Criada no Maranhão, entre aldeia e cidade, Silmara Guajajara mudou-se cedo para o Rio — tempos de violência. Encontrou-se na escola, onde enxergava o mundo. Não pensa em voltar: seu lugar na luta indígena é o de professora, corajosa e premiada
Relato de Silmara Guajajara a Angela Pappiani
O nome do povo Guajajara, um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil, com uma população de mais de 25 mil pessoas, vivendo em 11 Terras Indígenas demarcadas no Estado do Maranhão, vem ocupando manchetes na mídia nacional e internacional com frequência. Na maioria das vezes protagonizando denúncias, invasões, violências e integrando listas de lideranças assassinadas premeditadamente por defenderem o território sagrado e necessário para a manutenção da vida e do espírito desse povo guerreiro. Foram mais de 45 lideranças importantes e combativas assassinadas nos últimos 20 anos, numa tentativa clara de silenciamento do povo, de quebra de sua resistência. Mas a resposta à negligência e cumplicidade dos governos nessa nova guerra ofensiva para ocupar os territórios e se apossar do que chamam “recursos naturais”, tem sido a mobilização dos Guardiões da Floresta, homens e mulheres que fazem a vigilância dos limites do território, denunciando as invasões e depredações, buscando aliados e apoio nessa luta.
Também atuando nas denúncias e buscando novos espaços de ação política, Sonia Guajajara despontou como liderança aguerrida à frente da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, percorrendo países e instâncias internacionais juntamente com outros líderes e integrando, como candidata a vice-presidente, a chapa de Guilherme Boulos, pelo PSOL, na última eleição de 2018.
Em São Paulo, outra filha do povo Guajajara se afirma como pesquisadora e educadora, com trabalho reconhecido pela universidade e pela Secretaria Municipal de Educação. Silmara Cardoso, conhecida como Silmara Guajajara, venceu todos os obstáculos que a vida na cidade grande colocou em seu caminho, a distância de sua tradição, a perda da língua materna, a ausência de laços afetivos, e constrói uma história de superação e conquistas. Com graduação em pedagogia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ, mestrado e doutorado em educação pela USP, ela elabora projetos que levam informação, reflexão e a força das culturas indígenas para dentro das salas de aula, como o projeto Grafismo e culturas indígenas: arte, manifestação cultural e tradição, premiado pelos Institutos Tomie Ohtake e Paulo Freire.
Silmara Cardoso nasceu no Maranhão, na Terra Indígena Arariboia, do povo Guajajara, filha de pai indígena e mãe mestiça, que nunca reconheceu sua identidade. Neste depoimento, Silmara fala com coragem de momentos difíceis de sua vida, de sua busca por acolhimento e felicidade, da trajetória acadêmica e profissional que a levaram de volta a sua origem e identidade.
“Meu nome é Silmara Guajajara e hoje estou com 40 anos. Eu vivi pouco tempo na aldeia, na Terra Indígena Arariboia, somente até os 5 anos. Minha mãe estava passando dificuldade e alguém prometeu que ia arrumar trabalho para ela no Rio de Janeiro. Ela foi convertida, evangelizada, virou crente e veio para o Rio, primeiro sozinha, trabalhar como empregada doméstica, depois foi me buscar. Então, por conta dessa mudança, fui criada no Rio e agora vivo em São Paulo desde 2008.
Essa mudança foi muito difícil para mim. Foi um choque chegar ao Rio. No Maranhão, tinha todos os meus laços familiares, tanto na aldeia quanto fora, tinha todos os parentes. E aí, eu chego numa cidade completamente desconhecida, sem parente nenhum, sem nenhuma referência e vou para a casa de pessoas desconhecidas, com quem eu não tinha laços. Era uma família de evangélicos, que cuidavam de mim enquanto minha mãe trabalhava. A gente morava no Morro de São Carlos, no Estácio. Assim entrei em contato com a realidade do que era viver numa favela, onde tinha tiroteios e todo tipo de violência. Eu me lembro de tiroteios muito fortes, a gente tinha que se esconder embaixo da cama, era horroroso! Agora, do jeito que tudo está difícil, com tantas invasões das terras indígenas por madeireiros, talvez tenha tiroteios até lá no Maranhão, mas na minha época de infância não, nem mesmo nas cidades.
“Eu me lembro de tiroteios muito fortes, a gente tinha que se esconder embaixo da cama, era horroroso!”
Foi uma infância muito difícil. Apesar dessas pessoas que nos receberam serem evangélicas, uma religião que prega o amor e a bondade, naquela família era tudo o contrário do que a religião cristã prega. Era uma família muito complicada, desestruturada, e aquilo me afetou demais. Perdi muito, fiquei longe das minhas tradições, da minha família, já não conseguia falar minha língua – eu era bilíngue, dominava as duas línguas, depois passei a falar só português. Fiquei num limbo racial, não sabia mais quem eu era, se era indígena se era branca, negra, asiática… eu não era nada. Para os cristãos, todos nós somos filhos de Deus, não tem esse negócio de ser índio, negro, branco, todos somos iguais. O que importava era que estava dentro de uma religião e precisava seguir os preceitos religiosos, isso foi muito impactante para a minha identidade. Apesar de minha mãe ser mestiça, de não se considerar indígena, nunca negou isso para mim, mas depois que ela se converteu, isso não tinha mais importância. Quando a gente voltava ao Maranhão ela me deixava ver meu pai, estar com minha família. Eles sempre reforçando minha identidade. Para eles tinha importância.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/trincheiras-indigenas-educacao-como-cura-reencontro-e-luta/
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