Petrobras tenta convencer o Ibama sobre seu plano de resgate aos animais em caso de vazamento. Impactos nos povos tradicionais e novos estudos para avaliar a dispersão de óleo são pontos ausentes no licenciamento.
Por: Maurício Frighetto | Crédito Foto: Imago Images/Fotoarena/B. Rocha. Petrobras tenta conseguir licença de perfuração para região na Foz do Amazonas
Se um vazamento de petróleo na bacia Foz do Amazonas atingir a fauna, a Petrobras levará cerca de três horas para transportar um animal até uma base de recuperação em terra. No melhor cenário. No pior, o deslocamento demorará quase dois dias. As estimativas foram enviadas pela petroleira ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para tentar obter a licença de perfuração do bloco 59.
O licenciamento teve início em 2014. O Ibama chegou a negar o pedido de licença em 2023, mas voltou a analisar o caso após um pedido de reconsideração da Petrobras. Já em outubro do ano passado, 26 analistas ambientais recomendaram o indeferimento e o arquivamento do processo. No entanto, o presidente do instituto, Rodrigo Agostinho, deu prosseguimento ao licenciamento, solicitando novas informações à petroleira.
As respostas foram dadas no fim de novembro de 2024. Ao analisar o documento, percebe-se que praticamente toda a discussão gira em torno do Plano de Proteção à Fauna, cujo objetivo é estabelecer estratégias de proteção aos animais em caso de acidentes.
Mas o documento também chama a atenção para os pontos ausentes: não há discussão sobre a consulta aos povos tradicionais, como os indígenas e os pescadores artesanais, nem ao aperfeiçoamento da modelagem de dispersão de óleo em caso de acidente.
Paralelamente ao processo de licenciamento, cresce a pressão da Petrobras e de políticos para que o Ibama conceda a licença. Quanto mais demora a autorização, mais perto fica a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP30), em Belém (PA). Em novembro, estará em pauta o combate às mudanças climáticas, sendo o petróleo um dos principais vilões.
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Nas últimas semanas, a pressão ganhou o reforço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista à Rádio Diário FM, de Macapá, por exemplo, ele disse que não dá para ficar nesse “lenga-lenga”. “O Ibama é um órgão do governo, parecendo que é um órgão contra o governo.”
Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima e presidente do Ibama entre 2016 e 2018, critica: “A pressão que está sendo feita em cima dos técnicos, em cima do Ibama em geral, é desumana. Não cabe fazer isso no licenciamento ambiental. Tem hora que a resposta do licenciamento ambiental é não.”
As estruturas e os resgates
O bloco 59 – o termo técnico é FZA-M-59 – está situado no oceano Atlântico, a cerca de 170 quilômetros da costa do Amapá e 560 quilômetros da foz do rio Amazonas, uma área considerada sensível ambientalmente. O objetivo da Petrobras é perfurar um poço para verificar a presença de petróleo, utilizando o navio sonda NS-42.
Ao analisar as respostas da Petrobras, percebe-se a tentativa de a petroleira convencer o Ibama sobre seu Plano de Proteção à Fauna, principalmente em como animais atingidos por óleo seriam resgatados e transportados até um posto de recuperação em terra.
A empresa já construiu o Centro de Reabilitação e Despetrolização de Belém (CRD-BEL), no Pará, e havia prometido a construção da Unidade de Estabilização e Despetrolização do Oiapoque (UED-OIA), no Amapá.
Um dos motivos pelos quais os analistas ambientais sugeriram negar a licença refere-se justamente à unidade do Oiapoque, cuja estrutura sequer tinha sido apresentada. Na resposta de novembro, a Petrobras informou que havia iniciado sua construção e que estava projetada para atender espécies marinhas e costeiras, incluindo aves, répteis e mamíferos. Ela deve ficar pronta até março.
Outra discussão é sobre os tempos de resgate. Para transportar um animal entre a sonda NS-42 e a unidade do Oiapoque, a Petrobrás levaria, no melhor cenário, até 3h10min – usando helicóptero e transporte terrestre. Mas se precisasse levá-lo até Belém, apenas por via marítima, o tempo variaria entre 30h30min e 45h30min.
De acordo com a Petrobras, serão mais de 100 profissionais dedicados à proteção animal, incluindo médicos veterinários, biólogos e outros profissionais, habilitados para atuar com fauna.
Se o Ibama acatar as informações da empresa, ainda será preciso fazer a Avaliação Pré-Operacional (APO). É um exercício de resposta a vazamento de óleo, no qual será avaliada a capacidade da Petrobras em executar as estratégias indicadas.
Consulta aos povos tradicionais
Em sua resposta, a Petrobras também fez considerações sobre outros pontos abordados pelos analistas ambientais, mas que não foram elencados pela presidência do Ibama. No entanto, a empresa não abordou um tema: o impacto nos povos tradicionais.
Os cerca de oito mil indígenas do Oiapoque cobram voz no processo de licenciamento, dizendo que deveriam ser ouvidos por meio de uma consulta livre e informada, como manda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
A Petrobras e a presidência do Ibama não responderam aos questionamentos da reportagem. Em outra oportunidade, informaram que a lei não requer esta consulta.
Já o impacto na vida dos pescadores artesanais está completamente invisibilizado, avaliou Gustavo Goulart Moreira Moura, professor da Faculdade de Oceanografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Ciência Ambiental.
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Um dos problemas, de acordo com o professor, está no mapeamento das áreas de pesca. “Temos indícios fortes de que o mapeamento está equivocado”, disse. Essa etapa é importante para analisar os impactos do empreendimento nestas populações.
De acordo com Moura, estudos de casos mostraram que as áreas de pesca foram subestimadas. Além disso, elas foram apresentadas de forma descontínua. Ou seja, não levaram em consideração aspectos como o trajeto das embarcações pesqueiras, as áreas consideradas sagradas e até mesmo locais protegidos pelas comunidades.
Também faltou a consulta livre, prévia e informada. “É só fazendo essas consultas que é possível saber, junto com os sujeitos que serão impactados, qual o nível do impacto de determinado empreendimento”, disse Moura.
Mais estudos de modelagem
O Ministério Público Federal (MPF) do Amapá também acompanha o processo. No fim de novembro, emitiu recomendações ao Ibama e à Petrobras. Ao instituto, recomendou que este seja o último pedido de complementações e que, em seguida, dê uma resposta definitiva. À petroleira, que cumpra as exigências da autarquia, o que não tem feito até então.
Entre as recomendações do MPF, pelo menos uma está ausente no licenciamento: a modelagem de dispersão de óleo. Segundo os estudos apresentados pela Petrobras e aceitos pelo Ibama, em um possível acidente, o óleo não chegaria à costa brasileira.
Entretanto, um laudo de peritos de oceanografia, feito a pedido do MPF, concluiu que são necessários estudos complementares. “Isto porque, processos relacionados com eventos extremos na região podem ter perturbado ou modificado uma série de parâmetros utilizados para calibrar ou validar o modelo, haja vista que estas zonas do rio Amazonas (estuário e pluma) são hiperdinâmicas.”
“Estou em consonância com o parecer do Ministério Público Federal do Amapá, que diz que o modelo deve estar mais robustecido com dados relacionados a mudanças climáticas”, defendeu Moura.
Uma das evidências de que a modelagem precisa melhorar veio do espaço. Em 2014, foram encontrados pedaços de um foguete no Parque Nacional do Cabo Orange, no Amapá, lançado pela Guiana Francesa. Eles caíram no mar a 350 quilômetros a leste do bloco 59 antes de chegar na costa do Amapá.
Entre o petróleo e as energias renováveis
Suely Araújo, do Observatório do Clima, costuma dizer que o bloco 59 pode ser uma porteira para exploração da margem equatorial, uma região de cinco bacias sedimentares desde o Rio Grande do Norte até o Amapá.
Só na Foz do Amazonas nove blocos já foram concedidos pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). No novo leilão, marcado para junho, foram incluídos outros 47.
O Ministério das Minas e Energia quer transformar o Brasil no quarto maior produtor de petróleo do mundo – atualmente, é o oitavo. Ao mesmo tempo, o país busca se consolidar como um líder mundial em energias renováveis.
Essas contradições não são consideradas em um processo de licenciamento, como do bloco 59, mas talvez deveriam estar sendo discutidas com mais profundidade. “No meu entendimento, o petróleo é uma aposta no passado, em uma fonte de recursos que vai ter que ser abandonada aos poucos”, defendeu Araújo. “É uma fria inclusive do ponto de vista econômico, porque o petróleo traz dinheiro, mas não traz justiça social, nem distribuição de renda.”
Publicado originalmente em: https://www.dw.com/pt-br/como-a-petrobras-reagiria-a-um-acidente-na-foz-do-amazonas/a-71636101
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