Novo livro desafia o tecnofatalismo com duas hipóteses não convencionais. Ordem do capital está ruindo – logo, as novas tecnologias não precisam ser distópicas. E o Brasil pode ter papel relevante numa Economia Digital Solidária. Será verdade?
Por: Adriana Brandão, Daniel Santini e Rafael Grohmann | Crédito Foto: Sesc Paraná
Nos últimos anos, o Brasil avançou de maneira significativa na construção de novas formas de organização social e econômica baseadas em tecnologia, solidariedade e cooperação. Cresceu e chama a atenção o número de organizações sociais, cooperativas e instituições que buscam estruturar processos produtivos e iniciativas digitais a partir do fortalecimento de bens comuns por meio de políticas e ações colaborativas, e não apenas em função do lucro. Trata-se de uma mobilização coletiva com potencial de transformar relações de trabalho e influenciar na formulação de políticas públicas em um movimento que abre caminho para rever os modelos das plataformas tradicionais, marcados pela precarização e falta de regulamentação. Se na década passada ganhou força a ideia de Cooperativismo de Plataforma, baseada no livro homônimo deT rebor Scholz, hoje já é possível falar em Economia Solidária Digital.
O conceito é relativamente novo e está apresentado em detalhes no livro Economia Solidária Digital: Caminhos para potencializar políticas e ações baseadas em cooperação e solidariedade, de Emanuele Rubim e Lucas Milanez. A obra é fruto de uma nova parceria entre DigiLabour, a Fundação Rosa Luxemburgo e da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária do Ministério doT rabalho e Emprego.
A publicação ficou pronta em agosto, com dois lançamentos iniciais planejados com acesso livre e distribuição gratuita de exemplares. Primeiro, um pré-lançamento na Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), no sábado, 3 de agosto, das 17h30 às 19h30, na Central 1926, que fica na Praça da Bandeira, 137, Bixiga, São Paulo (SP). Depois, um lançamento oficial em 14 de agosto, às 16h, na biblioteca da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), em Brasília (DF). A versão digital da publicação está disponível de maneira aberta no site da Fundação Rosa Luxemburgo.
Economia Solidária Digital
O conceito, conforme mencionado, é relativamente novo, mas é tão potente que já se alastrou de maneira significativa. Parte de uma definição para além da plataforma como mero instrumento tecnológico. Calçada em tradições latino-americanas de Economia Solidária, onde o Brasil tem um histórico respeitável, e em princípios de cultura livre, onde entram software livre, licenças abertas e construção de conhecimento de maneira colaborativa, a perspectiva envolve a criação e aprimoramento de processos coletivos fundamentados na solidariedade. Tudo potencializado pelo uso de ferramentas digitais que ampliam a possibilidade de comunicação e interação, fortalecendo alianças e articulações.
Se antes, a prioridade era a organização dos trabalhadores por aplicativos em cooperativas de plataforma, agora cabe imaginar territórios inteiros conectados por tecnologias digitais que melhor organizam demandas por produtos e serviços, orientando as cooperativas locais na focalização da sua produção. A Economia Solidária Digital é um campo de possibilidades que se abre a partir da percepção dos infinitos recursos de organização das relações de produção e consumo que foram colocados pela tecnologia digital. Ampliam-se as experiências de uso da tecnologia digital para atender às demandas das classes populares, evidenciando a dimensão política dessa agenda.
Afinal, a administração pública não pode se limitar a regular o trabalho por plataformas. É preciso imaginar e construir alternativas à dependência das plataformas multinacionais, pensar em desenvolvimento local e em soberania digital. Justamente pelo histórico de políticas públicas concretas relacionadas, o país tem tudo para avançar com ideias inovadoras.
Dá para falar, aliás, em Economia Solidária 2.0, uma referência que lembra o sólido histórico da secretaria que já foi comandada pelo economista Paul Singer, um dos principais pensadores do Partido dos Trabalhadores. A própria experiência sindical histórica do partido pode ser importante para avançar com novas soluções, afinal trata-se aqui de imaginar e favorecer novos arranjos de organização laboral baseados na garantia de direitos e condições dignas de trabalho, composições, registre-se, que podem somar e se combinar com esforços e mobilizações dos sindicatos tradicionais. E há uma série de pesquisas recentes ressaltando a importância de diálogos entre sindicalismo e cooperativismo em contexto de economia digital.
Ou podemos mesmo inverter a ordem das palavras e falar em Economia Digital Solidária, como proposto por diferentes forças políticas, incluindo o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em 2023, por meio de seu Coletivo de Tecnologia e Soberania Digital, o partido publicou um decálogo sobre tecnologias considerando a Economia Digital Solidária como um dos pilares de políticas públicas para tecnologias. O conceito foi definido como “uma economia digital justa e solidária passa pela geração de renda, pela promoção da integração do cooperativismo de plataforma ao sindicalismo, da atração de profissionais de Tecnologias da Informação para agendas socialistas, além do desenvolvimento de tecnologias digitais para facilitar a organização de trabalhadoras e trabalhadores”. Dentre os outros pilares do documento, alguns destaques são: “criação e promoção de tecnologias inclusivas, livres, socialistas, populares, sustentáveis, feministas, anti-racistas e anti-discriminatórias […], luta pelo trabalho efetivamente decente e construção de uma economia digital solidária” O documento lista em suas Diretrizes sobre Políticas de Tecnologias Digitais definições, referências, princípios e recomendações importantes, que merecem ser mencionados por ajudar a pensar a questão:
- “A Soberania Digital Popular trata da construção de ferramentas, infraestruturas e plataformas socialistas e livres. Soberania é também sobre como e para quê usar as tecnologias digitais, em diálogo com a população e seus contextos socioculturais. Se refere à criação e à adoção de tecnologias – digitais ou não – emancipadoras a partir da sabedoria popular e da ciência cidadã que sejam facilitadoras da paz, da autodeterminação dos povos, da promoção das igualdades digitais, da proteção dos direitos humanos e do meio ambiente. Que sejam softwares e tecnologias abertas, modificáveis e auditáveis”.
- “Promover a convergência entre uma agenda para economia digital solidária e a ecológica, apontando que há meios de unir a garantia de trabalho decente e a pauta ambiental, via soluções de escopo local e criação de empregos verdes.”
- “Impulso Eco-Solidário Digital: Incentivar e fomentar a economia solidária digital como alternativa ao empreendedorismo para inclusão em diversos setores econômicos. As tecnologias podem ajudar a identificar e planejar o uso dos bens comuns, como água e eletricidade. Também podem ser empregadas na prevenção de desastres. Estudar exemplos de sucesso no mundo, que possam indicar horizontes para o desenvolvimento do programa, desde que orientados e adaptados à realidade dos municípios brasileiros (como o Match Impulsa de Barcelona).”
Isso reforça o potencial político desta agenda, especialmente em território brasileiro. Nas eleições municipais deste ano, talvez vejamos muitas propostas de políticas municipais para o tema.
Economia Solidária Digital e Economia Digital Solidária podem ser vistas e entendidas como dois eixos de um mesmo processo. Economia Solidária Digital significa a transformação digital da economia solidária, enquanto a economia digital solidária significa lutar por políticas de tecnologias e economias que partem de perspectivas solidárias, a partir de movimentos e políticas anteriores com acúmulo sobre tecnologias livres, redes comunitárias etc.. São dois pontos de partida diferentes, mas sob a mesma confluência, com o mesmo olhar.
Inteligência artificial
O “digital” nunca é um fim em si mesmo. Não se trata, afinal, de criar aplicativos e inovações tecnológicas e oferecê-las às comunidades, mas sim buscar soluções a partir de demandas concretas e necessidades. O cenário de mudanças aceleradas exige justamente pensar em horizontes e limites para o uso de novas ferramentas, com a inteligência artificial ampliando de maneira significativa as possibilidades e riscos. De que maneiras é possível democratizar as novas ferramentas baseadas em respostas automáticas e elaborações sofisticadas a partir de conjuntos massivos de dados? Os parâmetros da Economia Solidária Digital podem ser decisivos para tornar o futuro que se desenha mais sustentável e equilibrado.
A questão dos dados é central. Em vez de trabalhar com uma lógica proprietária, em que cada fragmento de informação é tratado e vendido de maneira comercial com pouco cuidado em relação à privacidade, que tal pensar em dados comuns (commons)? Ou seja, na criação de bancos de dados públicos em que informações pessoais são anonimizadas e que sirvam para alimentar cooperativas de dados que possam apresentar soluções para questões de interesse coletivo? Que tal pensar na construção de cooperativas no contexto das redes globais de produção de inteligência artificial, com bases comunitárias de anotação de dados – como a Karya, cooperativa de dados indiana que trabalha na construção de soluções a partir de tal premissa.
É possível sonhar com uma inteligência artificial aberta, livre e acessível para o bem comum? Que tal imaginar múltiplas formas de governança com participação popular na administração de tais sistemas automatizados de respostas e comandos alimentados por conjuntos massivos de dados?
Mesmo a infraestrutura digital – que é central em contexto de IA – deve ser considerada. Em vez de bunkers fechados controlados por empresas, que tal imaginar centros de dados (data centers) comunitários e públicos, que permitam armazenar e democratizar o acesso a largos conjuntos de informações de interesse público? Que tal pensar na governança a partir de valores comunitários, algo especialmente importante se considerada a importância da governança de dados para a Economia Solidária Digital? É preciso pensar em Organizações Autônomas Distribuídas (DAOs), tal qual a DisCO (Distributed Cooperative Organizations). Ou em Infraestruturas Autônomas Feministas, como as desenvolvidas pelo MariaLab. É possível buscar inspiração em Infraestruturas Digitais Públicas, inclusive na Open Network for Digital Commerce, outro exemplo interessante da Índia.
Manter em vista a importância da Soberania Digital Popular implica apostar e investir em processos de tecnologia, educação e comunicação a partir de perspectivas populares sobre as tecnologias. Pensar e dialogar com a ideia de Pluriversos Digitais, de Inteligências Artificiais Decoloniais, lidar com questões como racismo algoritmo, vigilância e controle massivo.
Os movimentos por Inteligências Artificiais feministas e indígenas são parte de movimentos mais amplos de Economia Solidária Digital e fundamentam-se na preocupação em construir e garantir autonomia a comunidades, com ferramentas que sejam desenvolvidas e considerem valores locais. Conjuntos de dados não são isentos ou neutros – são formados a partir de perguntas e comandos prévios e surgem com uma perspectiva política intrínseca. É por isso que faz sentido considerar protocolos indígenas, projetos de Inteligência Artificial com filosofia Ubuntu ou mesmo iniciativas de dados feministas, como o projeto Data Gênero. Isso só para citar alguns exemplos concretos e possibilidades reais. Tem muitas iniciativas interessantes em curso em todo o mundo.
Ecologia Digital
Não é de hoje que existe um verdadeiro ecossistema de cooperação e solidariedade instituído no Brasil, com ferramentas e soluções digitais justamente baseadas na construção de
acervos comuns e no fortalecimento de iniciativas de cultura livre, com licenças abertas e livre compartilhamento. Justamente pela experiência e acúmulo que o país têm, com redes constituídas e bem organizadas, que a proposta de uma reorganização econômica e social pode dar frutos.
O conceito de Ecologia Digital, conforme defendido por José Murilo Costa Carvalho Junior, pode ser especialmente interessante. Especialista em políticas públicas voltadas para a tecnologia digital e a internet, foi um dos pioneiros em criar espaços e estratégias para armazenamento e difusão de informações de interesse público, o pesquisador hoje trabalha com acervos culturais digitalizados. Ele defende e elabora sobre o tema desde o começo do século e, em 2002, definiu o conceito da seguinte maneira:
“A Ecologia Digital busca entender a produção, distribuição, armazenagem, acessibilidade, propriedade, seleção e uso da informação em ambientes tecnologicamente determinados. Uma questão ecológica fundamental está relacionada à preservação e à promoção do valor de uso da informação para a humanidade como um todo, e de suas propriedades não-comerciais, em oposição ao seu valor de troca. Inclui-se aqui a questão da diversidade cultural e da qualidade de vida num ambiente crescentemente baseado em informação digitalizada. Forças econômicas e intervenções políticas ameaçam o equilíbrio do ecossistema da infosfera. Em ambos os casos, o pluralismo e variedade de expressões culturais oferecidas pelas tecnologias de informação e comunicação estarão sendo desperdiçados. A Ecologia Digital busca preservar e promover a diversidade cultural e a qualidade de vida no ecossistema informacional”.
A diversidade é um fator importante. Trata-se, aqui, da defesa de abordagens transversais em que são consideradas interseccionalidades e pontos de vista múltiplos, compondo um ecossistema ricamente variado.
Resgatar ideias e debates apresentados em um texto de 2002 para tratar de perspectivas futuras pode soar estranho, mas o contexto e a história são fundamentais para pensar e imaginar caminhos a seguir. Quando o assunto é tecnologia, não basta seguir e ansiar por inovações sem pensar nas necessidades, consequências e sustentabilidade, incluindo a sustentabilidade ambiental. É preciso considerar inclusive qual o impacto ambiental de novas tecnologias e mesmo se elas precisam realmente ser desenvolvidas ou não. E isso é particularmente importante em um momento em que estamos debatendo os custos ambientais da inteligência artificial, especialmente o papel da água.
O papel da tecnologia na Economia Solidária Digital significa tanto a possibilidade de reapropriação pelas comunidades quanto às possibilidades de recusa/abolição de tecnologias que servem a outros propósitos que não o bem-estar coletivo. O cuidado é um valor fundamental. Em inglês, a ideia é resumida na expressão Care Before Code, criada pela Disco.Coop, que pode ser mal traduzida como Cuidado Antes de Programar. Para avançar efetivamente com propostas de Economia Solidária Digital, é preciso cuidar da organização do trabalho e das comunidades. É preciso cuidar antes de produzir novas tecnologias e procurar produzir tecnologias de cuidados, de preocupação com o outro. Uma política de cuidados está no centro da agenda da Economia Solidária Digital. Porque, afinal, digital ou não, trata-se de solidariedade e cooperação no fim das contas.
Veja em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/ainda-ha-brechasna-sociedade-digital/
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