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O Movimento Anti-Anti-Apartheid

A adesão de Donald Trump e Elon Musk aos mitos de extrema direita sobre o governo “antibranco” da África do Sul é parte de uma tentativa descarada de construir uma internacional da branquitude que vai de Pretória a Washington, passando por Tel Aviv.

Por: Richard Pithouse | Tradução: Pedro Silva | Crédito Foto: Gregory Fullard via Unsplash. Um lambe-lambe de Nelson Mandela em Joanesburgo, 2020.

Overão em Joanesburgo tem sido chuvoso e muitas vezes cinzento. A chuva continuou até o início do outono, com os dias começando a esfriar. Na última sexta-feira de março, os escritórios da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem (CCMA) estavam aquecidos e aconchegantes enquanto as pessoas voltavam para casa, refrescadas pela chuva. Fundada em 1996, nos dias ensolarados de primavera que se seguiram ao apartheid, a instituição foi uma das grandes conquistas do movimento sindical que se fortaleceu ao longo das décadas de 1970 e 1980.

Qualquer pessoa que tenha sido vítima de discriminação no local de trabalho, de práticas trabalhistas injustas ou demissão sem justa causa pode abrir um processo aqui. Os casos são ouvidos por comissários, muitos deles ex-sindicalistas. Você não precisa de advogado. No local de trabalho, o poder dos chefes de intimidar e exaurir os trabalhadores pode ser esmagador. Aqui, esse poder é suspenso; qualquer trabalhador pode enfrentar seu chefe em pé de igualdade.

Começando pelos seguranças na entrada, todos no CCMA são prestativos e acolhedores. As pessoas que aguardam a convocação para suas audiências vêm de todas as raças em que os sul-africanos foram categorizados sob o apartheid. O mesmo vale para os comissários que entram para começar o dia. Todos que aguardam para serem ouvidos sentem que sofreram algum tipo de injustiça no trabalho. Muitos foram demitidos, o que é sempre uma experiência devastadora. O clima, no entanto, é animado. Pessoas de diferentes idades, classes sociais e raças conversam.

O primeiro caso é chamado para conciliação, o passo inicial no processo da CCMA. Chegou à CCMA porque o chefe, que passou a maior parte da vida trabalhando nos Estados Unidos, parece decidido a se recusar a entender que a África do Sul possui leis e instituições trabalhistas para proteger os trabalhadores contra ilegalidades. Em vez de enviar um representante, ele mandou um advogado. O comissário não está impressionado. O assunto agora seguirá direto para a arbitragem. Se o chefe continuar tentando obstruir o processo, uma conclusão será tomada. Sua arrogância se esgotará nestes escritórios modestos, mas acolhedores.

A Palavra de Joanesburgo

Do lado de fora fica Joanesburgo. O CCMA fica na Fox Street. A Biblioteca Municipal fica a poucos quarteirões de distância. Ela estava tão deteriorada devido à negligência e à corrupção que foi fechada em 2020. No mês passado, após uma campanha para exigir sua restauração e reabertura, o acesso público ao andar térreo foi liberado. Um pouco mais adiante fica a Galeria de Arte, que também está em grave estado de abandono — o telhado está com vazamentos, as paredes estão danificadas pela água, e há lama e lixo espalhados pelo prédio. Não se sabe quanto de seu acervo já foi danificado ao ponto de não haver possibilidade de recuperação.

A Rua Albert fica mais perto, a apenas um quarteirão de distância. Em agosto de 2023, 76 pessoas amontoadas em um prédio no número 52 da Rua Albert, vivendo em condições extremamente inseguras, perderam a vida em um incêndio. Suas vidas foram ceifadas pelo que Ruthie Wilson Gilmore chama de “abandono organizado”. Os assentamentos de barracos nos lixões pós-industriais tóxicos da periferia de Joanesburgo sofrem o mesmo abandono. Em alguns dos municípios, o descaso é vivenciado visceralmente, com o cheiro onipresente de plástico queimado e pilhas de lixo fumegante não recolhido pontilhando as laterais das ruas há muito destruídas.

Nem tudo é desanimador. A cena de jazz da cidade é fabulosa. Além do centro, os parques, com suas trilhas salpicadas de blocos de quartzo branco, estão verdejantes depois de toda a chuva. Há universidades vibrantes, uma mistura de restaurantes e casas noturnas e uma energia urbana intensa. As ruas dos antigos subúrbios, fortificadas pela primeira vez na década de 1980, são de tirar o fôlego em outubro, quando os jacarandás florescem. Em julho, quando as babosas estão em plena floração, seu laranja queimado brilhando contra a grama seca e marrom dá o toque de um tipo diferente de beleza.

Além desses subúrbios, a vida da classe média é frequentemente vivida em um inferno pós-urbano de condomínios fechados e shoppings construídos às pressas e implacavelmente feios. É um vasto e privatizado caos arquitetônico e social que se estende até a metade do caminho para Pretória. Hoje em dia, essas ruas onde mora a classe média também estão deterioradas. Buracos viraram valas, às vezes sumidouros. Os apagões regulares que se tornaram rotina em 2008 diminuíram, mas nos últimos anos a distribuição de água também se tornou instável. Não é incomum ficar mais de uma semana, ou às vezes duas, sem água.

Muitas ruas não têm mais iluminação pública. Semáforos frequentemente apresentam defeitos. Famílias de classe média há muito tempo pagam por planos de saúde, educação e segurança privados. Agora, com o aumento massivo dos custos dos serviços e taxas municipais, muitos estão em dificuldades financeiras. Isso frequentemente afeta famílias negras, que têm muito mais probabilidade de ter que cuidar de parentes em dificuldades, de forma particularmente difícil.

Desde os anos da presidência de Jacob Zuma, Joanesburgo tem sido governada por pessoas com pouca noção da coisa pública. Houve oportunismo, posturas grosseiras e pilhagem direta da riqueza pública. A cidade está em evidente e rápida decadência. Todos sofrem. Muitas pessoas sentem tristeza, raiva ou resignação. Mas aqueles que mais sofrem vivem em lugares como a Rua Albert, 52, ou nos arredores da cidade, como o denso bairro de barracos Good Hope, a leste. A cidade é cercada em todos os três lados pelos restos tóxicos do passado industrial da cidade: um depósito de rejeitos de mineração, um ferro-velho envolvido pela ferrugem e uma rua movimentada.

Em toda a África do Sul, as pessoas que mais sofrem com uma economia atolada em anos de estagnação e austeridade são, em sua esmagadora maioria, negras. Mais de 70% dos sul-africanos negros são classificados como pobres, enquanto a taxa para brancos é de pouco mais de 4%. O desemprego entre negros é de pouco menos de 40%, enquanto menos de 8% dos brancos estão desempregados. A renda familiar média de uma família branca é cerca de cinco a seis vezes maior do que a de uma família negra média. Os brancos, cerca de 7% da população, possuem cerca de 70% das terras agrícolas comerciais. O branco médio é mais rico hoje do que durante o apartheid.

Além da crise de desemprego estrutural e empobrecimento, acompanhada de fome endêmica, a África do Sul também é um país terrivelmente violento. Ninguém está totalmente seguro, nas cidades ou no campo, mas as pessoas em maior risco são, de longe, e sempre, os negros empobrecidos. Quando a direita branca — agora imensamente encorajada pelo apoio entusiasmado de Donald Trump e Elon Musk — afirma que os brancos estão sendo especificamente visados, ela está mentindo ou se recusando deliberadamente a confrontar sua paranoia racial com a realidade.

Os custos da dominação

AÁfrica do Sul do Apartheid era uma democracia herrenvolk, embora com limites claros, para os brancos. Na década de 1980, dizia-se frequentemente que o sistema proporcionava aos brancos padrões de vida equivalentes aos do Canadá, enquanto os negros viviam no padrão do Gabão. Nunca se tratou apenas dos benefícios materiais concedidos aos brancos em detrimento da opressão negra; os brancos também recebiam o que WEB Du Bois chamou de “salário da branquitude” psicológico, os perversos confortos e prazeres psíquicos de serem considerados especiais, superiores aos outros.

Mas o sistema também acarretou custos para os brancos. Como escreveu Aimé Césaire, o colonialismo sempre atua para “descivilizar o colonizador”, para “brutalizá-lo no verdadeiro sentido da palavra”. Na África do Sul do apartheid, muitas obras de música, cinema e literatura foram proibidas. Era uma sociedade dilacerada pela homofobia e pelo sexismo, reproduzida por um sistema escolar sádico que exigia conformidade. Exigia o recrutamento militar para reprimir a luta em casa e continuar a guerra em Angola. Alguns dos brancos que cruzaram as linhas traçadas foram afastados da vida pública, sofreram censura e foram presos, torturados, encarcerados ou mortos.

A democracia que se seguiu ao apartheid ofereceu muito mais liberdade aos brancos do que sob o antigo sistema. Os brancos desfrutaram de plena liberdade política, incluindo igualdade para mulheres e gays, pela primeira vez. Eles foram plenamente incluídos nas conquistas democráticas, como a criação da CCMA. Nenhum branco foi convocado para lutar em uma guerra, privado do direito de amar ou casar com quem quisesse, ou impedido de falar livremente de acordo com sua consciência.

Não há presos políticos brancos. Nenhuma pessoa branca foi morta pela polícia ou assassinada em decorrência de suas convicções ou ações políticas. Quando pessoas brancas foram assassinadas — ou sobreviveram a tentativas de assassinato — pelas máfias políticas que se espalharam pelo Estado e pelo setor empresarial durante os anos Zuma, nunca foi por serem brancas. Muito mais pessoas negras sofreram o mesmo destino.

As pessoas que, na prática, são excluídas do pleno acesso às liberdades garantidas por lei são pessoas negras empobrecidas. Não se trata apenas de negligência. Há repressão ativa. A polícia e outras forças do Estado matam pessoas em protestos, greves e durante despejos, enquanto assassinos ligados às elites locais frequentemente matam ativistas políticos.

É verdade que Julius Malema, do Economic Freedom Fighters [Combatentes da Liberdade Econômica] (EFF), periodicamente faz declarações ameaçadoras e retoricamente violentas sobre pessoas brancas. Agora que Musk começou a compartilhá-las no X, Malema provavelmente intensificará essa retórica. Ele nunca foi um populista amplamente reconhecido pela população; seu partido está se fragmentando e seu apoio, sempre limitado, em rápido declínio.

É inevitável que alguns brancos achem isso alarmante. Mas as pessoas que estão sujeitas à hostilidade aberta e implacável dos políticos e da mídia no centro da vida pública são migrantes da Ásia e de outras partes da África. A África do Sul tornou-se uma sociedade predominantemente xenófoba, na qual a expressão constante da xenofobia está ligada à violência do Estado e da multidão contra migrantes.

Qualquer preocupação genuína com a retórica irresponsável deveria começar aqui, mas a direita branca não tem interesse nisso. Sua reivindicação não é que o discurso na África do Sul se conforme às normas democráticas — ela quer que os brancos sejam tratados como especiais, que recebam consideração única mesmo quando suas injúrias são imaginárias e sua paranoia, irracional, e que, para usar outra frase de du Bois, a branquitude continue a significar “a posse da Terra para todo o sempre”.

Paranoia liberal branca

Nos anos pós-apartheid, os principais intelectuais da opinião branca — frequentemente ligados à Aliança Democrática, o partido liberal dominado por brancos, e calorosamente recebidos pela mídia branca — estavam mais comumente baseados em ONGs e think tanks corporativos e financiados pelo Ocidente do que em universidades. Eles condenavam as alegações abertas de superioridade branca como retrógradas e imorais. A maioria falava inglês e continuava com o velho hábito inglês de fingir que tais opiniões sempre foram domínio dos africâneres.

Falando com serena autoconfiança, eles afirmavam a absoluta superioridade moral do liberalismo sobre o nacionalismo africâner e africano — e, claro, sobre o socialismo. Esse sentimento de superioridade era frequentemente expresso como um alinhamento com os valores e a democracia ocidentais, e às vezes se estendia a uma afirmação direta da superioridade da civilização ocidental.

A insistência de que a supremacia branca se limita ao passado, quando pessoas brancas influentes afirmavam seu direito de estabelecer os padrões da autoridade pública em nome da superioridade do Ocidente, é um truque já conhecido. Falando no primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris, em 1956, Frantz Fanon observou que o racismo “que aspira a ser racional” pode deixar de ser “fenotipicamente determinado” e ser “transformado em racismo cultural. O objeto do racismo não é mais o homem individual, mas uma certa forma de existir”, uma reivindicação da superioridade dos “valores ocidentais”.

Apoiado pelo capital branco e por governos e doadores ocidentais, o liberalismo branco mostrou-se altamente eficaz em reivindicar para si um status privilegiado como ator democrático. A fusão de “sociedade civil” com ONGs — e a presunção de que as ONGs gozavam de maior legitimidade democrática do que governos eleitos — foi particularmente útil, assim como as repetidas afirmações da virtude radiante da mídia branca.

Desde o início, o desprezo do establishment liberal branco pelas aspirações africanas de autonomia política foi indisfarçável. Quando o presidente Thabo Mbeki se posicionou ao lado de Jean-Bertrand Aristide, do Haiti, em Porto Príncipe, no dia de Ano Novo de 2004, para marcar o bicentenário da Revolução Haitiana, ele foi amplamente criticado pela opinião liberal branca. Quando Mbeki posteriormente acolheu Aristide na África do Sul, após o golpe apoiado pelos EUA no final de fevereiro, os ataques se transformaram em frenesi. Os atos de solidariedade de Mbeki foram alegremente apresentados como corruptos, iludidos e autoritários por pessoas brancas com absoluta confiança em sua acuidade moral superior.

Quando a África do Sul adotou o que chamou de postura “não alinhada” em resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia no início de 2022 e, em seguida, iniciou um processo contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ) no final de 2023, a opinião pública liberal branca frequentemente se mostrou histérica. Exigências estridentes foram emitidas para que a África do Sul se aliasse acriticamente ao Ocidente como uma necessidade moral — e também estratégica.

Ray Hartley e Greg Mills, da influente Fundação Brenthurst, que inclui Richard Myers, ex-presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA, em seu conselho, escreveram que a “ação da África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça expôs o Congresso Nacional Africano […] O partido no poder claramente não é amigo dos valores liberais”. James Myburgh, editor do jornal liberal Politicsweb, declarou que “a África do Sul ressuscitou o hitlerismo em Haia”, enquanto Nicholas Woode-Smith, uma jovem estrela em ascensão nos círculos liberais sul-africanos, disse que o caso do TIJ fez da África do Sul “motivo de chacota entre as nações que importam no mundo”.

O liberalismo branco exige ser reconhecido como um raciocínio perfeito, mas não teve escrúpulos em veicular alegações histéricas e infundadas durante esse período. Afirmou-se repetidamente que o Irã havia subornado o CNA para levar Israel ao CIJ. A crítica baseada em princípios ao apaziguamento do Ocidente em relação ao genocídio foi denunciada como uma conspiração russa ou chinesa. Esse tipo de liberalismo conquistou forte presença na esfera pública sul-africana, conquistando a atenção dos governos ocidentais e ajudando a mudar negativamente a percepção da África do Sul no meio liberal global.

Em fevereiro de 2024, a Lei de Revisão das Relações Bilaterais EUA-África do Sul foi apresentada com apoio bipartidário na Câmara dos Representantes. Ela exigia que o presidente determinasse se as posições da África do Sul em política externa estavam minando a segurança nacional ou os interesses da política externa dos EUA; como afirmou o congressista John James, a justificativa era que “a África do Sul vem construindo laços com países e atores que minam a segurança nacional dos Estados Unidos e ameaçam nosso modo de vida”. A paranoia e a indignação dos liberais brancos na África do Sul chegaram a Washington.

A bolha branca

Mas a direita branca, com suas raízes no nacionalismo africâner — um projeto outrora alinhado aos nazistas — é um animal bem diferente. À medida que a África do Sul caminhava em direção à democracia no início da década de 1990, houve resistência aberta — e, às vezes, armada — da direita africâner. Esse projeto fracassou, e a maioria dos africâneres seguiu em frente, mas partes da antiga extrema direita se reagruparam.

Em 2001, um sindicato branco de mineradores que lutava para confinar trabalhadores negros aos cargos mais mal pagos e exploradores mudou seu nome para Solidariedade. Sob a liderança de Flip Buys, membro do partido linha-dura pró-apartheid Konserwatiewe durante os últimos anos do regime, o Solidariedade transformou-se na base de algo maior. Hoje, administra escolas, colégios técnicos, um Ministério Público privado, projetos de mídia e até uma universidade, prestando serviços como parte de um projeto político para construir um enclave branco, proteger os privilégios brancos e construir um sistema paralelo ao restante da África do Sul.

Essa forma de política de direita branca, especificamente africâner, não buscou se tornar hegemônica na esfera pública ou na sociedade civil nacional, nem construir relações com as elites liberais do Ocidente. Os “liberais clássicos” estavam em casa com a Friedrich-Naumann-Stiftung für die Freiheit (Fundação Friedrich Naumann para a Liberdade), o National Endowment for Democracy [Fundação Nacional para a Democracia] ou na reunião mensal “On the Rocks and Off the Record” [Whisky com Gelo e Conversa Fiada], para editores, realizada no Consulado dos EUA na Cidade do Cabo. A ala de “direitos civis” do Solidariedade, o AfriForum, alinhou-se em um eixo muito diferente e cultivou laços com a extrema direita global, incluindo o movimento MAGA. Sua mensagem é que os sul-africanos brancos são uma minoria oprimida, sob ataque de um governo negro de extrema esquerda por meio da violência política, da reforma agrária e da ação afirmativa. A alucinação totalmente paranoica de um “genocídio branco” tem sido um ponto-chave de conexão com a direita branca nos EUA e na Europa.

Um avanço significativo para a direita africâner ocorreu em maio de 2018, quando o vice-presidente executivo do AfriForum, Ernst Roets, foi entrevistado por Tucker Carlson. Trump respondeu com um tuíte declarando que seu governo investigaria “apreensões e expropriações de terras e fazendas, além do assassinato em larga escala de agricultores”. Não houve apreensões de terras rurais apoiadas ou organizadas pelo Estado. Houve e ainda há ocupações de terras urbanas auto-organizadas em andamento, mas elas não são toleradas, muito menos apoiadas, pelo governo e são frequentemente enfrentadas com violência brutal por parte do Estado. Agricultores brancos corriam risco de violência, mas pela simples razão de que todos na África do Sul correm, em graus variados, risco de violência.

Com o retorno de Trump ao poder, a estratégia do AfriForum deu resultados espetaculares. Em fevereiro de 2025, Trump assinou um decreto intitulado “Abordando Ações Escandalosas da República da África do Sul”, que suspendeu ajudas enviadas ao país e propôs priorizar o status de refugiado para africâneres brancos, citando “violações de direitos” e alegando que a África do Sul estava “minando a política externa dos Estados Unidos”. Dias depois, quando o financiamento do PEPFAR — que apoia programas de HIV, centros de refugiados e pesquisas — foi cortado, a África do Sul acabou duramente atingida.

Em 6 de fevereiro, Marco Rubio anunciou que não compareceria à reunião de ministros das Relações Exteriores do G20 em Joanesburgo, condenando o compromisso da África do Sul com “solidariedade, igualdade e sustentabilidade” com pautas como “políticas inclusivas e mudanças climáticas”. Em 14 de março, Rubio declarou o embaixador sul-africano, Ebrahim Rasool, persona non grata, descrevendo-o como um “político que promove a incitação ao racismo e odeia os Estados Unidos e o presidente Donald Trump”.

Em 2 de abril, quando Trump anunciou tarifas abrangentes sobre importações de países de todo o mundo, a África do Sul foi duramente atingida novamente — desta vez com uma tarifa punitiva de 31%. No dia seguinte, dois projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Representantes: a reintrodução da Lei de Revisão das Relações Bilaterais EUA-África do Sul e a chamada “Lei Afrikaner”.

Desta vez, o projeto de lei de Revisão das Relações Bilaterais foi mais agressivo, incluindo disposições para sanções específicas contra autoridades do CNA — algo que alguns liberais brancos na África do Sul vinham pedindo abertamente — e oferecendo status de refugiado a “residentes da África do Sul que sejam membros do grupo minoritário caucasiano e tenham sido perseguidos que ou tenham um medo fundado de perseguição”.

Revanchismo

Trump nunca escondeu seu racismo. Ao descer da escada rolante dourada das Trump Towers para lançar sua campanha presidencial em 2015, ele deixou claro que seu projeto político se basearia na desumanização dos migrantes do Sul Global, começando com a declaração de que os migrantes mexicanos eram “estupradores” e “traficantes de drogas”. Em uma reunião no Salão Oval em janeiro de 2018, Trump perguntou: “Por que precisamos de mais haitianos? Tirem-nos daqui”, e depois: “Por que queremos todas essas pessoas da África aqui? São países de merda”. Ele concluiu: “Deveríamos ter mais pessoas de lugares como a Noruega”.

Durante uma reunião na Casa Branca em maio, ele se referiu aos migrantes como “animais” — linguagem que ele repetiria de forma ainda mais agressiva durante a preparação para a próxima eleição, dizendo que os migrantes “não eram humanos” e, por fim, declarando que os migrantes estavam “envenenando o sangue do nosso país”.

Duas semanas após seu segundo mandato, em 7 de fevereiro de 2025 — poucos dias após iniciar deportações em massa de residentes americanos da América Latina e do Caribe — Trump anunciou que os africâneres deveriam ser acolhidos nos Estados Unidos como refugiados. O duplo padrão racista em jogo não poderia ser mais explícito ou grosseiro: os haitianos devem ser expulsos pela porta dos fundos, enquanto os africâneres são acolhidos na linha de frente.

Os sul-africanos brancos que acolheram isso, sejam eles nacionalistas africâneres ou liberais anglófonos, são participantes diretos do revanchismo racial aberto que constrói uma nova e descarada internacional branca. Eles não pedem proteção para uma minoria ameaçada. Exigem que uma minoria ainda privilegiada tenha seu status privilegiado formalmente confirmado, que a branquitude seja santificada e sua paranoia seja satisfeita.

Se fossem pessoas decentes, aspirariam a ser nada mais nada menos do que cidadãos entre outros cidadãos. Estariam trabalhando com todos os outros sul-africanos para construir uma sociedade justa e pacífica para todos, uma sociedade na qual todos estivessem seguros e pudessem prosperar. Eles não são pessoas decentes, e suas mentiras “inofensivas” têm consequências gravíssimas.

 

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/06/o-movimento-anti-anti-apartheid/