo inevitável – o que deve ser, se o campo transcendental é, em algum sentido, um ego.45 Assim, havia um ponto válido a ser feito quando Sartre argumentou que o ego transcendental no sentido de Husserl era uma fuga da inserção concreta de alguém no mundo da ação. Como disse Husserl, o ego transcendental é imortal, não nasce e não morre.46
Mas não há razão para rejeitar a própria transcendentalidade como uma indagação sobre os fundamentos do sentido que constituem a correlação entre o sujeito concreto e suas percepções, ações e pensamentos. De fato, a menos que sejamos deixados presos dentro do mundo social realmente dado – que é onde Sartre nos deixa – alguma investigação transcendental sobre os fundamentos e pressupostos de um mundo significativo deve ser possível.
Como Herbert Marcuse nunca deixou de enfatizar, é a filosofia que, por sua transcendência em relação ao mundo existente, preserva as bases conceituais para a transformação da realidade social.47 Em suma, o equívoco de Husserl levou ao achatamento de Sartre, e o achatamento de Sartre levou tanto a uma apreciação do mundo concreto como o único mundo para os humanos existentes quanto à exclusão de uma investigação suficiente sobre os fundamentos desse mundo para poder formular o projeto de sua superação – exceto como o fiat de uma escolha individual.
Várias vertentes de nossa reflexão sobre a dissolução do humanismo marxista convergem nesse ponto: como perceber e agir sobre o limite interno essencial de uma determinada formação social? O sujeito humanista é constituído e, portanto, não consiste num ponto de origem; contudo, ele é ainda um objetivo ético. Não há um paralelismo demasiado simples entre o indivíduo e o sujeito social que possa ser apreendido por meio do paradigma da alienação.
De fato, o próprio Husserl observou que a resolução do paradoxo da subjetividade de uma maneira que removesse o equívoco poderia ocorrer por meio da abordagem da constituição da intersubjetividade – em vez de passar diretamente do eu individual para o sujeito social, seria preciso passar por todas as mediações que reúnem os indivíduos em grupos e, a partir daí, para um sujeito universal que pudesse fundamentar um humanismo ético.
Assim, emerge uma diferença crucial entre a subjetividade individual e a mudança social – uma diferença que requer muita análise e ação – que foi encoberta e tornada evidente simplesmente chamando-a de escolha existencial. Um último aspecto dessa fusão de dimensões individuais e sociais deve ser mencionado: o paradigma de alienação de Marx nos Manuscritos de 1844 deixou de lado a inevitabilidade da morte individual como algo sem interesse, justamente por não se encaixar na definição de ser humano como espécie-ser e, portanto, universal (Gattungswesen).48
A interpretação humanista do existencialismo por meio do “compromisso” de Sartre e não por meio do “ser-para-a-morte” de Heidegger, bem como a perda da dimensão trágica da psicanálise freudiana, fazem assim todo o sentido. Embora a dissolução tenha sido, sem dúvida, motivada e talvez inevitável, pode-se ser perdoado por pensar que algo foi perdido no processo.
5. O que pode ser uma filosofia para o nosso tempo?
Assim, pode-se entender o significado original do humanismo marxista, sua dissolução e algumas razões internas para essa dissolução. Lembre-se de que sugeri que a ênfase no Marx primeiro negligenciava o papel da tecnologia e do ambiente construído no estabelecimento da dinâmica histórica entre os seres humanos e a natureza.
Atualmente, a relação entre a crítica madura de Marx ao capitalismo e à tecnologia, ao ambiente construído e à ecologia natural é uma questão urgente que tem sido abordada de muitos pontos de vista. Também sugeri que a hegemonia da história da alienação sobre a compreensão do humanismo ignorava as forças externas que constituem a subjetividade e as formas de intersubjetividade. Como consequência, simplificou demais a possibilidade revolucionária de identificar o limite de uma formação social a partir de seu interior, perdendo o sentido em que o inconsciente freudiano de um indivíduo ou de um mundo histórico nunca pode ser tornado transparente dentro dele, de modo que a relação marxiana de análise e ação se tornou muito mais problemática.
Por fim, sugeri que o colapso existencialista da distinção entre a constituição transcendental da possibilidade de sentido e a subjetividade concreta que encena o sentido colocou uma ênfase muito alta no que pode ser realizado por decisão ou escolha individual e, além disso, ocluiu o significado da morte e da tragédia para as subjetividades individuais. Como o esboço geral de uma filosofia para o nosso tempo pode emergir ao levar essas críticas adiante?
Isso exigiria uma filosofia da tecnologia que considerasse o papel da tecnologia tanto no ambiente construído quanto na ecologia natural. Exigiria uma recuperação da universalidade da humanidade contra a fragmentação contemporânea das diferenças em uma política identitária que não vê semelhança no “humano” e, portanto, não pode pensar em conjunto as diferentes formas de opressão e exploração. Exigiria uma aceitação da morte, da limitação e da tragédia como destino das subjetividades individuais. Isso exigiria uma justificação renovada da dimensão transcendental da experiência humana em contraposição à tendência contemporânea de limitar os indivíduos dentro de sua experiência imanente.49
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-dissolucao-do-humanismo-marxista/
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