Aposta do presidente centrista Macron de convocar eleições antecipadas arrisca ser desastrosa para seu grupo político. Pesquisas indicam que ultradireita de Marine Le Pen nunca esteve tão perto do poder.
Por: Jean-Philip Struck | Crédito Foto: Stephane Lemouton/Bestimage/IMAGO. Emmanuel Macron chocou até mesmo aliados ao dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições antecipada
O presidente da França, o centrista Emmanuel Macron, surpreendeu o país na primeira quinzena de junho ao convocar uma eleição legislativa antecipada, na esteira da derrota do seu grupo político para a ultradireita na votação ao Parlamento Europeu.
Ao anunciar a convocação das novas eleições, Macron disse que “a França precisa de uma maioria clara”. Seu cálculo era usar o timing da derrota na eleição europeia para sacudir o eleitorado e posicionar sua figura como a única alternativa viável contra a ultradireita liderada por Marine Le Pen. De quebra, o plano ainda passava por tentar recuperar a maioria centrista na Assembleia Nacional (câmara baixa do Congresso francês), que Macron havia perdido em 2022.
Passadas três semanas, os eleitores finalmente vão às urnas neste domingo (30/06), no primeiro turno da eleição antecipada.
As sondagens indicam que a estratégia do presidente caminha para o desastre. Na melhor das hipóteses para Macron, a França deve passar a ter uma Assembleia ainda mais travada.
Já a ala de Le Pen, longe de ser enfraquecida pela eleição-relâmpago de Macron, está na rota de formar a maior bancada da Assembleia. Na pior das hipóteses para Macron, a ultradireita pode ainda conquistar maioria absoluta e passar a dominar o governo.
Caso essa última hipótese se confirme, boa parte da máquina administrativa da segunda maior economia da Europa passaria a ser controlada por um partido historicamente eurocético, anti-imigração e sem experiência de governo, provocando reverberações em toda a União Europeia.
O que Macron esperava ao convocar eleições antecipadas?
No sistema semipresidencialista da França, o presidente e os membros do governo são eleitos separadamente. Um presidente depende de um primeiro-ministro indicado pelo Parlamento para assegurar a governabilidade.
Macron foi reeleito para a presidência em abril de 2022, mas acabou perdendo sua maioria parlamentar no pleito legislativo de junho do mesmo ano. Sem maioria, mas ainda mantendo a maior bancada, Macron ainda teve capacidade de assegurar a indicação de um primeiro-ministro, atualmente Gabriel Attal, mas seu poder na Assembleia declinou consideravelmente.
Desde então, Macron tem enfrentado dificuldades para aprovar leis e projetos na Assembleia Nacional, tendo que recorrer a mecanismos controversos no meio político francês, como decretos e ordens executivas, para superar a falta de uma maioria.
A edição de tais decretos, no entanto, também abriu a porta para que deputados da Assembleia Nacional apresentassem moções para submeter o governo a um voto de confiança. No caso de uma derrota, o presidente seria obrigado a dissolver o governo e convocar novas eleições. Até agora Macron vinha sobrevivendo a tais moções, embora sua vantagem nas votações viesse diminuindo.
Com pouco menos de três anos de mandato presidencial pela frente, o prazo para que o presidente tentasse romper esse impasse vinha ficando cada vez mais estreito.
Ele também parece ter se baseado em exemplos históricos da política francesa. Em 1968, o então presidente Charles de Gaulle, acossado por uma revolta de estudantes universitários e greves, convocou uma eleição legislativa antecipada. À época, o que parecia uma aposta particularmente arriscada acabou se revelando um triunfo: De Gaulle conseguiu assegurar uma super maioria parlamentar com uma campanha de mensagem simples, baseada num discurso de lei e ordem. No entanto, pesquisas sugerem que Macron deve passar longe desse cenário.
Como funciona a eleição?
Para formar a composição da Assembleia Nacional, o complexo sistema eleitoral francês prevê 577 disputas locais em dois turnos. Para obter a maioria absoluta e poder liderar um governo estável, um partido precisa de 289 cadeiras. Antes da dissolução, a aliança de Macron tinha apenas 250.
Nestas 577 disputas, um candidato que obtiver a maioria absoluta dos votos no primeiro turno, com uma taxa de participação de 25%, assegura a vitória. Mas a maior parte das disputas costuma ter um segundo turno – neste caso, previsto para 7 de julho. Passam para o segundo turno os candidatos que obtiveram mais de 12,5% dos votos.
Muitas disputas envolvem apenas dois candidatos, mas o sistema abre possibilidade para que o segundo turno envolva três ou até quatro. Nesta fase, não é incomum alguns candidatos formarem alianças e desistirem da corrida para abrir espaço para outro candidato – no passado, essa tática foi amplamente usada pelos partidos tradicionais para frear a ascensão de candidatos da ultradireita. No segundo turno é eleito o que obtiver a maior quantidade de votos.
Por causa do sistema fragmentado de disputas, as pesquisas apontam apenas tendências do eleitorado, e o resultado final da formação da Assembleia costuma ser difícil de prever.
Declínio do “macronismo”
Em 2017, o ambicioso Macron tomou o mundo político de assalto com o recém-fundado movimento centrista Em Marcha. Ao vencer a eleição presidencial daquele ano, Macron rompeu a tradicional alternância entre sociais-democratas e direita conservadora que havia caracterizado a presidência francesa por mais de cinco décadas. A entrada do novato Macron no jogo eleitoral dizimou siglas tradicionais como o Partido Socialista e os Republicanos, que nunca recuperaram seu antigo espaço. Além de vencer a presidência, Macron ainda garantiu uma super maioria eleitoral na Assembleia.
Com o tempo, porém, a imposição de medidas impopulares – como a reforma da Previdência –, o aumento do custo de vida e o próprio estilo pessoal de Macron – considerado arrogante por muitos franceses – acabaram contribuindo para o declínio do “macronismo”.
Com os antigos partidos tradicionais dizimados, o espaço de oposição também foi ocupado em larga medida pela ultradireita de Le Pen e pelo movimento de esquerda liderado por Jean-Luc Mélenchon. Em 2022, quando disputou a reeleição presidencial, Macron ainda demonstrou vigor ao derrotar decisivamente Le Pen, conseguindo os votos de eleitores de vários espectros políticos, mas por uma margem menor do que em 2017. O declínio do seu movimento ficou aparente menos de dois meses depois, quando sua coligação centrista perdeu a maioria na Assembleia.
Ao convocar uma eleição-relâmpago, Macron esperava voltar a atrair os eleitores franceses que se opõem à ultradireita de Le Pen, como ocorrera nas presidenciais de 2017 e 2022. No entanto, o sucesso anterior da tática não está se repetindo em nível legislativo, segundo as pesquisas, onde a coligação do presidente, chamada Juntos, tem amargado o terceiro lugar. Oficialmente o bloco de Macron é liderado na eleição pelo primeiro-ministro Gabriel Attal.
Nas últimas semanas, Macron tem endurecido o discurso, apelando para que os franceses rejeitem “extremos” e até mesmo afirmando que a França corre o risco de “guerra civil”. A julgar pelas sondagens, a tática de Macron não parece estar surtindo efeito: sua aliança conta com apenas 20% das intenções de voto.
Ultradireita às portas do poder
Por décadas uma força marginal na política francesa do pós-guerra, a ultradireita nunca esteve tão perto de conquistar o poder – ou pelo menos parte dele – desde a fundação da Quinta República francesa, em 1958. Liderado na prática pela veterana Marine Le Pen, o partido Reunião Nacional (RN) aparece com mais de 35% das intenções de voto na maioria das pesquisas.
As eleições legislativas costumavam ser um desafio para a RN. As disputas fragmentadas que favoreciam alianças entre candidatos de partidos tradicionais por décadas serviram para frear a ascensão de deputados de ultradireita. Em 2017, por exemplo, Le Pen conseguiu 33,9% dos votos na eleição presidencial, mas seu grupo elegeu apenas oito dos 577 deputados da Assembleia no mesmo ano. Em 2022, no entanto, com o declínio do “macronismo”, o grupo de Le Pen saltou para 89 deputados. Agora, pesquisas indicam que a RN pode conquistar mais de 200 assentos.
Oficialmente, a campanha da RN é liderada pelo jovem Jordan Bardella, de 28 anos, presidente nominal da sigla, mas na prática um protegido de Le Pen.
Para Le Pen, a eleição deve marcar um passo decisivo de sua estratégia de “normalização”, iniciada nos anos 2010, que deixou em segundo plano aspectos mais explícitos de sua agenda de extrema direita e concentrou o foco em temas sociais – em alguns casos se apropriando de pautas de esquerda. Mas críticos observam que as mudanças são apenas cosméticas, e que o velho extremismo xenófobo e anti-UE permanece o mesmo.
Conservadores rompem histórico “cordão sanitário”
Por décadas, a França contou com a união de forças políticas moderadas para isolar a extrema direita. Um dos exemplos mais conhecidos ocorreu em 2002, quando diferentes partidos se uniram em torno da candidatura do presidente conservador Jacques Chirac contra Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine. Tal tática ficou conhecida como “cordão sanitário”.
Agora, mais de duas décadas depois, foi justamente o antigo partido repaginado de Chirac, Os Republicanos (LR), que acabou rompendo o cordão. Pouco depois da convocação da eleição, o presidente da legenda, Éric Ciotti, anunciou que era favorável a uma aliança com a RN.
O anúncio rachou o partido e levou alguns dirigentes do LR a votarem pela expulsão de Ciotti. O presidente da legenda, no entanto, rechaçou a decisão e se barricou no seu escritório. Posteriormente, a Justiça decidiu a seu favor e ele se manteve no cargo.
Hoje, o LR é apenas uma sombra pálida dos tempos de Chirac. Na última legislatura (2022-2024), sua bancada mal chegou a um sexto da conquistada em 2002.
Esquerda deixa momentaneamente diferenças de lado
Ao convocar o pleito, Macron também esperava que as divisões na esquerda que se acentuaram no último ano jogassem a seu favor, levando partidos desse campo a apoiá-lo contra a ultradireita. Em 2022, diferentes partidos de esquerda, entre eles o populista de esquerda A França Insubmissa (LFI), liderado por Jean-Luc Mélenchon, o tradicional Partido Socialista (PS), o Partido Comunista e Os Verdes se uniram numa aliança conhecida pela sigla Nupes.
A Nupes chegou a eleger 127 deputados, a segunda maior bancada, mas logo rachou por divisões internas, que se acentuaram em 2023, quando o PS suspendeu sua participação devido à recusa da liderança do LFI de classificar o grupo palestino Hamas como organização terrorista.
Para irritação de Macron, no entanto, os partidos da finada Nupes anunciaram rapidamente neste junho que haviam deixado por enquanto suas diferenças de lado para disputar o novo pleito em conjunto, desta vez sob o nome Nova Frente Popular (NFP).
Macron reagiu negativamente, chamando o LFI de legenda “antissemita” e ainda acusou os deputados do partido de promoverem “desordem” na Assembleia Nacional.
Segundo pesquisas, a NFP aparece com até 28% da preferência do eleitorado. Mas divisões no casamento de conveniência ainda transparecem. Em contaste com outras coligações, ela ainda não indicou quem é seu candidato ao cargo de primeiro-ministro. Dirigentes do PS têm afirmando que, em caso de uma vitória da NFP, Mélenchon não será o primeiro-ministro, numa tentativa de atrair mais eleitores moderados.
Desfechos possíveis
O resultado da eleição não afeta diretamente a permanência de Macron na Presidência. Seu mandato vai até 2027 e ele não pode mais concorrer à reeleição.
Mas a eleição legislativa apresenta múltiplos cenários para o que esperar da França nos próximos três anos. Certo está que um resultado desfavorável para Macron deve sepultar a agenda política do presidente.
No momento, as pesquisas apontam para uma Assembleia Nacional ainda mais fragmentada, com nenhum bloco contando com maioria. Neste caso, o Legislativo francês arrisca ficar travado por pelo menos um ano – prazo mínimo para a convocação de uma nova eleição.
Mas, caso o RN, que hoje lidera as pesquisas, conquiste maioria absoluta, ele assegurará a indicação do próximo primeiro-ministro e gabinete. Esse cenário, quando o presidente e primeiro-ministro são de grupos políticos rivais, é denominado na França de “coabitação”. Isso já aconteceu três vezes (1986-1988, 1993-1995, e 1997-2002), mas em casos que envolveram partidos tradicionais, nunca com uma legenda radical como a RN.
No momento, a liderança da RN afirma que só aceitará formar o governo se contar com maioria absoluta, rechaçando a possibilidade de liderar um gabinete de minoria, como no caso do atual premiê macronista Attal. A legenda ultradireitista não esconde que seu principal objetivo é a conquista da presidência em 2027.
Neste caso, a Constituição francesa é pouco clara sobre o que deve ser feito. Macron poderá então manter um enfraquecido Attal como premiê provisório ou se ver obrigado a procurar um primeiro-ministro na esquerda ou de algum grupo completamente diferente, sem o endosso da maioria do eleitorado. Num cenário desses, a RN poderá usar sua bancada reforçada para paralisar qualquer administração rival.
Qualquer que seja o cenário, o mundo político francês não deverá ser mais o mesmo. Na semana anterior ao pleito, o ex-presidente socialista François Hollande – que nos anos 2010 foi responsável pela entrada de Macron na política partidária – deu uma sentença definitiva: “O macronismo acabou. Se é que alguma vez existiu, mas acabou […]. O que ele conseguiu representar, a certa altura, acabou.”
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