Se houve um papel para a monarquia britânica foi servir de cortina de fumaça para os crimes inumeráveis do Império. No século XX, Elizabeth assistiu à sua dissolução. Depois dela, tudo parece reduzir-se a inutilidade, aproveitamento e velharia
Por: Chris Hedges
A adulação bajuladora à rainha Elizabeth nos Estados Unidos, que fizeram uma revolução para se livrar da monarquia, e na Grã-Bretanha, está em proporção direta ao medo que domina uma elite governante global desacreditada, incompetente e corrupta.
Os oligarcas globais não têm certeza de que a próxima geração de fantoches reais esteja à altura do trabalho. As mediocridades incluem um príncipe pedófilo e seu irmão, um rei excêntrico e mal-humorado que aceitava malas e bolsas cheias de US$ 3,2 milhões em dinheiro, ofertadas pelo ex-primeiro-ministro do Qatar, e que tem milhões guardados em contas offshore.
A monarquia obscurece os crimes do império britânico e os envolve em nostalgia. Exalta a supremacia branca e a hierarquia racial. Justifica a regra de classe. Ela sustenta um sistema econômico e social que descarta e muitas vezes condena à morte os que são considerados de raças inferiores, a maioria dos quais são pessoas não-brancas. O marido da rainha, o príncipe Phillip, que morreu em 2021, era famoso por fazer comentários racistas e sexistas, educadamente explicados na imprensa britânica como “gafes”. Ele descreveu Pequim, por exemplo, como “horrível” durante uma visita de 1986 e disse a estudantes britânicos: “Se vocês permanecerem aqui muito mais tempo, todos ficarão com os olhos puxados”.
Os gritos das milhões de vítimas do império; os milhares de mortos, torturados, estuprados e presos durante a rebelião Mau Mau no Quênia; os 13 civis irlandeses mortos a tiros no “Domingo Sangrento”; as mais de 4.100 crianças das Primeiras Nações que morreram ou desapareceram nas escolas residenciais do Canadá, instituições patrocinadas pelo governo estabelecidas para “assimilar” crianças indígenas na cultura euro-canadense e as centenas de milhares de mortos na invasão e ocupação do Iraque e Afeganistão — tudo isso é abafado pelos aplausos às procissões reais e pela aura sacra que uma imprensa obsequiosa tece em torno da aristocracia. A cobertura da morte da rainha é tão insípida – a BBC deu destaque, no sábado a uma enquete sobre os tributos reais à rainha feita pelo príncipe Harry e o príncipe William, acompanhados por suas esposas – que a imprensa bem poderia entregar a cobertura dos eventos aos criadores de mitos e publicitários empregados pela família real.
A realeza é oligárquica. Eles são guardiões de sua classe. Entre os maiores proprietários de terras do mundo estão o rei Mohammed VI de Marrocos com 712 mil km², a Santa Igreja Católica Romana com 716 mil km², os herdeiros do rei Abdullah da Arábia Saudita com 2,15 milhões km² e agora o rei Charles III . Os monarcas britânicos possuem quase US$ 28 bilhões. O público britânico fornecerá um subsídio de US$ 33 milhões para a Família Real nos próximos dois anos, embora a média das famílias no Reino Unido tenha visto sua renda cair pelo período mais longo desde que os registros começaram em 1955 e 227 mil famílias vivem sem-teto na Grã-Bretanha.
A realeza, para a classe dominante, vale a despesa. São ferramentas eficazes de subjugação. Os trabalhadores dos correios e os ferroviários britânicos cancelaram greves para reivindicar salários e condições de trabalho após a morte da rainha. A maior federação sindical do Reino Unido (TUC) adiou seu congresso. Membros do Partido Trabalhista fizeram homenagens sinceras. Mesmo o movimento Extinction Rebellion adiou seu planejado “Festival de Resistência”. Clive Myrie, da BBC, descartou a crise energética da Grã-Bretanha – causada pela guerra na Ucrânia – que colocou milhões de pessoas em graves dificuldades financeiras como “insignificante” em comparação com as preocupações com a saúde da rainha. A emergência climática, a pandemia, a loucura mortal da guerra por procuração dos EUA e da OTAN na Ucrânia, a inflação crescente, a ascensão dos movimentos neofascistas e o aprofundamento da desigualdade social foram ignorados enquanto a imprensa vomitava elogios floridos ao domínio de classe. Houve dez dias de luto oficial.
Em 1953, o governo de Sua Majestade enviou três navios de guerra, juntamente com 700 soldados, para sua colônia, a Guiana Britânica, suspendeu a Constituição e derrubou o governo democraticamente eleito de Cheddi Jagan. O Governo de Sua Majestade ajudou a construir e apoiou durante muito tempo o governo do apartheid na África do Sul. O governo de Sua Majestade esmagou com selvageria o movimento de independência Mau Mau no Quênia de 1952 a 1960, levando 1,5 milhão de quenianos para campos de concentração onde muitos foram torturados. Soldados britânicos castraram suspeitos de serem rebeldes ou simpatizantes, muitas vezes com um alicate, e estupraram meninas e mulheres. O governo de Sua Majestade herdou uma riqueza impressionante dos US$ 45 trilhões da Grã-Bretanha saqueados da Índia, riqueza acumulada pelo esmagamento violento de uma série de revoltas, incluindo a Primeira Guerra da Independência em 1857.
O Governo de Sua Majestade levou a cabo uma guerra suja para quebrar a Guerra da Independência cipriota grega de 1955 a 1959 e mais tarde no Iêmen de 1962 a 1969. Tortura, assassinatos extrajudiciais, enforcamentos públicos e execuções em massa pelos britânicos eram rotina. Após um processo prolongado, o governo britânico concordou em pagar quase 20 milhões de libras em danos a mais de 5 mil vítimas de abuso britânico durante a guerra no Quênia e, em 2019, outro pagamento foi feito aos sobreviventes de tortura do conflito em Chipre. O estado britânico tenta obstruir ações judiciais decorrentes de sua história colonial. Seus acordos são uma pequena fração da compensação paga aos proprietários de escravos britânicos em 1835, quando se aboliu – pelo menos formalmente – a escravidão.
Durante seu reinado de 70 anos, a rainha nunca pediu desculpas ou ofereceu reparações.
O objetivo da hierarquia social e da aristocracia é sustentar um sistema de classes que faz com que o resto de nós se sinta inferior. Aqueles que estão no topo da hierarquia social distribuem comendas por serviço leal, incluindo a Ordem do Império Britânico (OBE). A monarquia é a base do governo hereditário e da riqueza herdada. Este sistema de castas filtra-se da Casa de Windsor aos órgãos de segurança do Estado e às forças armadas. Ela arregimenta a sociedade e mantém as pessoas, especialmente os pobres e a classe trabalhadora, em seu “próprio” lugar.
A classe dominante britânica se apega à mística da realeza e ícones culturais decadentes como James Bond, os Beatles e a BBC, juntamente com programas de televisão como “Downton Abbey” – em cuja versão cinematográfica de 2019 os aristocratas e servos têm uma convulsão febril antecipada quando o rei George V e a rainha Mary marcam uma visita — para projetar sua presença global. O busto de Winston Churchill continua emprestado à Casa Branca. Essas máquinas de mitos sustentam a relação “especial” da Grã-Bretanha com os Estados Unidos. Assista ao filme satírico “In the Loop” para ter uma ideia de como é esse relacionamento “especial” por dentro.
Foi apenas na década de 1960 que “imigrantes de cor ou estrangeiros” foram autorizados a trabalhar em funções clericais na residência real, embora tivessem sido contratados como empregados domésticos. A família real e seus chefes estão legalmente isentos de leis que impedem a discriminação de raça e sexo, o que Jonathan Cook chama de “um sistema de apartheid que beneficia apenas a família real”. Meghan Markle, que é mestiça e pensou em suicídio durante seu tempo em meio à família real, disse que um membro da realeza não identificado expressou preocupação com a cor da pele de seu filho ainda não nascido.
Tive um gostinho desse esnobismo sufocante em 2014, quando participei de um debate na Oxford Union que colocou em questão se Edward Snowden era um herói ou um traidor. No dia anterior fui preparado para o debate por Julian Assange, então refugiado na Embaixada do Equador e atualmente na prisão de Sua Majestade em Belmarsh. Em um lúgubre jantar de gala que antecedeu o evento, sentei-me ao lado de um ex-deputado que me fez duas perguntas que nunca haviam feito antes. “Quando sua família veio para a América?” ele disse, seguido por “Que escolas você frequentou?”. Meus ancestrais, de ambos os lados da família, chegaram da Inglaterra na década de 1630. Minha pós-graduação é de Harvard. Se eu não tivesse passado em seu teste definitivo, ele teria agido como se eu não existisse.
Os que participaram do debate – o meu lado que defendeu que Snowden era um herói venceu por pouco – assinaram um livro de visitas encadernado em couro. Pegando a caneta, rabisquei em letras grandes que preenchiam uma página inteira: “Nunca esqueça que seu maior filósofo político, Thomas Paine, nunca foi para Oxford ou Cambridge”.
Paine, autor dos ensaios políticos mais lidos do século XVIII, Direitos do Homem, A Idade da Razão e Senso Comum, criticou a monarquia como um golpe. “Um bastardo francês que desembarca com um bando armado e se estabelece como rei da Inglaterra, contra o consentimento dos nativos, é, em termos simples, um original muito vil… ”, escreveu ele sobre Guilherme, o Conquistador. Também ridicularizou a regra hereditária. “De mais valor é um homem honesto para a sociedade e aos olhos de Deus do que todos os rufiões coroados que já viveram.” Ele continuou: “Uma das provas naturais mais estranhas da loucura do direito hereditário dos reis é que a natureza o refuta, caso contrário ela não o transformaria tão frequentemente em algo ridículo, dando à humanidade um jumento por leão.” Ele chamou o monarca de “o bruto real da Inglaterra”.
Quando a classe dominante britânica tentou prender Paine, ele fugiu para a França, onde foi um dos dois estrangeiros eleitos para servir como delegado na Convenção Nacional criada após a Revolução Francesa. Ele opôs-se aos apelos para executar Luís XVI. “Aquele que quer garantir sua própria liberdade deve proteger até mesmo seu inimigo da opressão”, disse Paine. “Pois se ele violar esse dever, ele estabelece um precedente que chegará a si mesmo.” Assembleias sem controle, ele advertiu, podem ser tão despóticas quanto monarcas sem controle. Quando voltou da França para os Estados Unidos, condenou a escravidão, a riqueza e os privilégios acumulados pela nova classe dominante, incluindo George Washington, que se tornou o homem mais rico do país. Apesar de Paine ter feito mais do que qualquer figura para incitar o país a derrubar a monarquia britânica, ele foi transformado em um pária, especialmente pela imprensa, e esquecido. Seis enlutados compareceram ao seu funeral, dois dos quais eram negros.
Há um anseio patético entre muitos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha de estarem ligados de alguma forma tangencial à realeza. Amigos britânicos brancos costumam ter histórias sobre ancestrais que os ligam a algum aristocrata obscuro. Donald Trump, que criou seu próprio brasão heráldico, estava obcecado em obter um encontro de Estado com a rainha. Esse desejo de fazer parte do clube, ou validado pelo clube, é uma força potente que a classe dominante não tem intenção de desistir, mesmo que o desafortunado rei Carlos III, que junto com sua família tratou sua primeira esposa Diana com desprezo, faça disso tudo um caos.
Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/o-escandaloso-glamour-da-dominacao-colonial/
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