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Uma mineradora no banco dos réus

O desastre da Samarco expôs as entranhas de um sistema de mineração que negligencia comunidades e destrói ecossistemas. Agora, o julgamento na Inglaterra de uma das maiores ações coletivas da história pode finalmente responsabilizar a BHP Billiton e redefinir o curso da justiça para as pessoas atingidas.

Por: Natanael Alencar | Crédito Foto: Christophe Simon/AFP

Soterrados abaixo de quase 10 anos de espera angustiante, o processo de reparação do maior desastre socioambiental do país, no que diz respeito à quantidade de rejeitos despejados e à extensão territorial da devastação, chega a um de seus mais aguardados capítulos. Nesta segunda-feira, dia 21 de outubro, teve início o julgamento de mérito na corte inglesa do caso que pode responsabilizar a  multinacional Broken Hill Proprietary Billiton (BHP Billiton) pelos danos socioambientais causados pelo rompimento da barragem do Fundão, ocorrido em novembro de 2015 em Mariana-MG. Uma vez condenada, a empresa terá de indenizar as pessoas atingidas pelo seu crime em até 35 bilhões de libras, equivalente a 260 bilhões de reais. Os mais de 600 mil requerentes são representados pelo escritório de advocacia inglês Pogust Goodhead, o que corresponde a apenas parte das vítimas afetadas, constituindo a maior ação coletiva absorvida pela justiça britânica.

Ao nos determos nas acusações por crimes socioambientais à Samarco, quase tudo é superlativo. A anglo-australiana BHP é uma das companhias que a gerencia, ao lado da brasileira Vale. Somadas, as receitas das duas co-proprietárias em 2023 chega a mais de 90 bilhões de reais e o volume combinado de extração das lavras de minério de ferro das duas titãs, apenas em 2024, supera o patamar de 370 bilhões de toneladas. Estamos falando de duas das mineradoras líderes globais mais rentáveis e responsáveis por grande fatia da extração mineral do planeta. Portanto, não surpreende que os impactos que ambas tiveram o poder de causar no território brasileiro também sejam imensos: estima-se que o rompimento da barragem do Fundão tenha lançado 50 milhões de metros cúbicos de resíduos tóxicos em uma faixa territorial de mais de 600 quilômetros, indo de Bento Rodrigues, região do rompimento em Minas Gerais, até a foz do Rio Doce, onde ele desemboca no Oceano Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo. O rastro destrutivo pode ser visto até hoje, tanto nos territórios apagados do mapa, quanto na qualidade hídrica pestilenta, no morticínio da fauna e nas diversas camadas da vida das populações.

Na contramão de grandezas tão vultuosas, se encontra a capacidade da BHP de encontrar formas de conduzir uma reparação satisfatória. Embora a Fundação Renova, entidade de direito privado criada pela Samarco no ano seguinte ao desastre para gerir as ações de mitigação e compensação, tenha sido veloz em definir que danos e quem poderia ser considerado nos cálculos de restituição e fornecimento de auxílios emergenciais, como parte de uma estratégia de compliance, são marca de sua atuação o paternalismo deliberativo, a falta de assertividade e a morosidade em adotar medidas ditadas pela justiça brasileira — omissa, segundo a maioria de seus críticos.

Segundo Edmundo Antônio Dias Netto Junior, Procurador da República do Ministério Público Federal, “não há dúvidas que a Fundação Renova tem agido muito mais como um instrumento para resguardar as empresas de imputações formais do que como um agente de efetiva reparação humana, social e ambiental”. Baskut Tuncak, relator da ONU sobre resíduos tóxicos que esteve em missão no Brasil em 2019, considera que “infelizmente, o verdadeiro propósito da Fundação Renova parece limitar a responsabilidade da BHP e da Vale, ao invés de fornecer qualquer aparência de um remédio eficaz”.

Recorrer a uma instituição escudo para fazer suas responsabilidades flutuarem é um expediente que reaparece na história da companhia. Na década de 1990 em Nova Guiné, o rompimento de uma barragem da BHP lançou rejeitos de minério no rio Ok Tedi e a levou a um longo processo judicial. Para esquivar-se de ônus futuros, a empresa transferiu participações acionárias para um fundo governamental, eximindo-se de arcar com ações de restituição. A estratégia de “desresponsabilização” da BHP é tão séria que chega a ser uma questão contratual. Nos projetos minerários Cerrejon, na Colômbia e Antamina, no Peru, sua participação é em “regime de não-operação”. A mesma fórmula vinculante é aplicada com a Samarco, na qual a anglo-australiana figura como mera investidora, não como responsável operacional.

Se a urgência dispensada pela Fundação Renova ao seu objetivo-fim causa constrangimentos, pior é a situação dos acordos judiciais em torno da reparação. Só recentemente, a Vale e a BHP parecem dispostas a aceitar um acordo de reparação que, se for firmado, pode chegar a 170 bilhões de reais. Em 2020, quando ainda se discutia se a corte londrina teria de fato jurisdição sobre o caso, representantes das populações atingidas já denunciavam estratégias para postergar ações compensatórias. Mais questionável ainda é o escopo e a legitimidade destas, visto que a participação dos sujeitos atingidos pelos danos do rompimento raramente chega às mesas de decisões. Em julho deste ano, a BHP foi coagida por entidades de justiça a não participar nem financiar ações movidas pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) no Supremo Tribunal Federal (STF), em uma tentativa do instituto de limitar o escopo das demandas por justiça na Inglaterra. Isso demonstra sua seletividade e senso de prioridade quando o assunto é defender os impactos a seus acionistas.

Se soa inábil ao efetivar suas atribuições junto às coletividades atingidas, Samarco, Vale, BHP e Renova mostram-se bastante engajadas na construção de fantasiosas campanhas de marketing que propagaram  desinformação, ignorância e confusão pública, “noticiando o restabelecimento de uma normalidade inexistente, em temas fundamentais para a população, como a qualidade da água e do ambiente aquático, recuperação de nascentes e bioengenharia, recuperação econômica, indenização, reassentamento e concentração de rejeitos”, como declara a ação civil pública que embasou a condenação do conglomerado em 56 milhões de reais por danos materiais e morais decorrentes destes desvios de função.

Os danos de longa duração são convenientemente excluídos das narrativas de “normalidade” alcançada graças às ações da Renova. Assim como os danos biogeofísicos, também devem ser considerados no rol de afetações as feridas infligidas às camadas sociais ligadas aos vínculos, relações, trabalho, renda, projetos de futuro, práticas culturais, religiosas e a vastos elementos identitários coletivos. A ruptura da barragem também significa uma ruptura subjetiva, biográfica. Ela não é a mesma para todas as pessoas atingidas: é específica para os ribeirinhos, para os quilombolas, para os moradores de Paracatu, de Governador Valadares. Mais singular ainda é o caso dos povos indígenas que viam no Rio Doce um parente, uma entidade e uma divindade, como é o caso dos membros da etnia Krenak. Para Ailton Krenak, imortal da Academia Brasileira de Letras, a morte do Watu (nome do Rio Doce em sua língua nativa que significa “avô”) representa não apenas um profundo dano espiritual, mas uma “catástrofe no sentido cultural-ecológico”.

Se parece difícil imaginar uma vida sem minérios de ferro, matéria-prima que sustenta os pilares da modernidade, de sua infra-estrutura material a seus arroubos bélicos, nossa inteligência e sensibilidade não deveriam se intimidar frente ao requisito de estabelecer limites éticos associados a exploração das empresas, à instrumentalização, descarte e destruição de territórios, bem como ao colossal sofrimento que arremessa comunidades inteiras. Temos muito a nos educar com os grupos de comunidades atingidas organizadas, pessoas que não perderam a agência mesmo tentando seguir a vida em um mundo radicalmente danificado pela mineração. Foram elas que pressionaram pela aprovação da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) instituída ano passado. Antes disso, provocaram inovações jurídicas extremamente relevantes ao reclamarem por assessorias técnicas independentes que as auxiliassem no enfrentamento assimétrico com as mineradoras.  No que diz respeito ao julgamento inglês, a London Mining Network, entidade que se articula com as atingidas e atingidos brasileiros pela Samarco, o considera um “momento crítico” e um “marco” especial para quem luta há tanto tempo por respostas sólidas.

É da organização das comunidades atingidas que partem consideráveis provas da efetividade da ação política coletiva, ímpeto que deveria nos inspirar a exigir tanto que novos colapsos não se repitam, quanto a concretização de um outro desenho de reparação e de responsabilização, fora da curva da aparente impunidade. Recentemente, a campanha Revida Mariana tem realizado o árduo trabalho de trazer para o presente aquilo que arrefeceu na empatia e na opinião pública, tão pastoradas pelo regime de atenção midiático sensacionalista, passado tantos anos do desastre e seguidos tantas outras tragédias nacionais e mundiais. Como tornar mais uma vez próximo um sofrimento distante, tanto cronológica quanto geograficamente? Como reabilitar a energia de indignação e as demandas por reconhecimento e justiça, impulsionando um renovado fôlego por reparação integral? Temos a oportunidade de aprender com essas iniciativas como gestar forças de resistência necessárias para lidar com o tempo vagaroso dos ritos jurídicos e o vigoroso investimento que as companhias realizam na atomização e desmobilização das vítimas de seus erros, bem como de identificar estratégias e armadilhas do gerenciamento do desastre que elas empregam.

No arcabouço legal brasileiro, apenas pessoas físicas podem ser acusadas de homicídio qualificado. No caso da Samarco, 21 pessoas foram acusadas desse crime, mas, em 2019, foram eximidas de responder penalmente. No Brasil, palavras de ordem como “Vale assassina!” possuem um alto valor moral e político, mas pouca relevância no sentido estritamente legal de responsabilização da pessoa jurídica. No paradigma da justiça inglesa, contudo, há, desde 2007, um dispositivo regido pelo Corporate Manslaughter Act, que inaugura o delito de homicídio corporativo. De acordo o advogado e professor de direito penal  Samuel Ebel Braga Ramos, em parceria com outros autores:

O crime é cometido quando uma organização qualificada (ente empresarial) causa a morte de um ou mais indivíduos aos quais tem um dever de cuidado, através de uma violação grave desse dever, sendo que uma parte substancial desta violação decorre da maneira pela qual suas atividades empresariais são executadas ou organizadas pelos gerentes sêniores. […] O dever e o poder de agir da pessoa jurídica para a evitação do resultado danoso é o centro medular para a responsabilização criminal das pessoas jurídicas na legislação do Reino Unido. A relevante violação de um dever de cuidado (relevant duty of care) emerge quando demonstrado que a pessoa jurídica se comporta muito abaixo do que é razoavelmente esperado da organização no caso concreto.

Quanto a isso, o julgamento do caso na corte inglesa também pode ser um importante momento para que novos dados sejam descortinados quanto a apontada negligência da mineradora, mas principalmente qualificar a forma como nossos legisladores compreendem o papel das empresas em desastres de proporções assombrosas como o da Samarco.

Quatro anos após o rompimento da barragem do Fundão em Mariana, o macabro experimento comercial neoextrativista repetiu-se em Brumadinho. Os dois eventos, longe de serem os únicos, mudaram a percepção de diferentes gerações sobre a mineração e as narrativas produzidas sobre a atividade. Adicionalmente, dão indícios um padrão sistêmico de impunidade. Elas são amostras sinistras de como Brasil, assim como muitos outros países latino americanos, segue sendo abundante fornecedor de zonas de sacrifício.  Para se ter uma noção, nenhum alvo das acusações de crime no caso da Samarco (22 pessoas e 4 empresas) foi punido e o destino tem sido a prescrição. Longe de representar uma afronta à soberania jurídica brasileira, o julgamento nos tribunais ingleses relembra e reforça a capacidade das nações e da sociedade civil de impor constrangimentos significativos aos apetites e negligências de agentes predatórios — que seguem insaciáveis em se apropriar e exaurir recursos, territórios e existências.

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2024/10/uma-mineradora-no-banco-dos-reus/

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