Faltando 20 meses para a conferência global do clima, cidade convive com problemas estruturais que vão do lixo acumulado à falta de hotéis. Investimentos concentram-se em pequena região, deixando de fora a periferia.
Por: Vinicius Mendes | Crédito Foto: Raphael Luz/Agência Pará. Belém foi confirmada como sede da COP30 em dezembro de 2023
“Quero ver quando chegar a COP”, ironiza o professor Maycon Gilvam, logo após elencar os desafios que enfrenta cotidianamente em Belém, no Pará. Natural de Ajuruteua, um distrito de frente para o Atlântico do município de Bragança, a 249 km de distância, ele vive há três décadas na capital paraense, onde já trabalhou como vendedor ambulante, taxista e recepcionista de hotel. Desde 2018, quando se formou na universidade, leciona na rede municipal. “Eu faço parte do grupo que espera que se aproveite esse momento para dar um salto, mas tem muita gente que acha que vamos só passar vergonha”, revela.
Desde dezembro, quando Belém foi oficialmente confirmada como sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) de 2025, esse é um dos principais assuntos na cidade. De um lado, a narrativa oficial tem enfatizado os investimentos públicos em melhorias estruturais e em incentivos para os setores que serão mais impactados pelo evento, como a rede hoteleira.
De outro lado, porém, muitas entidades da sociedade civil, movimentos populares e especialistas em diferentes áreas esperam que a conferência deixe benefícios para a cidade, mas criticam a condução dos preparativos e apontam problemas do cotidiano urbano que estão ausentes dos projetos atuais. Tudo isso sem contar as contradições significativas do processo.
“É muito simbólico que a COP aconteça na Amazônia. Vai chamar a atenção do mundo para a importância, mas também para os problemas da região”, aponta o presidente do Observatório Social de Belém (OSB), Ivan Costa. “Por outro lado, não estamos tão confiantes que ficará um legado para a cidade. Na verdade, vai sobrar muito pouco para a população depois”, lamenta.
Há, ainda, preocupação com o tempo, já que algumas obras de maior porte, como a reestruturação de grandes canais que cortam a metrópole e a ampliação do sistema de Bus Rapid Transit (BRT), inaugurado parcialmente em 2012 e bastante criticado pela população e até por autoridades, teriam que ser tocadas às pressas para estarem prontas até novembro de 2025.
“É possível retomar todos os projetos que estavam parados até agora, terminá-los dentro do prazo e ainda fazer tudo isso se preocupando com os impactos ambientais? Eu acho bastante difícil”, questiona a economista Vanusa Santos, que coordena um grupo de pesquisa sobre sustentabilidade na Universidade Federal do Pará (UFPA). Antônio Abelém, que também é professor na instituição e coordena a filial local do projeto Coalizão pelo Impacto, concorda. “O principal desafio do governo é conseguir entregar tudo o que prometeu. O prazo é muito curto”.
Abundância de recursos
Desde a metade de 2023, as instâncias públicas têm anunciado investimentos constantes na preparação de Belém para a COP30. O grosso dos recursos é federal. Há algumas semanas, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou a liberação de R$ 140 milhões em créditos para empreendimentos do setor turístico da cidade. Já no aporte mais relevante, divulgado em outubro, o banco topou financiar uma série de projetos apresentados pelo governo do Pará que, juntos, giram em torno de R$ 3,2 bilhões.
Em junho passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteve em Belém para participar, ao lado do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), de um evento simbólico de oficialização da cidade como palco da COP30. Na ocasião, eles anunciaram duas das intervenções mais aguardadas para a conferência: a do Parque da Cidade, em uma área federal que abrigava um aeroporto de pequeno porte e que sediará o evento, e a do Porto Futuro II, onde hoje estão apenas algumas docas abandonadas. Em ambas, a previsão é de gastos da ordem de R$ 680 milhões – parte deles serão custeados pela mineradora Vale.
Em janeiro, o Poder360 publicou uma reportagem afirmando que a estatal Itaipu Nacional, que administra a usina hidrelétrica de mesmo nome, na fronteira do Brasil com o Paraguai, ainda pretende colocar R$ 1 bilhão na infraestrutura da capital paraense. O dinheiro seria repassado como parte do programa de compensação de impactos ambientais da empresa.
No mesmo mês, a prefeitura de Belém ouviu do governo federal que receberá também mais de R$ 60 milhões para reformar o histórico complexo do Ver-o-Peso, principal cartão-postal de Belém, às margens do Rio Guamá.
Um filme que se repete?
Apesar da abundância de recursos, poucas obras estão em andamento. Entre as mais adiantadas, está a do Parque da Cidade. O Porto Futuro II também deve ser entregue dentro do prazo, mas os grandes canais que cortam Belém seguem intocados – em janeiro, muitos deles transbordaram com as chuvas dessa época do ano e deixaram moradores desabrigados –, enquanto o BRT ainda patina. Há muita preocupação também com a capacidade de Belém receber tanta gente de uma única vez e mesmo com dilemas antigos, como a violência na região central.
Para as entidades sociais, a crítica mais aguda está na percepção de que, fora do âmbito da COP, todas as mudanças sejam apenas superficiais. “Já vimos isso acontecer no Fórum Social Mundial. Os resultados posteriores foram muito pequenos perto do investimento feito à época, sem contar as coisas que ficaram inacabadas”, prossegue Ivan Costa, do OSB, lembrando do último evento de caráter global que a capital paraense recebeu, em 2009. À época, 135 mil pessoas circularam pela cidade ao longo de uma semana, segundo os organizadores. Relatórios apontam que foram investidos, na época, R$ 143 milhões (R$ 334 milhões em valores corrigidos).
Periferia fora da zona de investimentos
Já é um consenso que o fluxo de investimentos se concentrará em uma pequena área urbana de pouco mais de 30 quilômetros quadrados, entre o centro histórico e o aeroporto internacional, chamado provisoriamente de Polígono COP-30. A preparação tem sido feita para que os convidados não saiam desse perímetro. Por isso, poucas mudanças devem acontecer fora dele, dizem os observadores.
“A periferia está se sentindo totalmente fora do evento”, diz Abelém, da UFPA. “Não só porque as regiões mais populares da cidade se situam fora do polígono, mas porque os problemas que elas enfrentam não deverão ser resolvidos”.
Mas há problemas mesmo dentro desse espaço delimitado, como o lixo acumulado nas ruas. “É grave, porque não faltam recursos, mas falta gestão”, afirma Ivan. “Se a COP fosse hoje, os chefes de Estado desceriam no aeroporto e a primeira coisa que notariam é a sujeira de Belém”, continua Vanusa Santos. Para ela, mais do que uma questão de imagem, é um contrassenso inequívoco no contexto da reunião da ONU. “Estamos falando de uma conferência sobre clima que vai acontecer em um lugar sem condições de gerir resíduos sólidos”.
Abelém lembra que o problema se agravou em 2015, quando o lixão de Aurá, na cidade vizinha de Marituba, chegou ao limite. Ele recebe resíduos de Belém, com 1,5 milhão de habitantes, e de municípios vizinhos, como Marituba (133 mil) e Ananindeua (478 mil). Em novembro, diante do esgotamento do aterro, chegou-se a anunciar o fim das suas atividades, mas a prefeitura pediu o adiamento dessa decisão até fevereiro do ano que vem. “Não há alternativas para onde levar o lixo hoje”, explica ele.
Há críticas ainda à falta de saneamento básico, principalmente nos bairros fora do Polígono COP30 situados às margens dos canais, como o do Galo, por exemplo, ou aos córregos que atravessam o imenso bairro do Guamá, onde vivem quase 100 mil pessoas.
“Muitos deles precisam urgentemente de um serviço de drenagem, uma medida muito mais simples do que canalizá-los ou reestruturar os arredores. Mas nem isso tem sido feito”, diz Santos.
Recentemente, o IBGE publicou dados do Censo de 2022 mostrando que, a cada 10 moradores da capital paraense, dois não têm esgoto adequado em casa. Segundo o governo estadual, há uma ordem de serviço assinada desde o fim de janeiro para drenar 5,4 quilômetros de canais.
Mobilidade urbana
Fernando Soares, assessor do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Estado do Pará (Sindhopa), entende que o gargalo mais grave da capital paraense, na verdade, é o da mobilidade urbana. “Se vierem comitivas de 100 países e mais todas as organizações não-governamentais esperadas, precisaremos criar urgentemente um plano de contingência para que todas essas pessoas se movimentem. Como Belém é uma cidade antiga, com ruas pequenas mesmo no centro e um fluxo grande de carros, o trânsito hoje é caótico”.
Ele – e outros observadores – também se mostram bastante preocupados com a rede hoteleira. Os dados conflitam: enquanto o sindicato fala em 14 mil leitos disponíveis atualmente – o que faria com que a cidade precisasse praticamente quintuplicar esse número até meados de 2025 para dar conta da demanda da COP, considerando ainda acomodações específicas para chefes de Estado e comitivas internacionais –, a Associação Brasileira de Indústria de Hotéis (ABIH) diz que há 25,3 mil leitos disponíveis em Belém.
Soares, do Sindhopa, vê mais do que um problema: é, antes de tudo, um dilema. “Porque 2025 vai ser um ano fantástico. A cidade estará lotada o ano inteiro – mas, e depois?”, questiona. “O empresariado do turismo, do setor de alimentação, vai pegar os empréstimos que estão sendo oferecidos pelos bancos, vão reformar seus negócios para um único ano? Belém não tem vocação turística. Não tem praia, não é porta de entrada do Brasil. É por isso que esse é um gargalo difícil de ser resolvido”.
A coordenação da COP30 também parece alarmada: no fim do ano passado, ela encomendou estudos para entidades locais sobre alternativas possíveis apenas para o evento – desde o uso de dispositivos paralelos, como motéis e pensões, passando por abrigar convidados em cidades vizinhas ou ainda atracar embarcações de médio porte no rio Guamá, que serviriam como hotéis provisórios para os chefes de Estado. A ideia foi ventilada até por Barbalho. Há ainda o plano de utilizar prédios publicados – alguns sem uso – para transformá-los em parte da rede hoteleira de forma provisória. “Tudo isso dependerá de uma boa estratégia logística”, diz Soares.
Paraenses receptivos
Procurado pela DW, o Comitê Municipal para a COP30, não respondeu às solicitações. Ainda foram procurados pela reportagem, nominalmente, o secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, André Lago, e a vice-governadora paraense e chefe do comitê de preparação, Hana Ghassan. A assessoria de Lago disse que questões envolvendo a organização do evento são da alçada da Casa Civil da Presidência – a pasta também recebeu pedido de entrevista, mas não retornou no prazo estipulado. A ouvidoria da Secretaria de Estado de Planejamento e Administração do Pará (SEPLAD), onde está alocado o comitê estadual encabeçado por Ghassan, avisou que é a Casa Civil do estado a área responsável pelo assunto. Procurada, a pasta não enviou nenhuma resposta.
Para além dos desafios, há outro consenso – esse positivo – sobre a COP: a maneira como ela será recebida. “Há muito tempo não se via o paraense tão orgulhoso da sua cultura, da sua região, das suas coisas. Isso tem sido bonito de ver”, conta Antônio Abelém, da UFPA. Ivan Santos, do Observatório Social, concorda. “A COP está mobilizando discursos ambientais relevantes para a cidade. Nesse sentido, é muito bom que ela aconteça aqui”, finaliza.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/os-problemas-que-bel%C3%A9m-precisa-resolver-antes-da-cop30/a-68495127
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