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Lula e a política do não enfrentamento

A visão estática da “correlação de forças” esconde uma indisposição do governo em mobilizar bases sociais e ampliar seus próprios limites políticos? Sheinbaum no México e Petro na Colômbia mostram saídas: posturas assertivas contra as elites sem comprometer a estabilidade interna

Por: Bruno Fabricio Alcebino da Silva| Crédito Foto: Ricardo Stuckert. Lula observa Alcolumbre cumprimentar Motta

O conceito de correlação de forças desenvolvido por Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere (1926-1937) refere-se ao equilíbrio entre as pressões sociais e políticas em uma determinada sociedade, que determina as possibilidades de avanço de determinados projetos políticos ou resistência a eles. Segundo Gramsci, essa correlação não é estática, sendo resultado de um constante jogo de alianças, negociações e enfrentamentos, no qual a hegemonia de uma classe ou grupo é constantemente desafiada e contestada pelas forças opostas. No contexto político atual, isso se traduz na capacidade de um governo implementar mudanças em face de uma oposição interna e externa, sendo crucial para o sucesso de políticas transformadoras a habilidade de fortalecer a posição política e social do governo através de alianças e consensos.

No Brasil, o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta uma correlação de forças complexa, na qual são feitas constantes concessões ao Congresso conservador, especialmente ao Centrão, além de lidar com uma oposição exacerbada da extrema direita, o que limita a capacidade de implementar mudanças estruturais. A estratégia de Lula tem sido buscar equilíbrio e estabilidade, apostando na moderação e no diálogo para garantir a governabilidade, o que implica uma forma de pragmatismo na política interna. Ou seja, o não enfrentamento devido à falta de correlação de forças. Mas isso deve ser assim?

O argumento de que “não há correlação de forças” suficiente para um enfrentamento mais incisivo pode ser visto como uma análise realista da conjuntura, mas também pode indicar uma falta de disposição para mobilizar bases populares e tensionar o sistema político em favor de mudanças estruturais. Ao priorizar uma hipotética estabilidade e o diálogo, o governo corre o risco de ceder demais à oposição e aos setores de influência, esvaziando seu próprio programa progressista.

Historicamente, momentos de transformação significativa no Brasil – como as reformas trabalhistas da Era Vargas ou as conquistas sociais dos anos 2000 – não aconteceram apenas por meio da negociação com o Congresso, mas também pela pressão popular e pelo uso estratégico da força política do Executivo. Se Lula evita o confronto por acreditar que não há margem para enfrentamento, essa própria crença pode reforçar a inércia e impedir mudanças mais profundas.

A questão central, então, é: será que o governo realmente não tem alternativa ao pragmatismo imediatista, ou está evitando testar seus próprios limites políticos? É possível ampliar essa correlação de forças com mobilização popular e articulação mais firme, ou a escolha pelo equilíbrio e pelo diálogo é, na verdade, uma opção consciente que relega mudanças estruturais para um futuro incerto?

Lula, em seus primeiros mandatos (2003-2011), adotou uma estratégia semelhante, de moderação e conciliação. Naquele contexto, contudo, a direita tradicional ainda não estava tão radicalizada e o bolsonarismo não existia como fenômeno político. Hoje, a dinâmica é diferente, e um governo que busca a todo custo evitar o conflito pode acabar refém das pressões conservadoras.

Por outro lado, líderes latino-americanos como Gustavo Petro, na Colômbia, e Claudia Sheinbaum, no México, adotam posturas mais assertivas e confrontam diretamente a oposição, muitas vezes com posições mais rígidas frente às potências externas, como os Estados Unidos. Essas atitudes revelam que, em contextos distintos, as correlações de forças podem permitir estratégias mais firmes de enfrentamento, sem necessariamente comprometer a estabilidade interna.

Brasil: um governo refém da correlação de forças?

O terceiro mandato de Lula é marcado por uma correlação de forças particularmente hostil, refletindo tanto o peso que diversas frações da direita apresentam quanto os desafios econômicos e diplomáticos que o governo enfrenta. A vitória eleitoral apertada nas eleições de 2022, na qual Jair Bolsonaro foi derrotado por uma margem de apenas 1,8 ponto percentual, evidenciou a profunda divisão da sociedade brasileira. A campanha foi marcada por episódios de violência política, disseminação de desinformação e uma intensa mobilização da máquina bolsonarista, que segue ativa mesmo após a derrota nas urnas. Esse cenário consolidou uma oposição aguerrida que, mesmo sem o comando do Executivo, mantém forte influência sobre setores estratégicos do Estado, como o Congresso Nacional e as Forças Armadas.

No Congresso, a governabilidade de Lula é desafiada pela força do Centrão e de setores da extrema direita, que impõem uma agenda conservadora e dificultam a aprovação de pautas progressistas. Porém, todas as matérias econômicas neoliberais enviadas pelo Executivo foram aprovadas com facilidade, evidenciando a assimetria na correlação de forças. A necessidade de constantes negociações resultou na distribuição de ministérios e cargos a partidos aliados, muitas vezes em detrimento da unidade programática do governo. O “toma lá, dá cá” da política tradicional brasileira tornou-se ainda mais evidente na gestão das emendas parlamentares, que agora representam um instrumento crucial para garantir apoio legislativo. Isso limita o avanço de reformas estruturais e obriga o governo a calibrar suas propostas para evitar derrotas políticas, como ocorreu na reformulação do arcabouço fiscal.

No campo econômico, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, busca equilibrar a responsabilidade fiscal com as demandas sociais, em um contexto de alta volatilidade nos mercados e pressões de diferentes grupos de interesse. A meta de déficit zero estabelecida pelo governo gerou atritos com alas mais desenvolvimentistas da administração, que defendem maior investimento público como motor do crescimento. Em 2024, o PIB brasileiro cresceu 3,4%, um desempenho acima das expectativas iniciais, enquanto a taxa de juros permaneceu elevada, inibindo o consumo e o investimento produtivo. Como enfatizava a economista Maria da Conceição Tavares, “ninguém come PIB, come alimentos”, ressaltando a importância de políticas que atendam às necessidades básicas da população, especialmente diante da alta inflação dos alimentos, que continua pressionando os mais pobres. O avanço de pautas como a reforma tributária e a ampliação de programas sociais, como o Bolsa Família, enfrenta resistência tanto de setores empresariais quanto de políticos ligados ao agronegócio e ao rentismo financeiro.

O governo Lula também enfrenta desafios significativos em sua estratégia de comunicação, impactando diretamente sua relação com a população e sua imagem pública. É evidente que há uma falta de identidade na comunicação governamental, o que contribui para a queda na aprovação do presidente. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, reconheceu que o governo se comunica mal, mas expressou confiança de que o ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Sidônio Palmeira, conseguirá reverter esse cenário até meados do ano.

Paralelamente, a extrema direita tem utilizado as redes sociais como ferramentas eficazes para disseminar suas ideias, frequentemente se beneficiando de algoritmos que priorizam conteúdos com alto potencial de engajamento, como discursos polarizadores e sensacionalistas. Um exemplo notório desse desafio comunicacional foi a polêmica em torno da suposta taxação de transações via Pix. Informações falsas circularam nas redes sociais, sugerindo que o governo implementaria impostos sobre o uso do Pix, gerando confusão e preocupação entre os usuários. Estudos indicam que essas plataformas se tornaram espaços de criação e fortalecimento de “bolhas informativas”, onde usuários interagem predominantemente com conteúdos que reforçam suas convicções, limitando o debate plural e favorecendo narrativas alinhadas à extrema direita.

No cenário internacional, a relação do governo brasileiro com as big techs também tem sido conturbada. Em setembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão da rede social X no país devido ao descumprimento de ordens judiciais relacionadas à disseminação de notícias falsas e ataques à democracia. O proprietário da plataforma, Elon Musk, retirou seus representantes legais no Brasil, intensificando a polarização política no país.

Esses fatores combinados – a crise na comunicação governamental, o fortalecimento da extrema direita nas redes sociais e as tensões com as big techs – criam um ambiente desafiador para o governo Lula. A administração precisa urgentemente reformular sua estratégia de comunicação para reconectar-se com a população e enfrentar as influências externas que moldam o debate público no país. Mas não basta. Problemas na comunicação quase sempre revelam insuficiências mais profundas no terreno político. Só se comunica bem se há um conteúdo de forte apelo público a se propagar.

Na política externa, Lula tem tentado reposicionar o Brasil como um ator relevante no cenário internacional, apostando na reaproximação com o BRICS e na construção de uma diplomacia ativa no Sul Global. Seus discursos em fóruns internacionais enfatizam a necessidade de uma governança global mais equitativa rumo ao fortalecimento de uma multilateralidade global. No entanto, a prática diplomática do governo revela contradições.

O Brasil condenou a violência em Gaza e tem uma posição histórica em favor da criação de um Estado palestino, mas hesita em adotar medidas concretas contra Israel, como sanções ou o rompimento de acordos comerciais. Da mesma forma, Lula criticou as sanções econômicas impostas à Venezuela e reafirmou o apoio ao diálogo político no país vizinho, mas evitou um confronto mais direto com os Estados Unidos e a União Europeia sobre o tema. Contudo, também apresentou contradições em relação ao pleito presidencial venezuelano realizado ano passado, chegando a “exigir” as atas das eleições para garantir maior transparência, ato que fere o princípio da não-intervenção, ao mesmo tempo que vetou a entrada da Venezuela no BRICS Plus. A atitude gerou dúvidas sobre a coerência de sua postura. Essa estratégia cautelosa levanta questionamentos sobre até que ponto o governo conseguirá imprimir uma marca transformadora na política externa, especialmente diante das pressões do agronegócio e de setores empresariais que dependem do comércio com países do Norte Global.

Com isso, o terceiro mandato de Lula se desenha como um constante jogo de equilíbrios, no qual cada decisão exige cálculos cuidadosos para evitar desgastes excessivos. A correlação de forças adversa impõe limites concretos à capacidade do governo de implementar sua agenda, tanto no plano interno quanto no cenário internacional, devido à política de não enfrentamento. No campo econômico, a política monetária segue como fator de tensão. Embora Roberto Campos Neto tenha deixado a presidência do Banco Central, sua gestão legou marcas na condução da política monetária, com a manutenção de juros elevados que restringiram o crescimento e aumentaram o custo da dívida pública. Seu sucessor, Gabriel Galípolo, enfrenta o desafio de equilibrar os interesses do governo e do mercado financeiro, que continua pressionando por um ajuste fiscal rigoroso.

No cenário internacional, a dependência econômica do Brasil em relação a mercados como China, Estados Unidos e União Europeia limita a margem de manobra da política externa, tornando mais desafiador o esforço de projetar o país como líder do Sul Global. A dúvida que permanece é se essa abordagem pragmática, diante dessas forças em disputa, será suficiente para consolidar um legado de mudanças substanciais ou se resultará em um governo marcado por avanços pontuais, mas sem grandes transformações estruturais.

O enfrentamento de Petro e Sheinbaum

Enquanto Lula busca equilíbrio e evita confrontos, alguns de seus colegas latino-americanos adotam posturas mais firmes contra as pressões externas. Gustavo Petro, presidente da Colômbia, desafiou abertamente os Estados Unidos ao revogar a permissão para que duas aeronaves militares americanas, transportando colombianos deportados, pousassem em território colombiano. Essa decisão gerou uma crise diplomática significativa, levando o presidente dos EUA, Donald Trump, a anunciar tarifas de 25% sobre produtos colombianos e a suspender a emissão de vistos para cidadãos colombianos. No entanto, após uma carta aberta de Petro no X e intensas negociações, o presidente colombiano recuou, permitindo a entrada dos voos e disponibilizando o avião presidencial para repatriar os cidadãos deportados, o que suscitou críticas internas sobre sua gestão da crise. Trump, por sua vez, também recuou, suspendendo as tarifas e restabelecendo as condições anteriores.

No cenário interno, Petro obteve uma vitória significativa ao conseguir a aprovação, pela Câmara dos Representantes, de sua reforma do sistema de saúde, algo nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. A reforma, que visa transformar o sistema médico colombiano eliminando intermediários financeiros e garantindo acesso equitativo à saúde, foi aprovada por 90 votos favoráveis e 28 contrários. Este avanço legislativo é marcante para o governo Petro, que enfrenta desafios devido à minoria no Congresso. A proposta agora segue para o Senado, onde passará por dois turnos de votação.

Já Claudia Sheinbaum, presidente do México e sucessora de Andrés Manuel López Obrador, se contrapôs diretamente às ameaças de Donald Trump de impor tarifas sobre exportações mexicanas. Em resposta, Sheinbaum adotou uma postura firme, convocando uma mobilização nacional contra a interferência dos EUA e declarando que “uma tarifa será seguida por outra em resposta”, rejeitando as ameaças do republicano.

Sua resposta enérgica conquistou apoio popular e a fortaleceu internamente como uma líder independente. Além disso, Sheinbaum manteve uma abordagem diplomática, enfatizando a importância do diálogo e do respeito mútuo entre as nações, o que resultou na suspensão temporária das tarifas e em uma manifestação de unidade nacional no Zócalo, a praça central da Cidade do México, com a participação de dezenas de milhares de pessoas.

Esses exemplos ilustram como líderes latino-americanos estão adotando diferentes estratégias para lidar com as pressões externas, variando entre confrontos diretos e negociações diplomáticas, conforme buscam preservar a soberania nacional e atender às expectativas de seus respectivos eleitorados.

Entre a moderação e o confronto

A correlação de forças é um fator determinante na definição das ações e estratégias de qualquer governo, especialmente para aqueles de viés progressista. No Brasil, o governo de Lula tem optado por uma abordagem moderada, priorizando o diálogo e o não enfrentamento como formas de garantir a governabilidade. Essa estratégia visa evitar confrontos diretos com setores conservadores, como o Centrão e os aliados da extrema direita, bem como com potências internacionais que, muitas vezes, impõem desafios ao Brasil. Ao adotar essa postura, Lula tenta equilibrar as pressões internas com a necessidade de manter a estabilidade política e econômica do país. No entanto, essa abordagem, embora eficaz em termos de evitar rupturas drásticas, também implica a renúncia a enfrentamentos mais diretos que poderiam resultar em mudanças mais rápidas ou profundas.

Em contraste, como vimos, líderes como Petro e Sheinbaum têm mostrado que é possível adotar uma postura mais firme e assertiva, sem comprometer a estabilidade interna. Seus exemplos indicam que, em alguns contextos, uma estratégia de confronto controlado pode não apenas manter a estabilidade, mas também fortalecer a liderança interna e a posição internacional de um governo progressista.

O desafio para Lula, portanto, reside em encontrar um equilíbrio delicado entre pragmatismo e assertividade. Ao evitar confrontos diretos, o mandatário assegura a governabilidade e mantém a coalizão que sustenta seu governo, mas corre o risco de que essa lógica conciliatória limite sua margem de ação, comprometendo até mesmo medidas emergenciais para reverter o quadro econômico atual. Mais do que a construção de um projeto estratégico de longo prazo, o que está em xeque é a capacidade de manter a iniciativa política até as próximas eleições.

Nesse cenário, as mobilizações do último domingo (30), convocadas por frentes como a Povo sem Medo e a Brasil Popular, além de centrais sindicais como a CUT e a UGT, demonstram a pressão crescente sobre o governo para não ceder diante da ofensiva bolsonarista em torno da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro. Com sua maior concentração em São Paulo, onde os manifestantes passaram pelo antigo DOI-CODI para reforçar a memória da repressão ditatorial, os atos simbolizaram não apenas a defesa da democracia, mas também um alerta contra a reincidência de forças golpistas.

Enquanto isso, o bolsonarismo segue mobilizado, testando os limites da institucionalidade e buscando consolidar sua narrativa sobre o 8 de janeiro. A crescente adesão de setores do Centrão à discussão sobre anistia mostra que o curto prazo não apenas define a correlação de forças, mas pode ter impactos duradouros sobre a estabilidade do governo e a solidez das instituições democráticas. O jogo está sendo jogado — e a disputa por sua condução está nas ruas tanto quanto nos corredores do Congresso.

 

 

Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/lula-e-a-politica-do-nao-enfrentamento/

 

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