País enfrenta crise econômica e disputa política entre Arce e Morales que vem paralisando governo. Motim, porém, pareceu carecer de apoio significativo, até mesmo adversários de Arce saíram em defesa da democracia.
Por: Thomas Kohlmann | Crédito Foto: JORGE BERNAL/AFP/Getty Images. Insurgência de parte dos militares foi contida pela polícia
A calmaria voltou à capital da Bolívia nesta quinta-feira (27/06) depois que tropas lideradas por um general de alto escalão bloquearam a praça principal de La Paz, onde fica a sede do governo, e pareciam ter se voltado contra o presidente Luis Arce.
A insurgência de um grupo de militares durou cerca de quatro horas e foi condenada tanto pelo governo quanto pela oposição, além de diversos líderes da América Latina e de todo o mundo. Parte dos soldados permaneceu leal ao presidente e a rebelião foi contida. O fato desencadeou a troca do comando das forças armadas e, em seguida, os militares se retiraram das ruas. O novo chefe do Exército, José Wilson Sánchez Velásquez, apareceu na TV ordenando que os militares voltassem aos quartéis.
Por trás da tentativa de tomada do poder está o ex-comandante do Exército boliviano Juan José Zuñiga, deposto do cargo na véspera da insurgência. Mas as circunstâncias do que realmente ocorreu ainda não estão claras e evidenciam o racha entre o atual presidente Arce e seu padrinho político, o ex-presidente Evo Morales, ambos do Movimento ao Socialismo (MAS).
A revolta foi o ápice de tensões que vem fermentando na Bolívia há meses, que enfrenta uma grave crise econômica e uma batalha entre dois titãs políticos pelo controle da legenda que governa o país. O motim, no entanto, pareceu carecer de apoio significativo, até mesmo adversários de Arce rapidamente repudiaram o levante e saíram em defesa da democracia.
O que parece ter desencadeado o motim
A revolta foi liderada pelo general Juan José Zúñiga, que foi removido do comando do Exército depois de proferir várias ameaças a Morales, a quem acusava de ingerência nas decisões de Arce.
Antes da tentativa de invasão do Palácio Quemado, Zúñiga dirigiu-se a repórteres e citou a raiva crescente no país, que vem enfrentando uma crise econômica com o esgotamento das reservas do Banco Central e a pressão sobre a moeda boliviana, uma vez que as exportações de gás diminuíram.
“Os três chefes das Forças Armadas vieram expressar nossa consternação. Haverá um novo gabinete de ministros, certamente as coisas mudarão, mas nosso país não pode mais continuar assim”, disse Zuñiga a uma emissora de TV local. Ele não declarou explicitamente ser o líder do levante, mas afirmou que o Exército estava tentando “restaurar a democracia e libertar os presos políticos”.
Arce ordenou que Zúñiga desmobilizasse suas tropas, dizendo que não permitiria insubordinação. Ele demitiu os três chefes das Forças Armadas e nomeou seus substitutos. Zúñiga foi preso e responderá na Justiça por tentativa de golpe de Estado. Ele foi capturado após sair da sede do Estado-maior do Exército.
O que está por trás das tensões recentes
Os bolivianos têm sofrido cada vez mais com um crescimento lento, inflação em alta e escassez de dólares – uma mudança radical em relação à década anterior que alguns chamaram de “milagre econômico”.
Na década de 2010, a economia do país crescia mais de 4% ao ano, até despencar no abismo com a pandemia de covid-19. Mas os problemas começaram antes disso, já em 2014, quando os preços das commodities caíram e o governo recorreu às reservas monetárias para sustentar os gastos e, depois, às reservas de ouro, além de vender títulos em dólares localmente.
Arce foi ministro das Finanças durante quase toda a década de forte crescimento, sob o governo de Morales. Ao assumir a presidência em 2020, ele se deparou com um cenário econômico desolador devido à pandemia. A redução na produção de gás selou o fim do modelo econômico de sucesso da Bolívia.
Lutando para importar combustível, filas de carros se formam em postos de gasolina com bombas vazias. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê um crescimento de 1,6% para Bolívia neste ano. Tirando a queda durante a pandemia, esse deve ser o menor crescimento registrado no país em 25 anos.
A rixa entre Arce e Morales
Em meio a esse cenário crítico, Arce e seu antigo aliado Morales entraram em um confronto político que paralisou os esforços do governo para lidar com a crise econômica. Aliados do ex-presidente no Congresso, por exemplo, frustraram as tentativas de Arce de fazer um empréstimo para aliviar a economia.
Em 2019, Morales concorreu a um terceiro mandato inconstitucional. Ele venceu, em uma votação contestada, repleta de alegações de fraude e vista com ceticismo pela comunidade internacional. Isso desencadeou protestos em massa que causaram 36 mortes e levaram Morales à renúncia e fuga do país. Um governo interino da oposição de direita assumiu o poder, liderado por Jeanine Áñez, em um movimento que o MAS chamou de golpe.
Arce, o sucessor escolhido por Morales, venceu as eleições em 2020, prometendo restaurar a prosperidade da Bolívia, que já foi a principal fonte de gás natural da América Latina. Morales retornou então ao país após exílio no México e na Argentina.
Nos anos seguintes, porém, a relação entre os dois se distanciou, piorando a partir de 2023, quando Morales externou, mais uma vez, a intenção de tentar um terceiro mandato inconstitucional. O ex-presidente ainda conta com um apoio considerável dos agricultores de coca e dos trabalhadores sindicalizados.
A rixa entre os dois criou uma grande ruptura no MAS e uma incerteza política mais ampla. Arce defende que intenção de Evo de concorrer é ilegal – visto que a Constituição de 2009, promulgada no governo do próprio Morales, proíbe um terceiro mandato. Já Morales acusa Arce de não ser leal a ele, seu padrinho político.
A rusga se estendeu ao Congresso, com Morales pedindo que seus aliados do MAS bloqueassem projetos de Arce, que passou a acusar o ex-presidente de promover um boicote político e econômico. Analistas alertam que uma eventual agitação social diante dessa situação pode ser explosiva.
“Faltam ao Arce o carisma, as habilidades políticas e o legado de Morales. As próximas eleições seriam uma válvula de escape, mas com a candidatura de Morales no ar, a oposição dividida e a economia em desordem, a Bolívia está apreensiva”, avalia o diretor do programa de América Latina do Wilson Center, Benjamin Gedan.
Apesar das diferenças, ambos os líderes foram rápidos em denunciar na quarta-feira o que chamaram de tentativa de golpe. O mesmo fez Áñez, que defendeu que Morales e Arce devem ser eliminados do poder por meio das eleições presidenciais de 2025.
A insurgência desta quarta, porém, é apenas mais um capítulo na série de tentativas de golpe e revoluções da Bolívia desde a sua independência em 1825: desde então foram mais de 190, num ciclo repetitivo de conflitos entre as elites políticas urbanas e os mais pobres mobilizados pelo setor rural.
“Autogolpe” armado por Arce
Após ser detido, Zuñiga acusou Arce de ter ordenado a operação militar. “No domingo, na escola La Salle, me encontrei com o presidente e ele me disse que a situação está muito complicada, que esta semana seria crítica e que ‘algo é necessário para aumentar a minha popularidade'”, alegou.
O ex-comandante também afirmou ter perguntado a Arce se deveria “tirar os veículos blindados” dos quartéis e que o presidente teria respondido: “Tire”.
A fala de Zuñiga passou a ser endossada por apoiadores de Morales. Entre eles, cresce a hipótese de que Arce teria realizado um “autogolpe de Estado” para aumentar sua popularidade.
Por ouro lado, o ministro da Justiça, Ivan Lima, negou, na rede social X (antigo Twitter), as alegações, dizendo que Zuñiga estava mentindo para tentar justificar o golpe. Lima acrescentou que o Ministério Público irá pedir a pena máxima de 20 anos de prisão para Zúñiga, “por ter atacado a democracia e a Constituição”.
Apesar das acusações de seus apoiadores de um “autogolpe” de Arce, enquanto a insurgência transcorria, Morales instou seus aliados a saírem às ruas e bloquearem estradas para se oporem à suposta tentativa de golpe. Ele também atribuiu o incidente a Zúñiga. “Não permitiremos que as forças armadas violem a democracia e intimidem o povo”, afirmou.
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