Clipping

Como era a vida antes do Plano Real

Freezer como objeto de desejo, preços que dobravam dependendo da loja, dificuldade de planejar. O dia a dia na hiperinflação era repleto de desafios, e a máquina calculadora, uma companheira indispensável.

Por: Bruno Lupion | Crédito Foto: Antonio Scorza/AFP. Povo faz fila do lado de fora de uma agência bancária no Rio de Janeiro em fevereiro de 1991, após governo Collor autorizar a retirada gradual de valores retidos no confisco da poupança; antes do real, filas eram parte da rotina dos brasileiros

Hoje pode parecer estranho, mas antes do reallançado há exatos 30 anos, as famílias e empresas brasileiras adotavam comportamentos criativos para proteger o seu dinheiro da alta constante dos preços.

Rotinas como ir ao supermercado assim que o salário era depositado, ter várias contas de poupança e investir em grandes estoques de produtos – pouco eficientes – eram imprescindíveis diante de uma inflação que chegou a bater em 80% por mês.

Essa época também teve traumas que nunca mais se repetiram, como o tabelamento de preços, a falta crônica de produtos nos supermercados e o confisco de poupanças.

Veja como era o cotidiano de famílias e empresas em boa parte das décadas de 1980 e 1990:

A grande compra do mês

Era um evento familiar. Como o preço dos alimentos subia constantemente, o melhor negócio era ir ao supermercado logo após receber o salário e encher um ou dois carrinhos com todo o necessário para o mês – ou meses – seguintes.

Para os que tinham condições, essa compra abastecia a despensa de produtos alimentícios e de limpeza.

Mulher empurra carrinho de compras enquanto olha produtos de limpeza dispostos em uma gôndola
Compra do mês era evento obrigatório na rotina das famílias (foto de arquivo). Foto: Marie Hippenmeyer/AFP

Um bem muito cobiçado na época era o freezer – melhor ainda se fosse aquele horizontal, usado em estabelecimentos comerciais – para comprar carne em grande quantidade e armazená-la.

Maquininhas etiquetadoras

A remarcação constante dos preços nos supermercados era um desafio em si.

Códigos de barras ainda não estavam difundidos, e o país tinha uma reserva de mercado para a indústria nacional de informática que dificultava que os varejistas digitalizassem seus sistemas.

As etiquetas com os preços eram coladas diretamente nos produtos. Como eles viviam subindo, isso era uma atividade permanente, que demandava um funcionário específico: o remarcador de preços.

“Era uma profissão odiada. O cara vinha com a maquininha na mão e não parava, ia de um setor a outro”, lembra Carlos Eduardo de Oliveira, 67 anos, ex-funcionário do Banespa.

Malabarismos bancários

O brasileiro tem fama de ser criativo diante da adversidade, e isso valia para a relação com contas bancárias e produtos financeiros.

Muitos tinham mais de uma conta de poupança, com datas de aniversário em dias diferentes. Quando era necessário realizar um saque, ele era feito da conta cujo aniversário havia sido mais próximo – minimizando a perda de rentabilidade. O mesmo valia para a variedade de cartões de créditos, também com datas de vencimento distintas.

A inflação alta levou os trabalhadores a pressionarem as empresas a pagarem o salário em mais de uma parcela por mês. Receber quinzenalmente ou semanalmente era um objetivo almejado pelas entidades sindicais, alcançado em alguns casos.

Entre os empregados com maiores salários, alguns optavam também por comprar dólares assim que recebiam, para trocá-los conforme a necessidade.

Fiscais de preço e falta de produtos

O tabelamento de preços foi uma das muitas estratégias para tentar combater a inflação, como ocorreu no Plano Cruzado, de 1986, durante o governo José Sarney.

Itens alimentícios, combustíveis, produtos de limpeza e serviços tiveram os preços congelados, e o presidente pediu aos brasileiros que fiscalizassem os preços nos supermercados e denunciassem remarcações.

Alguns iam ao supermercados com um broche informando ser “fiscal do Sarney”. Em alguns casos, isso rendia bate-boca com os comerciantes e confusões, que acabavam em prisões de empresários e interdições de estabelecimentos.

Não deu certo. Logo começaram a faltar produtos, seja porque os preços congelados não eram adequados para incentivar sua produção ou porque varejistas decidiam tirar itens das prateleiras. Comerciantes passaram a cobrar também um ágio para vender alguns produtos escassos – só tinha acesso quem pagasse o extra.

O congelamento de preços não era o único gatilho para a falta de produtos. A estocagem para longo prazo e o desafio de manter cadeias de fornecimento estáveis também provocavam faltas constantes. Oliveira relata que, em Santos, era comum ver pessoas formando fila no supermercado já às 5h nos dias em que haveria carne disponível. “Muitas vezes a polícia tinha que intervir para organizar”, diz.

Problema parecido ocorria com os combustíveis.  A Petrobras tinha o monopólio do refino e da venda, e o governo exercia controle total sobre os preços. Quando havia o anúncio de aumento de preços, muitos corriam para os postos para encher o tanque, o que criava longas filas de veículos que dobravam quarteirões.

Outro trauma da época é o confisco da poupança. Isso ocorreu em março de 1990, no início do governo Fernando Collor, e atingiu não só as cadernetas de poupança, mas também investimentos e contas correntes.

A medida bloqueou os valores depositados que fossem superiores a 50 mil cruzados novos (equivalentes, hoje, a R$ 13,2 mil corrigidos pelo IPCA), que só poderiam ser sacados dali a 18 meses. A iniciativa drástica provocou problemas agudos para muitas famílias e empresas.

Foto preto e branco mostra homem de costas entre gôndolas de supermercado trocando placas de preço
Em foto de 1993, funcionário de supermercado troca placa de preço em cruzeiro para cruzeiro real. Entre 1986 e 1994, Brasil teve quatro moedas diferentes. Foto: Julio Pereira/AFP

O preço está alto ou baixo?

A remarcação de preços não acontecia de forma homogênea com todos os produtos e por todas as empresas, o que levava a grandes diferenças entre estabelecimentos ou comparações absurdas.

No livro Saga brasileira – a longa luta de um povo por sua moeda, a jornalista Miriam Leitão registra alguns desses exemplos. Na mesma semana, um mesmo aspirador de pó podia custar 899 cruzados novos ou 2.009 cruzados novos, dependendo da loja.

Um leitor de jornal reclamava que havia comprado um metro de elástico em uma loja por 14 cruzados novos, e no dia seguinte havia encontrado o mesmo produto em outro estabelecimento por 1,50 cruzado novo.

O desalinhamento de preços e a inflação alta obrigavam os consumidores a pesquisar muito e fazer contas sempre antes de comprar algo. No livro, Leitão relata que os jornais traziam tabelas para orientar as pessoas nas suas decisões: “Se a loja oferecesse ‘só’ 30% de desconto à vista, era melhor pagar com cartão – que não era considerado à vista –, perder o desconto e aplicar no overnight, que no final do mês já tinha superado 80%” – o overnight era uma aplicação de rentabilidade diária oferecida pelos bancos.

Para lidar com todas essas contas, não poderia faltar uma máquina de calcular. Na maior produtora do item na época, Dismac, as vendas dobraram de 1988 para 1989.

“O telefone também era uma arma para fazer a melhor aquisição. Se fosse o caso, batia-se o martelo e ia lá buscar de imediato”, diz Oliveira.

Compra por consórcio

Como a compra parcelada era inviável pela imprevisibilidade da inflação, popularizou-se a compra por consórcio, em especial para a aquisição de bens como automóveis e apartamentos.

Essa modalidade ainda existe até hoje, com menos alcance. Os interessados se vinculam a um consórcio para comprar, por exemplo, um automóvel, e depositam mensalmente um valor determinado em um fundo comum com rendimento. São feitos então sorteios periódicos no qual as partes podem fazer lances para receber o bem.

Oliveira diz que nas décadas de 1980 e 1990 ocorriam muitos golpes e falências de empresas de consórcio – para prejuízo dos participantes –, o que forçou posteriormente uma regulação mais rigorosa da atividade pelo Banco Central.

Horizonte curto para as empresas

A inflação alta era um transtorno para as decisões empresiarias. Planejar custos e despesas era um desafio com pitadas de adivinhação. Manter o dinheiro investido em aplicações de rentabilidade diária poderia parecer muito mais razoável do que arriscar investi-lo em pesquisa ou ampliação dos negócios.

Ter um grande estoque de produtos era um objetivo comum, já que eles não perderiam valor ao longo do tempo – apesar de isso reduzir a eficiência da operação, pois ter grandes estoques gera custos extras de armazenamento e gestão e imobiliza recursos que poderiam ser usados na ampliação do negócio ou nos esforços de vendas.

As vendas a prazo em muitos casos se mostravam um mau negócio, mesmo com a cobrança de juros e o impulso para desovar mercadorias. Com a inflação galopante, receber dali a trinta dias podia significar perder dinheiro.

Definir os preços era um pesadelo em particular. O empresário Oded Grajew, então dono da indústria de brinquedos Grow, citado por Leitão, disse que seu maior desafio era fazer e atualizar a lista de preços, sob o risco de fazer produtos encalharem ou levar a empresa ao vermelho.

Na era pré-internet, os catálogos impressos eram uma forma eficaz de chegar a um grande número de potenciais consumidores. Mas divulgar o preço de um produto em um papel impresso era também um perigo, mesmo que indicasse um prazo da promoção. Grandes varejistas desistiram do catálogo nos momentos mais agudos da inflação, apesar do potencial de venda.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/como-era-a-vida-antes-do-plano-real/a-69512388

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