A impunidade da Del Monte no Quênia vai além do suposto assassinato de ladrões de abacaxi. A influência da corporação dos EUA sobre o Estado permitiu-os engolir a terra e o trabalho dos quenianos por inteiro em sua busca pelo lucro.
Por: Tyler Antonio Lynch |Tradução: Priscilla Marques | Crédito Foto: (Simon Maina/AFP via Getty Images). Um vendedor exibe abacaxis enquanto espera por clientes em um mercado informal na estrada em frente às plantações de abacaxi de Del Monte em Kabati, no Quênia, em 18 de janeiro de 2024.
Na fértil região de Thika, no Quênia, ao norte de Nairóbi, roubar abacaxis é considerado um crime capital de fato. Pelo menos nove homens foram supostamente mortos por guardas de segurança empregados pela Del Monte, o maior produtor mundial de abacaxis.
Essa série de assassinatos ganhou destaque internacional pela primeira vez em junho de 2023, quando o The Guardian expôs uma lista de mortes e agressões violentas pelo aparato de segurança privada que a Del Monte emprega para proteger sua safra de ladrões. Os guardas de segurança da corporação foram acusados pelos moradores locais de matar nove homens com idades entre vinte e dois e cinquenta e dois anos desde 2013 — “além de cinco estupros, alegações de ferimentos graves, incluindo ferimentos na cabeça, ossos quebrados e cortes de lâminas que exigiram pontos.”
Os assassinatos em questão foram brutais, com a maioria das vítimas morrendo de traumas infligidos por cacetes, pedras e punhos. As tentativas de se livrar dos corpos mortos na propriedade da Del Monte foram igualmente grosseiras. O corpo de Stephen Thuo Nyoike, morto aos vinte e dois anos, foi encontrado estrangulado com arame ao lado de uma estrada pública. Saidi Ngotho Ndungu foi encontrado boiando em uma represa, enquanto os corpos de quatro homens foram recuperados de um rio no dia de Natal.
O fato da segurança privada de uma grande corporação estar envolvida nos assassinatos extrajudiciais de quase uma dúzia de homens acusados de roubar frutas, é suficientemente chocante. Some a isso, a natureza brutal dos assassinatos — muitos tão prolongados que testemunhas ouviram as vítimas implorando por suas vidas — e o descarte insensível dos corpos nas margens das estradas e represas.
Não é de se admirar, então, que a condenação dos ataques letais da Del Monte tenha sido rápida e generalizada. Após os relatos do Guardian, as principais redes de supermercados do Reino Unido, Tesco e Waitrose, rapidamente retiraram os abacaxis do Quênia da Del Monte de suas prateleiras.
Mas os crimes da Del Monte não se limitam às transgressões de alguns guardas de segurança violentos. Sua exploração da terra, do trabalho e da lei do Quênia é sistemática e grave, desde a polícia local até membros do parlamento.
Esta é a vida e a morte na República do Abacaxi.
“Sem lesões visíveis”
Como se pode assassinar nove homens por roubar frutas e sair impune? As supostas vítimas da Del Monte eram principalmente jovens pobres e desempregados, e, portanto, facilmente descartados como membros de gangues e ladrões.
No entanto, os depoimentos de familiares das vítimas apontam para um sistema mais amplo de encobrimentos e conluio entre a Del Monte e as autoridades policiais quenianas. Nos condados de Murang’a e Kiambu, através dos quais se estende a enorme plantação de Thika, a Del Monte parece estar acima da lei. Mesmo quando seus guardas são diretamente acusados de assassinato, como no caso do assassinato de Bernard Murigi em 2019, cinco anos se passaram sem sinal de julgamento.
Como se pode assassinar nove homens por roubar frutas e sair impune?
Com mais frequência, as mortes são classificadas como acidentes, apesar das evidências apontarem o contrário. Em pelo menos duas ocasiões, a Del Monte pagou pelas investigações forenses de suas próprias supostas vítimas, empregando um patologista disposto a concluir que os cadáveres espancados estavam desprovidos de lesões visíveis. Testemunhas relataram que Saidi Ndungu implorava por sua vida enquanto os guardas da Del Monte o espancava com cacetetes — mas seu atestado de óbito “apontou o afogamento como a causa”.
Quando quatro corpos foram encontrados em um rio no Natal de 2023, a Del Monte insistiu que esses supostos ladrões haviam simplesmente se afogado durante uma invasão mal sucedida. Testemunhas relataram guardas espancando os homens com barras de metal, jogando corpos no rio e atirando pedras naqueles que nadavam para longe.
Em outros lugares, a polícia aparentemente colaborou com a Del Monte para falsificar testemunhos e destruir evidências. Em janeiro, após o incidente do rio, a Del Monte supostamente atraiu testemunhas potenciais para sua propriedade com a promessa de dinheiro e empregos, onde policiais tentaram pressioná-las a assinar declarações afirmando que as mortes de dezembro foram afogamentos acidentais. A apatia da polícia em relação às vítimas é igualmente ubíqua. “Eles não gostam de buscar justiça”, disse um homem aleijado pelos guardas da Del Monte. “Eles só te dão [um formulário para preencher] e isso é tudo.”
Guardas de segurança que matam com impunidade, policiais corruptos e patologistas forenses dispostos a falsificar evidências médicas — embora grotesco, é um pouco mais do que a base do edifício de exploração da Del Monte ergueu no Quênia costuma fazer. Entender o status privilegiado da Del Monte requer entender a economia da exportação de frutas tropicais em larga escala internacional.
“Motor econômico crítico”
ADel Monte trouxe a indústria do abacaxi para o Quênia em 1965, mas as corporações ocidentais, que se apropriam de terras no Sul Global para cultivar culturas comerciais para exportação, são um fenômeno muito antigo.
Esse modelo é a mola mestra das práticas abusivas da Del Monte — assim como motivou as atrocidades que a United Fruit infligiu à América Central na época da chamada República das Bananas. A produção de frutas tropicais é uma indústria multibilionária, não apenas porque as margens de lucro sejam particularmente altas, mas porque corporações como a Del Monte podem se beneficiar de grandes extensões de terra e mão de obra barata em países periféricos ansiosos por exportações de qualquer tipo. Terra acessível, mão de obra barata e políticos corruptos são as condições necessárias para o império global da Del Monte.
No entanto, as agro corporações que produzem culturas comerciais para exportação, dificilmente proporcionam ao estado um caminho seguro para a prosperidade econômica. Embora a Del Monte empregue diretamente cerca de sete mil quenianos, a maioria deles é relegada ao trabalho manual precário e mal remunerado.
“Terra acessível, mão de obra barata e políticos corruptos são condições necessárias para o império global da Del Monte.”
Mesmo com margens de lucro relativamente baixas, a exploração da terra e da mão de obra africana ainda é um grande negócio. A Del Monte é a maior empregadora do setor privado no Quênia, com despesas anuais de receita superiores a US$100 milhões. Mais importante para um país envolto em dívida denominada em dólares, a Del Monte gera cerca de US$62 milhões em divisas estrangeiras. Tudo isso é suficiente para garantir à Del Monte a proteção servil do estado queniano, com a corporação sendo “considerada um motor econômico crítico tanto no Condado de Murang’a quanto nacionalmente”.
Desde 2021, o governo queniano prometeu apoio à Del Monte na forma de isenções fiscais, “incentivos políticos” nebulosos e levantamentos de terras gratuitos. Em troca, a Del Monte prometeu continuar pagando impostos e, nas palavras do governo, “implementar mais programas de Responsabilidade Social Corporativa transformacionais [sic]”. Assim, mesmo enquanto os cidadãos do Quênia enfrentam uma crise do custo de vida sob aumentos de impostos punitivos, com a maioria do país sofrendo com a crise alimentar, a Del Monte cultiva frutas exóticas para mercados estrangeiros. Essas grandes multinacionais desfrutam de uma carga tributária mais baixa, com a promessa de cumprir responsabilidades sociais abandonadas pelo próprio estado.
“Não sobrou mais terra para ser vendida”
Isenções fiscais e políticas favoráveis são úteis, mas nada ilustra melhor o controle da Del Monte sobre o estado queniano, do que o controle da corporação sobre a terra. Na verdade, ninguém — nem mesmo o governo queniano — sabe exatamente quantas terras a Del Monte possui no país.
A empresa afirmou possuir 22.500 acres; o governo estima suas propriedades em 32.240 acres. O Comitê Parlamentar de Terras afirma que a Del Monte tem um contrato de arrendamento para apenas 20.000 acres. E, de qualquer forma, a Del Monte usa apenas cerca de 14.000 acres para o cultivo e processamento de abacaxis.
O restante ela simplesmente retém, contente em deixar milhares dos acres mais férteis do Quênia, em pousio enquanto o norte enfrenta a fome.
Desnecessário dizer que a propriedade de mais de 20.000 acres de terras agrícolas produtivas por uma multinacional não passou despercebida. Em 2020, com o contrato de arrendamento da Del Monte para milhares de acres de terras férteis em Thika prestes a expirar, moradores locais e políticos federais clamavam pela liberação da terra de interesse público.
A memória dos moradores locais das desapropriações que antecederam a criação da plantação, continua forte. Um grupo de manifestantes e moradores de Kandara tem travado uma longa batalha legal para forçar a Del Monte a liberar cerca de 7.500 acres sob a alegação de que “são terras ancestrais que o processador ocupa ‘à força’ “.
A Comissão Nacional de Terras reforçou essas demandas em 2020, ordenando que a Del Monte alienasse uma pequena parcela de terra para os municípios locais “para fins de reassentamento e utilidades públicas”. Em 2021, o Parlamento reafirmou que o contrato de arrendamento da Del Monte não deveria ser renovado até que os acres em questão fossem alocados para os moradores locais.
Dois anos depois, os moradores ainda não haviam visto um único pedaço daquela terra. Em um ato de pura farsa, o contrato de arrendamento da Del Monte havia sido de alguma forma renovado. Diante dessa flagrante desconsideração da decisão judicial, para muitos quenianos, a única explicação plausível é a associação direta entre a Del Monte e os políticos locais.
No cenário de disputas legais sobre a pequena quantidade de terra, a Del Monte vem silenciosamente transferindo propriedades para empresas de fachada e aliados ricos, em vez de vê-las serem direcionadas para os moradores locais. Às vezes, a corporação negocia em territórios que nem sequer pode legalmente possuir: uma ação judicial movida por moradores de Kandara alega que, desde 2010, a Del Monte vem transferindo terras públicas para empresas de holding para subdividir e vender. Nas proximidades, uma proeminente família do Condado de Kiambu foi beneficiária de impressionantes três mil acres da Del Monte — os quais “imediatamente arrendou de volta para o processador”.
A mera incerteza em torno das negociações secretas de terra da Del Monte tem sido um campo aberto para os fraudadores. Golpistas que afirmam vender lotes de terras da empresa embolsaram cerca de US$164.000 antes que a fraude se tornasse notícia nacional. Um funcionário de Murang’a criticou aqueles que foram tolos o suficiente para cair no golpe, declarando “as pessoas a perceberem que não sobrou mais terra para ser vendida em qualquer lugar deste país.”
Exceto, aparentemente, se você for rico.
“Talvez escravos”
Ao lado da terra, a mão de obra barata é o recurso mais valioso que a Del Monte extrai do Quênia. As corporações de frutas tropicais sempre dependeram de manter grandes contingentes de trabalhadores em precariedade perpétua. Com a demanda por trabalho variando amplamente entre a temporada de colheita e o resto do ano, processadoras de frutas como a Del Monte têm todo o incentivo para manter seus trabalhadores em contratos flexíveis, com poucas garantias de trabalho constante.
Assim, em outubro de 2023, em uma aparente tentativa de “diminuir os custos operacionais”, a Del Monte Kenya informou aos seus trabalhadores eventuais para esperar apenas treze dias de trabalho por mês. No entanto, mesmo esse número parece inflado. De acordo com o porta-voz dos trabalhadores, Stephen Makau, o número real de dias em que a maioria dos trabalhadores estava atuando a cada mês eram apenas três.
“Estamos sofrendo e estamos passando por um inferno”, afirmou Makau. “Nossos contra-cheques estão refletindo zero xelins como salário líquido. Não podemos economizar e não podemos mais ser descritos como trabalhadores… talvez escravos.”
Os funcionários da Del Monte não aceitaram passivamente sua exploração.
Na verdade, greves e resistência às violações trabalhistas remontam a quase quatro décadas. Um relatório de 2002 da Comissão de Direitos Humanos do Quênia detalhou uma série de abusos e condições perigosas sustentadas desde os anos 1980. Trabalhadores queimados por ácido sulfúrico, demitidos por atividade sindical e mortos de malária depois que as clínicas da empresa lhes recusaram tratamento — esses seriam apenas alguns dos casos.
Diante de uma exploração atroz, os funcionários da Del Monte continuam a se envolver em greves e negociações coletivas, com trabalhadores de Murang’a exigindo que a corporação implemente um mínimo mensal de dezoito dias úteis e use suas terras em descanso, para cultivar culturas como milho e mandioca. Para os trabalhadores das plantações, até a subsistência deve ser reivindicada — sendo que a empresa ainda insistiu em declarar que a greve de 2021, de seis mil funcionários, era completamente ilegal.
Diante dessas demandas, não apenas a Del Monte, mas um conjunto de instituições estatais ficam desesperadas para evitar qualquer interrupção. A Organização Central de Sindicatos admite livremente que a Del Monte é simplesmente grande demais para falhar. Como um membro do conselho deixa bem entendido “em uma economia que precisa desesperadamente de oportunidades de emprego, impostos e divisas estrangeiras, não temos escolha a não ser apoiar a Del Monte como um ativo nacional e um elo importante, bem como, nosso aliado amigável que é a América.”
Assim, para a liderança do sindicato dos trabalhadores agrícolas do Quênia, a prioridade não é garantir práticas trabalhistas justas, mas alertar ao governo de que “o país sofrerá muito se a Del Monte quebrar.” Uma admissão reveladora de que o modelo de negócios em questão depende de manter os trabalhadores em condições pouco diferentes da escravidão.
“Brutalizando nosso povo”
Uma quantidade crescente de processos civis, investigações governamentais e boicotes de varejo não augura nada de bom para a Del Monte Kenya. No entanto, a empresa mais ou menos se recusou a assumir qualquer responsabilidade pelas nove mortes e dezenas de agressões violentas atribuídas a ela, com porta-vozes corporativos lembrando alegremente ao público do “compromisso de longa data da Del Monte com os direitos humanos”.
De fato, a Del Monte não apenas rejeitou seu suposto mau tratamento aos quenianos, mas também o direito do Quênia de responsabilizá-la legalmente, de qualquer forma que seja. Enfrentando um processo civil de grupos de direitos humanos, a Fresh Del Monte — a empresa-mãe de sua subsidiária queniana homônima — argumentou que, como estava domiciliada nas Ilhas Cayman, nenhum tribunal queniano tinha jurisdição para julgá-la. Os advogados do processo civil não ficaram impressionados. “É muito irresponsável da Del Monte nos dizer que estão baseados nas Ilhas Cayman e que não podem ser processados”, afirmou Mwangi Macharia, “mas podem cultivar abacaxis na África.”
Essa esquiva de responsabilidade se alinha perfeitamente com a relação mais ampla entre a Del Monte e seu país anfitrião. Para a primeira, o Quênia é simplesmente mais um local para construir a mesma máquina agrícola comercial, orientada para a exportação que opera na Costa Rica e nas Filipinas. Sua produção de abacaxis pode envolver terra e mão de obra africanas, mas a Del Monte está determinada a não ser de forma alguma responsável pelas pessoas africanas.
Com um eco marcante das antigas Repúblicas das Bananas, a Del Monte criou um espaço de impunidade no sudoeste do Quênia. Em suas vastas propriedades, a Del Monte engole a terra e a mão de obra inteiras em sua busca por lucros com exportações, defendendo sua riqueza tropical — na medida em que os locais estão sendo prejudicados em diversas esferas tanto com ausência de seguridade de trabalho e de vida.
Esse regime exige a cumplicidade das autoridades locais e estatais do Quênia para proteger a Del Monte de reações populares e escrutínio legal — a fim de obter divisas cruciais e proteger o status do Quênia com as corporações dos EUA. Parentes dos homens supostamente mortos por conta de um saco de frutas no valor de $10, temos pouca ilusão sobre a hierarquia de valor que existe no país, por parte da Del Monte. “Eles não valorizam a vida,” disse o pai de Stephen Nyoike. “O que eles mais valorizam são os abacaxis.”
Não há dúvida de que as operações da Del Monte, apesar de seu óbvio impacto econômico, impuseram um custo terrível ao Quênia. “É importante que o mundo saiba,” afirma Macharia, “que esta empresa americana está brutalizando nosso povo, matando nossa população, estuprando nossas mulheres e destruindo o meio ambiente.” Nenhuma fruta é doce o suficiente para superar esse gosto amargo.
Veja em: https://jacobin.com.br/2024/05/del-monte-esta-transformando-o-quenia-em-uma-republica-do-abacaxi/
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