Dez anos após o início da operação, instituições de controle brasileiras discutem como aprimorar o combate à corrupção sem violar a legalidade no processo, avalia pesquisador da FGV.
Por: Bruno Lupion | Crédito Foto: Miguel Schincariol/AFP. Corrupção virou tema frequente de eventos de rua no Brasil nos anos seguintes à Lava Jato, como neste bloco de Carnaval em São Paulo em 2016
Uma década depois que a Operação Lava Jato foi deflagrada, o país assiste a uma sequência de revisões de processos originados em Curitiba e de questionamentos sobre o legado da força-tarefa – marcada por grandes revelações de corrupção, mas também por violações de regras por parte de promotores e juízes.
Para Marco Antônio Carvalho Teixeira, especialista em controle da administração pública e professor e pesquisador do departamento de Gestão Pública da FGV EAESP, essa natureza dual da Lava Jato se insere em um processo histórico de aprimoramentos das instituições brasileiras responsáveis por identificar e punir desvios de verbas públicas.
“A Lava Jato tem essas duas faces – ninguém em sã consciência pode dizer que ela produziu uma peça de ficção, mas sabemos que seus condutores têm muito o que responder sobre seus métodos”, afirma, lembrando que a força-tarefa foi fruto do fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público em reação a escândalos anteriores.
Mas o fato de promotores e juízes, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), terem “rompido a linha da legalidade” e, alguns deles, entrado na política, cobra agora seu preço. Como a reabertura da discussão sobre o valor de multas que as empreiteiras que assinaram acordos de leniência devem pagar, em parte estimuladas por decisões judiciais recentes do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. Algo que “fragiliza” outras operações anticorrupção que possam ter se inspirado na Lava Jato.
Teixeira avalia ainda que levará “certo tempo” para o país fazer um “balanço mais seguro” sobre o conjunto dos atores envolvidos e os resultados da operação iniciada em Curitiba há uma década.
Indagado sobre os desafios presentes do combate à corrupção, ele vê com preocupação o avanço do poder do Congresso na definição da destinação do Orçamento por meio das emendas parlamentares. Isso reduz a margem de manobra do Executivo para escolher onde gastar as verbas e fortalece a capacidade de deputados e senadores favorecerem suas respectivas bases eleitorais.
Em entrevista à DW, Teixeira afirma que essa forma de gasto público exige mais dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria Geral da União (CGU), para verificar como o dinheiro foi alocado. “Normalmente nessas emendas você sabe quanto sai, mas saber como chegou e como foi executado no município é um outro passo, muito grande.”
DW: Qual é o estado atual das políticas anticorrupção no Brasil, à luz dos dez anos da Lava Jato?
Marco Antônio Carvalho Teixeira: É bom olharmos isso numa linha do tempo. No processo de redemocratização, tivemos dois grandes escândalos, Anões do Orçamento e o do [ex-presidente Fernando] Collor, que decorreram mais de denúncias do que de preparo dos órgãos de investigação, monitoramento e controle. O país foi aprendendo e, quando tivemos um escândalo parecido, o da Máfia das Sanguessugas, ele já não foi produto de denúncias, mas da capacidade de monitoramento da alocação de emendas desenvolvida pela CGU. A cada escândalo, os órgãos de controle aperfeiçoam seus mecanismos.
Vejo a Lava Jato como produto desse desenvolvimento, com Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário. O seu saldo por um lado é positivo, ao mostrar o problema de uso inadvertido do dinheiro público para financiar campanha eleitoral e enriquecer pessoas com grande capacidade de tomada de decisão na administração pública. Por outro lado, o saldo negativo foi juízes e promotores, segundo o Supremo Tribunal Federal, terem rompido a linha da legalidade, algo que não pode acontecer e que vimos sobretudo quando o Supremo suspendeu o processo do Lula. A Lava Jato tem essas duas faces – ninguém em sã consciência pode dizer que ela produziu uma peça de ficção, mas sabemos que seus condutores têm muito o que responder sobre seus métodos.
A evolução da capacidade dos órgãos de controle chegou ao nível municipal?
Órgãos como o Tribunal de Contas da União, a Controladoria Geral da União e muitos órgãos de controladoria de Estados e até de municípios como São Paulo estão muito capacitados tecnologicamente e profissionalmente pra monitorar o cotidiano da administração e, se for o caso, enfrentar escândalos de corrupção.
Mas os municípios no Brasil são muito diferentes um dos outros. Controladorias no estilo da CGU, que abrangem não apenas o monitoramento cotidiano da política pública, mas também de políticas de transparência, ouvidoria, faz a gestão da LAI [Lei de Acesso à Informação], você encontra basicamente em grandes capitais, e São Paulo e Belo Horizonte são boas referências. Mas a construção de uma controladoria adequada depende muito da vontade política do prefeito.
O Congresso vem ganhando mais poder sobre a destinação do Orçamento por meio de emendas parlamentares. Isso afeta o controle da corrupção?
Demanda mais dos órgãos de controle, o TCU e a CGU têm que ficar mais atentos à alocação de emendas na ponta. Normalmente nessas emendas você sabe quanto sai, mas saber como chegou e como foi executado no município é um outro passo, muito grande.
Sou temerário com esse avanço do Congresso sobre o Orçamento. Isso tem duas consequências. Não apenas diminui a autonomia do governo para elaborar e executar políticas públicas e decidir se aquela alocação é estratégica, mas cria dificuldades para verificar se o recurso está sendo bem alocado e quais são os interesses envolvidos.
A organização Transparência Internacional divulga anualmente seu Índice de Percepção da Corrupção, e o de 2023 trouxe uma queda de dez posições do Brasil no ranking. O governo reagiu e disse que havia falhas metodológicas no estudo. Como o senhor avalia esse ranking e o resultado de que a percepção da percepção piorou no Brasil?
Esse ranking é controverso no mundo todo, não só no Brasil. Uma das críticas é que ele traz muito da percepção empresarial. E a crítica não é só do governo, mas de parte da academia e de outras organizações que também lidam com isso. Assim como em relação às estimativas de quanto se perde com corrupção, porque você só sabe o que perde quando você identifica, e você não sabe se aumentou a corrupção ou se a publicização tornou ela mais visível.
Há sete empresas que foram alvo da Lava Jato que agora tentam renegociar com o governo o valor das multas dos acordos de leniência que assinaram, no valor total de R$ 8,2 bilhões. A reabertura desse debate impacta a efetividade das políticas anticorrupção?
Estamos vendo quase que uma revisão da Lava Jato, e nesse processo todos os atores que se sentiram prejudicados de alguma maneira estão buscando tentar reverter eventuais prejuízos. Não estou dizendo que eles foram injustiçados ou não, mas que, ao abrir uma lacuna, ou quando [ministro Dias] Toffoli toma a decisão de suspender a multa, os demais se movimentam na mesma direção. Essa instabilidade fragiliza, mas é produto de um processo que, do ponto de vista legal, acabou sendo questionado. Uma das implicações é fragilizar um conjunto de trabalhos [de investigação e judiciais] que, de certa forma, são semelhantes à Lava Jato.
O Ministério Público fez um balanço crítico sobre a sua atuação na Lava Jato e evoluiu a sua forma de combater a corrupção?
É curioso porque o Ministério Público é uma instituição, mas parece que cada promotor é o Ministério Público. Os anos do procurador-geral da República [Augusto] Aras foram mais de questionar a Lava Jato e o próprio trabalho do órgão do que de defender a atuação dos promotores. Dentro do Ministério Público há visões não consensuais, e não por acaso o [Deltan] Dallagnol sofreu sindicância dentro do próprio órgão, e o TCU aplicou uma multa milionária a ele, que depois acabou sendo judicializada. Não dá para falar que o Ministério Público fez um balanço, talvez segmentos do Ministério Público fizeram, mas isso já vinha ocorrendo durante o próprio processo da Lava Jato.
Do lado da Justiça, o [Sergio] Moro também foi questionado e criticado, inclusive por outros órgãos do Judiciário. E essa fragilização também se dá no momento em que eles vão para a arena eleitoral. Mas, no conjunto dos atores que tocaram esse processo e qual foi o seu resultado, teremos que esperar ainda um certo tempo para um balanço mais seguro.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/duas-faces-da-lava-jato-motivam-sua-atual-revis%C3%A3o/a-68549139
Comente aqui