Compreender o vício em drogas como doença crônica foi importante para desestigmatizar usuários. Mas novos estudos apontam que é preciso colocar os fatores ambientais no centro da discussão. A solução pode estar em menos punitivismo e mais cuidados comunitários
Por: Gabriela Leite | Crédito Foto: Agência Brasil
Por muito tempo, a adição tem sido amplamente considerada como uma doença crônica do cérebro – uma visão que moldou tanto a compreensão médica quanto algumas das políticas públicas voltadas ao tratamento de usuários de drogas. Essa descoberta científica foi, de fato, um avanço, pois ajudou a diminuir o estigma de pessoas com problemas com essas substâncias.
Mas, segundo uma instigante reportagem publicada no jornal estadunidense New York Times, é preciso olhar para o tema por outros ângulos, se quisermos tratar dos males das drogas de forma mais efetiva. Os fatores sociais e ambientais, além da genética, são decisivos para definir o futuro da pessoa que começa a usar drogas. Uma mudança de paradigmas pode trazer transformações importantes – inclusive para a realidade brasileira, cheia de desigualdades estruturais que aumentam a vulnerabilidade ao uso de substâncias.
A visão científica mais tradicional, que define a adição como doença crônica no cérebro, ganhou força a partir dos anos 1990. Segundo as descobertas dessa época, o uso repetido de drogas altera permanentemente o funcionamento cerebral, levando a um estado de compulsão e recaída. Essa teoria ajudou a desestigmatizar a imagem dos usuários de drogas, ao promover a ideia de que essas pessoas não eram simplesmente “fracas’ ou “imorais” – estavam, na verdade, lidando com uma doença de longo prazo.
Mas ao mesmo tempo em que essa abordagem trouxe avanços, como a ampliação do acesso a tratamentos baseados em evidências científicas, ela também reduziu a complexidade do fenômeno da adição, ignorando fatores fundamentais como ambiente familiar, condições de vida e saúde mental. Foi por isso que pesquisadores começaram a defender que o uso de drogas deve ser entendido de maneira mais integrada.
Ao invés de ver a adição exclusivamente como um “problema do cérebro”, novas pesquisas sugerem que é preciso considerar as razões que levam as pessoas a usar drogas. Em muitos casos, o uso de substâncias surge como uma tentativa de lidar com situações insustentáveis: abuso doméstico, transtornos mentais não diagnosticados, solidão e a falta de oportunidades sociais e econômicas. Em comunidades marginalizadas, onde as opções de emprego e educação são limitadas, as drogas muitas vezes surgem como uma forma de escape, o que torna o ambiente social um fator determinante.
Para além do ambiente, a genética e as circunstâncias familiares também influenciam a predisposição de uma pessoa para o uso de drogas. Famílias com histórico de dependência aumentam significativamente as chances de que seus membros recorram ao uso de substâncias.
A crítica ao modelo de adição como doença crônica também aponta para uma questão crucial: rotular as pessoas como “doentes” pode ter efeitos contraproducentes. A mensagem implícita de que a adição é um estado fixo, do qual os indivíduos nunca se recuperarão por completo, pode minar o otimismo e a crença na recuperação.
Brasil: entre o punitivismo e a reforma psiquiátrica
A epidemia de opioides nos Estados Unidos, marcada pela alta letalidade do fentanil, trouxe à tona a ineficácia de uma abordagem centrada exclusivamente na penalização. Embora o Brasil enfrente desafios diferentes em termos de substâncias mais comumente usadas, como o crack, são claras as semelhanças entre as populações afetadas – frequentemente de baixa renda e com acesso limitado a recursos de saúde, moradia e lazer.
Mas há outra particularidade importante no Brasil: aqui, a saúde mental é (ou deveria ser) regida pelos princípios da Reforma Psiquiátrica. Ou seja, pessoas com problemas com drogas deveriam receber tratamento em liberdade, atenção integral e comunitária, com suporte social, familiar e intersetorial. O que os pesquisadores norte-americanos defendem já é posto em prática por aqui – e defendido há ao menos quatro décadas.
No entanto, com o subfinanciamento crônico do SUS, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) não é capaz de atender a todos os brasileiros de forma desejável. O modelo punitivista e a falida guerra às drogas permanece, em muitos lugares, como única maneira de enfrentar esse problema de muitas faces. Espalham-se pelas grandes cidades as chamadas “cracolândias”, em que dezenas ou até centenas de usuários em vulnerabilidade extrema se aglomeram – em uma crise que parece não ter fim.
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