Há cinco anos Brasil enfrentou o maior derramamento de petróleo já registrado em águas tropicais. Causa da tragédia continua um mistério. Comunidades atingidas relatam doenças e esperam reparação.
Por: Alice de Souza | Crédito Foto: Contato com o óleo deixou sequelas em voluntários que tentaram tirar com as mãos as manchas das praias.Foto: Getty Images/AFP/A. Veneri
Como fazia todos os dias há quatro décadas, o pescador Erivan Bezerra, de 60 anos, do Rio Grande do Norte, botou a jangada no mar e partiu da Praia de Cotovelo para mais um dia de trabalho. A expectativa era voltar ao continente com a embarcação carregada de peixes. Mas ele e os companheiros de trabalho retornaram de mãos vazias naquela 30 de agosto de 2019.
Há cinco anos, o Brasil foi atingido pelo maior derramamento de óleo já registrado em águas tropicais. As manchas começaram a aparecer no litoral sul da Paraíba, se espalhando por mais de mil locais em 130 municípios de 11 estados. O volume de petróleo vazado foi de 5 mil toneladas, segundo a Marinha do Brasil e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O óleo se espalhou por toda a costa nordestina, e chegou também no Espírito Santo e Rio de Janeiro.
Até hoje, a origem do material ainda é desconhecida e os responsáveis pela tragédia não foram punidos. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) chegou a ser criada naCâmara dos Deputados, mas foi encerrada há três anos sem avançar em planos de mitigação e sem apurar responsabilidades. Enquanto isso, os pescadores e marisqueiras seguem sofrendo os efeitos físicos e emocionais do episódio e lutam por algum tipo de reparação.
Os impactos de médio e longo prazo nas comunidades que se dispuseram de maneira voluntária a tirar o óleo das praias também é ainda desconhecido, afirma Andrea Rocha, secretária de Território e Meio Ambiente do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). “Não houve um monitoramento da saúde dessas pessoas. Elas se queixam constantemente de náuseas, problemas de pele e visão. Sem contar o adoecimento mental, muitos sofrem com processos depressivos”, diz ela, que integra a campanha Mar de Luta, iniciativa que pede a reparação socioambiental.
Saúde física e mental comprometida
Erivan já perdeu as contas de quantos dermatologistas procurou em busca de tratamento para a cicatriz que carrega no pé direito, provocada pelo contato com um bloco de óleo quente que tentou tirar de uma pedra. “Já fiz vários tratamentos, a mancha diminuiu, mas não desapareceu. Vou levar para o resto da vida como uma lembrança desse crime”, lamenta. O pescador diz ter muitos conhecidos com problemas de visão, decorrentes supostamente do contato com o óleo.
Ana Angélica Trindade, professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que há uma negligência no monitoramento da saúde física e mental dos afetados. “Talvez uma das maiores preocupações dessas comunidades é com a saúde mental. Houve uma condição de sofrimento cotidiano, o medo da fome, da morte, do adoecer, do futuro, de novos desastres, de não poder mais trabalhar, de ser expulso do seu território”, elenca.
Além da saúde física e mental, os impactos socioeconômicos continuam sendo sentidos pelas comunidades afetadas, diz Rocha. Em 2019, um auxílio emergencial de R$ 1.996 (dois salários mínimos na época) chegou a ser pago a cerca de 66 mil pescadores profissionais de áreas afetadas pela mancha de óleo. Entretanto, só quem possuía o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), um documento que não se concedia desde 2012, recebeu o valor. Logo, muitos não receberam o auxílio e, quando veio a pandemia, sofreram o duplo impacto na renda.
Isso foi agravado pelo estigma propagado de que as espécies marinhas vendidas na região estavam contaminadas e, também, pelo impacto na biodiversidade. Uma pesquisa realizada pelas Universidades Federal Rural do Semiárido (Ufersa) e Federal do Ceará (UFC), publicada em 2023, mostrou que as manchas chegaram a pelo menos dez ecossistemas. Houve diminuição na proporção de fêmeas em populações de caranguejo em Pernambuco e Alagoas, assim como foram detectadas contaminações em amostras de frutos do mar pescados na Bahia.
“Diminuiu bastante o estoque pesqueiro. Tem uma cidade aqui perto, Estância, onde as marisqueiras tiravam sacos de chumbinho [molusco também conhecido como berbigão] e hoje elas mal tiram metade”, conta Ana Elísia Pereira, coordenadora do Movimento das Marisqueiras de Sergipe. “O marisco diminuiu, ficou amargo, os peixes ficaram com a barriga preta por dentro durante muito tempo”, complementa Daina Santos, pescadora de Ilha Grande, no Piauí.
Segundo Trindade, na Bahia, essa situação ocasionou o aumento das jornadas de trabalho. “As jornadas se tornaram mais intensas e desgastantes, então essas pessoas estão mais sujeitas a doenças ocupacionais”, observa.
Em consequência da dificuldade de manter o trabalho e gerar renda, o vazamento provocou o êxodo, sobretudo de mulheres e jovens, conta Rocha. “Nós percebemos que depois desse período, nos lugares mais afetados, as mulheres foram forçadas a ir para outras atividades, como o serviço doméstico, e perderam a autonomia. E a juventude está migrando para outros estados do Sul.”
Óleo continua sendo encontrado
O caso aconteceu há cinco anos, mas parece que foi ontem para Ana Elísia Pereira. Na região onde vive, as manchas de óleo continuam a aparecer nas praias, tornando o medo de a situação se repetir um pesadelo frequente. “Quando venta muito, quando tem maré alta, ainda aparecem pedaços, pequenos, mas aparecem. Então, a gente acha que há óleo ainda lá no fundo, nas pedras e nos corais, e em algumas construções”, afirma.
Oficialmente, as manchas de óleo decorrentes do derramamento de 2019 foram vistas até março de 2020, segundo o Ibama. Porém, pesquisadores do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da UFC mostraram que houve pelo menos dois novos vazamentos de óleo na costa brasileira em 2022. Uma análise geoespacial mostrou que esses derramamentos atingiram 14 cidades, 15 áreas marinhas protegidas (AMPs) e 84 praias. Destes locais, oito áreas protegidas e 73,5% das praias já haviam sido atingidos em 2019 e 2020.
“Ainda tem muito óleo nas praias. A ausência de uma política voltada para o monitoramento e para uma verificação banalizou a situação”, afirma Rivelino Cavalcante, coordenador do Laboratório de Avaliação de Contaminantes Orgânicos (Lacor) da UFC. “Nós não tivemos somente um evento, tivemos temporalmente eventos. E não tem como saber qual causou mais impacto, porque eles se juntaram. É um ‘balaio de gato’, geoquimicamente falando”, complementa.
Para os pesquisadores, a questão virou um problema crônico no Brasil, que também inclui a chegada de outros materiais às praias nordestinas, como fardos de borracha e lixo. Em 2021, a Polícia Federal (PF) apontou um navio petroleiro grego como o responsável por lançar a substância no mar. Os pesquisadores da UFC dizem que não é possível atestar que o óleo veio do navio. “Precisamos da identidade do óleo para ligar ao causador, ou seja, de uma amostra coletada no navio. Mostramos que não era óleo bruto, mas um blend com combustível”, pontua Cavalcante.
A PF calculou cerca de R$ 525 milhões em danos ao Brasil. “O culpado tem que pagar os custos, então, logicamente, se não há culpados, os custos não vão ser pagos”, afirma o biólogo e professor Marcelo Soares, Labomar.
Naufrágios são bomba-relógio
Para Soares, não há dúvidas de que o litoral nordestino pode voltar a ser vítima de novos episódios de derramamento de óleo. Os pesquisadores identificaram mais de 500 navios naufragados do pós-Segunda Guerra Mundial no Atlântico Sul, entre o Brasil e a África. Segundo eles, essas embarcações contêm cargas que podem vazar e chegar à costa brasileira.
“É uma bomba-relógio, você não sabe quando elas vão explodir, mas que vai vir, vai”, diz Soares. Segundo ele, há pelo menos um navio petroleiro entre essas embarcações naufragadas, e as correntes existentes na região favorecem o deslocamento dos materiais para o litoral brasileiro. “Todas as correntes levam à costa brasileira, principalmente o Nordeste. Tanto é que a gente tem encontrado eventos de óleo, plástico e fardos de borracha. Tudo isso está lincado”, acrescenta.
De acordo com o especialista, o Brasil não possui nenhum tipo de monitoramento dessas embarcações. “Essas embarcações estão aí há 70, 80 anos, justamente o tempo de deteriorar. Então, o óleo que chegou pode ter vindo inclusive daí. Essa é uma hipótese, mas falta o material do suspeito para confirmar”, acrescenta.
Em 2022, por exemplo, os pesquisadores da UFC conseguiram mostrar que fardos de borracha encontrados nas praias brasileiras a partir de 2018 eram do navio alemão SS Rio Grande, naufragado por americanos durante a Segunda Guerra. Um novo estudo, pré-aprovado para publicação, agora mostra que fardos encontrados em 2021, podem ter sido do navio alemão MV Weserland, que está a uma profundidade de 5 mil metros e carrega borracha, estanho e tungstênio.
“Provavelmente o local está sendo pirateado para pegar tungstênio, uma commodity que aumentou bastante de valor depois da pandemia, pois é usada para fazer celulares, tablets e computadores”, explica o professor Luis Ernesto Bezerra, do Labomar, responsável pelo estudo. Até o fechamento desta reportagem, a Marinha do Brasil não respondeu se tem algum projeto para monitoramento dessas embarcações naufragadas.
Em busca da reparação
Cinco anos após a tragédia, um dos grandes desafios do Brasil atualmente é identificar os impactos tardios provocados pelo derramamento de óleo, apontar responsáveis e reparar às vítimas. Nesta sexta-feira (30/08), um convênio será assinado entre o Ministério da Pesca e Aquicultura e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para enfrentar o que os pescadores chamam de racismo e a injustiça ambiental decorrentes do episódio.
O projeto, que irá durar dois anos, visa criar e implementar políticas públicas de proteção aos recursos e práticas culturais e socioambientais de pesca artesanal no litoral de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. “A ideia é fazer uma escuta dessas populações atingidas e criar mecanismos que persistam às mudanças de governo, que vão assegurar uma melhor gestão para os problemas decorrentes do petróleo“, explica Gilberto Rodrigues, da UFPE.
Na Bahia, a UFBA irá monitorar as comunidades afetadas para identificar as doenças físicas e mentais decorrentes do vazamento. “Essas comunidades enfatizam que o desastre não passou para eles. Pode ter passado para quem não está nas comunidades pesqueiras, mas para eles é presente, está no cotidiano”, conclui Trindade.
Em nota, o Ministério da Pesca e Aquicultura afirmou que está desenvolvendo duas ações voltadas ao desastre do petróleo, em parceria com a Fiocruz/Aggeu Magalhães e a Rede Prodema (Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente) na região Nordeste, para formação de agentes populares de saúde nos territórios da pesca artesanal, a qualificação de profissionais do SUS para o atendimento básico de doenças relativas aos povos das águas, e realização de pesquisa e ações.
Comente aqui