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Julian Assange está livre, mas a justiça não foi feita

Após quase 15 anos de perseguição, o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, está livre. É uma vitória que vale a pena celebrar. Mas a mensagem foi enviada: quando se trata de expor as transgressões de governos e corporações poderosas, nenhum bom feitor saí impune.

Por: Chip Gibbons | Tradução: Sofia Schurig | Crédito Foto: (Chung Sung-Jun / Getty Images). O fundador do WikiLeaks, Julian Assange, deixou o tribunal dos EUA no dia 26 de junho de 2024 em Saipan, Ilhas Marianas do Norte.

Em 24 de junho de 2024, Julian Assange deixou a Prisão de Belmarsh em Londres e embarcou em um avião para Saipan, Ilhas Marianas do Norte. Ao chegar no território dos EUA no dia seguinte, o jornalista foi levado a um tribunal federal. Dentro do tribunal, Assange se declarou culpado por conspiração por violar o Ato de Espionagem.

Quando perguntado para explicar seu crime, Assange disse ao juiz: “Trabalhando como jornalista, eu encorajei minha fonte a fornecer informações que supostamente eram classificadas para publicar essas informações. Eu acredito que a Primeira Emenda protegia essa atividade. Eu acredito que a Primeira Emenda e o Ato de Espionagem estão em contradição um com o outro, mas eu aceito que seria difícil vencer tal caso dadas todas essas circunstâncias.”

Como parte do acordo de confissão, Assange foi sentenciado ao tempo já cumprido. Durante a sentença, a Juíza Chefe do Distrito dos EUA, Ramona V. Manglona, disse: “O governo indicou que não há vítima pessoal aqui. Isso me diz que a disseminação dessas informações não resultou em nenhum dano físico conhecido.” Após libertar o jornalista, a juíza observou que a semana seguinte seria o aniversário de Assange, dizendo: “Aparentemente, é um feliz aniversário antecipado para você.”

Assange entrou no tribunal como um dos prisioneiros políticos mais visíveis do mundo. Ele saiu como um homem livre pela primeira vez em mais de uma década.

Não há dúvidas que Assange estar livre é motivo de celebração. Assange é um jornalista que expôs crimes de guerra dos EUA. Como resultado desse trabalho, ele sofreu uma perseguição feroz e implacável pelas mãos do governo dos EUA. No entanto, a liberdade de Assange foi obtida em uma vitória agridoce. Até o último momento, o governo dos EUA se recusou a abandonar sua alegação de que o jornalismo básico pode constituir uma violação do Ato de Espionagem. Um acordo de confissão não estabelece um precedente legal, mas o alto preço pago por Assange certamente terá um efeito intimidador sobre o jornalismo.

Verdade contra a guerra

Oapelo de Assange em um tribunal de Saipan – ele se recusou a viajar para os EUA continental – foi a última surpresa em uma saga prolongada repleta de reviravoltas. Em 2006, Assange ajudou a fundar o WikiLeaks. O inovador veículo de notícias ofereceu uma plataforma para denunciantes entregarem documentos de fontes primárias anonimamente à mídia. Hoje, a tecnologia por trás do WikiLeaks é comum nas redações ao redor do mundo, mas na época era revolucionária.

Não surpreendentemente, o WikiLeaks rapidamente ganhou inimigos entre os governos e corporações cujos segredos estava expondo. Mas as coisas escalaram dramaticamente depois que a denunciante Chelsea Manning entregou um enorme conjunto de segredos do governo dos EUA ao WikiLeaks. Manning era uma soldada do Exército dos EUA que ficou perturbada com a violência perpetrada como parte das guerras no Oriente Médio dos Estados Unidos. Acreditando que o público tinha o direito de saber e que a verdade sobre as guerras provocaria um debate público significativo, Manning entregou arquivos secretos detalhando criminalidade estatal e abusos de poder ao WikiLeaks.

De 2010 a 2011, o WikiLeaks trabalhou com uma série de parceiros jornalísticos ao redor do mundo, incluindo alguns dos principais veículos de imprensa do mundo, para publicar reportagens inovadoras baseadas nas revelações de Manning. Os parceiros de Assange na mídia tradicional precisavam do WikiLeaks para publicar essas histórias, mas rapidamente se voltaram contra Assange. Grande parte do entusiasmo em relação ao WikiLeaks derivava dos fracassos completos da mídia tradicional durante a preparação para a Guerra do Iraque, quando muitos jornalistas agiram deliberadamente como estenógrafos de uma administração que mentia claramente para lançar uma guerra de agressão.

O WikiLeaks, por outro lado, claramente via o jornalismo como uma ferramenta para desafiar o poder estabelecido. Assange diria aos ativistas antiguerra: “Se as guerras podem ser iniciadas por mentiras, a paz pode ser iniciada pela verdade.” Sua visão do jornalismo segue a orgulhosa tradição de figuras como I. F. Stone, mas estava em clara oposição a uma indústria midiática que muitas vezes parecia estar mais interessada em se aproximar de figuras das autoridades de segurança nacional do que em desafiá-las.

As traições da mídia foram os menores problemas do WikiLeaks. A decisão de confrontar o império dos EUA e expor seus segredos provocou uma dramática retaliação do governo dos EUA. Manning foi presa, torturada e recebeu uma sentença de prisão sem precedentes. Assange temia ser o próximo e recebeu asilo do Equador. Assange nunca saiu da embaixada equatoriana em Londres. Ele viveu lá por sete anos. Usando diversos pretextos legais – como uma investigação sueca por conduta sexual que não resultou em acusações criminais e uma acusação de quebra de fiança no Reino Unido a pedido da Casa Branca – a polícia britânica cercou a embaixada e prometeu prender Assange caso ele pisasse fora dela.

O Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária condenou essas ações como uma privação arbitrária e ilegal da liberdade de Assange. O relator especial da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes constatou que Assange foi submetido a tortura psicológica. Mais tarde, foi revelado que, após a publicação pelo WikiLeaks de ferramentas secretas de hacking da CIA, a CIA considerou sequestrar e até assassinar Assange. Ainda há perguntas sobre a extensão da vigilância da CIA sobre Assange, seus advogados, seu médico e jornalistas que o visitaram, o que ainda é objeto de um processo nos EUA e de uma investigação criminal espanhola.

A administração de Barack Obama, que havia processado implacavelmente delatores, decidiu que processar um editor como Assange era um passo longe demais. Sua razão não era por simpatia por Assange, mas porque ao processar o editor do WikiLeaks eles estabeleceriam um precedente que poderia ser usado para processar os principais veículos  como o New York Times. A administração de Donald Trump reverteu o curso e trouxe uma série de acusações contra Assange. A polícia de Londres obteve permissão para entrar na embaixada equatoriana e prender o jornalista. Ele então foi mantido na Prisão de Belmarsh, uma prisão de segurança máxima severa, por mais de cinco anos.

Todas as acusações derivam de seu trabalho para publicar as revelações de Manning. Os Estados Unidos estavam criminalizando atos de jornalismo, expondo crimes de guerra e investigando abusos de direitos humanos. Foi uma acusação chocante que gerou a condenação unânime de organizações preocupadas com liberdades civis, liberdade de imprensa e direitos humanos, além dos veículos de notícias que trabalharam com o WikiLeaks.

Uma conspiração para fazer jornalismo

Assange acabaria enfrentando dezoito acusações, que poderiam resultar em uma pena máxima de 175 anos de prisão. Dezessete das acusações foram feitas sob o Ato de Espionagem, com a acusação restante sendo conspiração por violar o Ato de Fraude e Abuso de Computadores.

Três das acusações contra Assange foram acusações puramente de divulgação e sem precedentes. Em outras palavras, o suposto crime era nada mais do que publicar informações no site do WikiLeaks. Além de ser acusado de publicar informações de defesa nacional, Assange também enfrentou quatro acusações sob o Ato de Espionagem por ter recebido as informações inicialmente. Naturalmente, um jornalista não pode publicar informações de uma fonte sem primeiro recebê-las.

Assange também foi acusado de conspirar com Manning para violar os Atos de Espionagem e de Fraude e Abuso de Computadores, dois estatutos sob os quais Manning foi condenado por um tribunal militar. As acusações restantes buscavam impor responsabilidade a Assange pelo “crime” cometido pela delatora Manning ao entregar os documentos a Assange, alegando que Assange havia ajudado e incentivado Manning. Processar um denunciante por fornecer informações à mídia é um atentado à democracia; processar um jornalista pela decisão do denunciante de fornecer-lhe informações é kafkiano.

Os defensores dos esforços do governo dos EUA para aprisionar um de seus críticos mais importantes fixam-se nas alegações de que Assange ajudou Manning. Citam isso como prova de que a acusação não foi apenas por jornalismo. Alega-se especificamente que Manning pediu a Assange ajuda para quebrar uma “senha criptografada” para que ela pudesse encobrir seus rastros ao acessar documentos secretos. Essa alegação permanece não comprovada e amplamente criticada.

Durante uma audiência de extradição em fevereiro, advogados britânicos representando o governo dos EUA gastaram apenas algumas palavras com as senhas criptografadas. Em vez disso, deixaram claro que a maior parte da teoria dos EUA era que ao operar um site que publicaria informações de denunciantes, Assange estava solicitando a outros que cometessem hacking e “roubassem” informações de defesa nacional. As acusações de conspiração, ajuda e incentivo, assim como todas as acusações contra Assange, foram uma tentativa do governo dos EUA de criminalizar o jornalismo.

No final, Assange se declarou culpado de uma única acusação de violação da disposição de conspiração do Ato de Espionagem. A “informação criminal“, a narrativa do governo sobre o crime, não mencionava nada sobre hacking. Em vez disso, alegava que entre 2010 e 2011, Manning e Assange estavam envolvidos em uma conspiração criminosa juntos. Como parte dessa conspiração, eles violaram três disposições do Ato de Espionagem.

Os atos criminosos foram: Manning, que tinha posse legal de informações de defesa nacional, as deu a Assange, que não estava autorizado a recebê-las; Manning, que tinha posse não autorizada de informações de defesa nacional, as deu a Assange, que não estava autorizado a recebê-las; e que Assange recebeu informações de defesa nacional de Manning. Em resumo, um denunciante deu informações sobre abusos de poder a um jornalista e o jornalista as aceitou.

O governo dos EUA chama isso de “conspiração para obter e divulgar informações de defesa nacional”, mas há outra palavra para isso: jornalismo.

Uma arma carregada

Ao aceitar um acordo de confissão, Assange não estabeleceu nenhum precedente legal. Mas ao buscar implacavelmente destruir Assange e insistir que o jornalismo é um crime sob o Ato de Espionagem, o governo dos EUA estabeleceu um preocupante precedente político.

O WikiLeaks não só publicou as revelações de Manning. Por um breve período, fosse uma corporação ou governo, parecia que se tentasse explorar o público e se esconder por trás de um segredo, o WikiLeaks o exporia. É este experimento em transparência radical que o governo dos EUA procurou tão brutalmente extinguir.

O mundo é um lugar melhor por causa das denúncias de Manning e do jornalismo de Assange e do WikiLeaks. E é um lugar pior por causa da decisão do governo dos EUA de intimidar futuros contadores de verdades ao buscar implacavelmente destruir aqueles envolvidos.

Assange está livre. Dado que havia sérias dúvidas se Assange sobreviveria a esse tormento, essa é uma incrível vitória que merece ser celebrada. Mas o Ato de Espionagem continua sendo uma arma carregada a ser usada contra jornalistas, denunciantes e o direito do público de saber. Mesmo ao finalmente deixar Assange ir, o estado de segurança deixou claro que usarão essa arma. Agora é nosso dever desarmá-los de uma vez por todas.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2024/06/julian-assange-esta-livre-mas-a-justica-nao-foi-feita/

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