Malcolm X desafiou a violência do poder dos EUA, tanto no exterior quanto internamente. Donté Stallworth escreve na Jacobina sobre como o internacionalismo radical dele, do Congo à Palestina, dialoga com o momento atual.
Por: Donté L. Stallworth | Tradução: Pedro Silva | Crédito Foto: Robert Elfstrom / Villon Films / Gety Images. Malcolm X no Lenox Hotel, Boston, Massachusetts, 1964.
Asemana passada marcou o centenário de el-Hajj Malik el-Shabazz — conhecido mundialmente como Malcolm X. Ao celebrarmos seu legado, precisamos ir além da caricatura do revolucionário negro raivoso frequentemente retratada nas narrativas tradicionais. O verdadeiro Malcolm foi um visionário cuja transformação radical chocou e inspirou o mundo.
Sua jornada da Nação do Islã e do separatismo negro para um revolucionário global comprometido com o anti-imperialismo e a solidariedade com os povos oprimidos em todos os lugares oferece lições profundas para nós hoje. A evolução de Malcolm não foi apenas política — foi espiritual e intelectual. Inicialmente, ele foi moldado pela ênfase da Nação do Islã na autossuficiência e na separação racial.
Segundo relatos populares, em 1964, após romper com a Nação, Malcolm passou por uma profunda transformação. Sua peregrinação à Meca, onde rezou com muçulmanos de todas as raças, o levou a abraçar uma visão mais inclusiva de solidariedade.
No entanto, na realidade, o compromisso de Malcolm X com a solidariedade global começou muito antes de sua peregrinação. Criado em uma família garveyista, ele absorveu os ideais pan-africanos de seus pais, que eram ativos na Associação Universal para o Progresso Negro. Essa formação inicial influenciou suas viagens pela África e pelo Oriente Médio em 1959, onde aprofundou sua compreensão das lutas anti-imperialistas. O assassinato de Patrice Lumumba, em 1961, aguçou ainda mais sua crítica à política externa dos EUA. No mesmo ano, Malcolm fundou o Muhammad Speaks, um jornal baseado na política internacionalista e na libertação negra, como parte de uma luta global contra o colonialismo e o império.
Em setembro de 1964, Malcolm X visitou Gaza, então sob administração egípcia. Durante a visita, conheceu o poeta palestino Harun Hashim Rashid, que relatou ter escapado por pouco do massacre de Khan Yunis em 1956, onde as forças israelenses mataram 275 palestinos. O poema de Rashid “Devemos Retornar”, que Malcolm transcreveu em seu diário, transmitiu com força o espírito duradouro da resistência palestina e a luta universal contra a opressão colonial.
Ao longo de suas viagens pela África e pelo Oriente Médio, Malcolm conheceu revolucionários que lutavam contra o colonialismo e governos autoritários apoiados pelos EUA. Esses encontros confirmaram o que ele já suspeitava: os Estados Unidos não eram uma democracia — eram um império.
“Não é possível haver capitalismo sem racismo”, disse Malcolm ao público no Militant Labor Forum em 1964.
Ele observou que a exploração de pessoas negras nos Estados Unidos não era uma exceção, mas parte de um padrão global mais amplo — que conectava o Harlem ao Congo, o Mississippi à Palestina e o gueto estadunidense a todas as nações colonizadas que resistiam à dominação imperial. “A mesma rebelião, a mesma impaciência, a mesma raiva que existe nos corações das pessoas negras na África e na Ásia”, disse ele, “existe nos corações e mentes de 20 milhões de pessoas negras neste país”.
Malcolm classificou a política externa dos EUA pelo que ela era: violenta, racista e imperialista. Ele se opôs ao governo estadunidense não apenas pela forma como tratava os negros estadunidenses, mas também pela forma como desestabilizava e dominava outras nações. Denunciou o envolvimento da CIA em assassinatos e golpes na África e na América Latina. Expôs o apoio dos EUA ao apartheid na África do Sul. E denunciou a hipocrisia de uma nação que alegava defender a liberdade no exterior enquanto a negava em casa.
Hoje, sua crítica continua devastadoramente precisa.
Os alertas de Malcolm ecoaram o apoio contínuo dos Estados Unidos aos bombardeios israelenses em Gaza — onde famílias inteiras são soterradas sob escombros com armas estadunidenses. A desumanização dos palestinos, retratados como terroristas em vez de um povo sitiado, reflete a mesma propaganda que Malcolm denunciou quando negros estadunidenses foram criminalizados por resistirem à violência sistêmica. Assim como Malcolm expôs os dois pesos e duas medidas da política dos EUA — direitos humanos para alguns, ocupação para outros —, as atrocidades em massa atuais em Gaza sublinham a mesma lógica imperial contra a qual ele passou a vida lutando.
Vemos isso na ocupação militar e na desestabilização do Haiti, onde governos apoiados pelos EUA deixaram o país mergulhado no caos. E vemos isso no orçamento de defesa de quase US$ 1 trilhão que alimenta guerras com drones, golpes e centenas de bases militares ao redor do mundo, mesmo com comunidades pobres nos Estados Unidos carentes de serviços básicos e uma parcela significativa dos estadunidenses vivendo no sufoco.
No cenário interno, a análise de Malcolm X sobre o racismo sistêmico nunca foi tão relevante. Ele descreveu a polícia em comunidades negras como um exército de ocupação — linguagem ainda ecoada por ativistas após casos assassinatos cometidos por policiais, de Ferguson a Minneapolis. Malcolm também via o encarceramento em massa antes mesmo de ele ter um nome, alertando que os sistemas de punição foram concebidos para controlar e conter os negros, não para reabilitar ou proteger. “É isso que eles querem dizer quando falam em ‘lei e ordem’”, declarou. “Querem dizer que querem manter você e eu sob controle.”
Assim que Malcolm retornou aos Estados Unidos, após concluir sua peregrinação ao Hajj, em Meca, e se encontrou com líderes e intelectuais durante suas viagens pelo Oriente Médio e pela África, ele concedeu uma entrevista coletiva no aeroporto JFK. Lá, falou sobre a transformação em seu pensamento e apresentou a ideia de abordar a luta dos afro-estadunidenses como uma questão de direitos humanos, declarando que trabalharia para processar os Estados Unidos pelo tratamento dispensado aos negros.
Duas semanas depois, o diretor do FBI, J. Edgar Hoover, enviou um telegrama ao escritório do FBI em Nova York instruindo-os a “fazer algo em relação a Malcolm X”.
A mudança de Malcolm para a defesa internacional dos direitos humanos e sua crescente capacidade de construir coalizões entre ideologias e raças fizeram dele uma preocupação única e crescente para o FBI, à medida que o programa ilegal COINTELPRO se alastrava, visando líderes e grupos negros em todo o país.
O internacionalismo de Malcolm X era perigoso precisamente porque dizia a verdade. Revelava que os Estados Unidos não eram um exemplo isolado de democracia fracassada, mas o centro de um sistema global de capitalismo racial. Nesse sentido, as visões de Malcolm eram mais radicais — e mais precisas — do que as da maioria de seus contemporâneos. Mas ele não estava sozinho.
Em seus últimos anos, o Dr. Martin Luther King Jr. começou a soar mais como Malcolm — condenando a Guerra do Vietnã, o complexo militar-industrial e o capitalismo estadunidense. No discurso de King “Além do Vietnã”, de 1967, ele afirmou que Washington era “o maior provedor de violência do mundo hoje”. O Dr. King, assim como Malcolm, foi assassinado logo após articular essa crítica mais profunda ao império.
Malcolm X foi assassinado em 1965, justamente quando sua política se expandia em direção a uma visão global de solidariedade e luta revolucionária. Seis décadas depois, sua análise permanece assustadoramente relevante.
Seus alertas sobre o poder dos EUA — sua base no capitalismo racial, sua dependência da violência e seu alcance global — são confirmados em cada ataque de drones, cada assassinato policial, cada negócio bilionário de armas e cada bairro negligenciado em nosso país. Assim também é seu apelo à solidariedade global: não para reformar a máquina de opressão, mas para desmantelá-la por completo.
“Não há revolução na qual você implora ao sistema de exploração para integrá-lo a ele”, declarou ele em 1964. “Revoluções derrubam sistemas.”
Malcolm recusou-se a escolher o silêncio quando a verdade era inconveniente. Ele se posicionou ao lado dos oprimidos — do Harlem ao Congo, do Mississippi à Palestina — não para receber aplausos, mas porque a justiça assim o exigia.
“Sou a favor da verdade, não importa quem a diga. Sou a favor da justiça, não importa quem seja a favor ou contra quem”, declarou. “Sou um ser humano, antes de tudo, e, como tal, sou a favor de quem e o que quer que beneficie a humanidade como um todo.”
Seu legado não vive apenas em discursos e fotos, mas também em movimentos: na indignação global com os ataques de Israel a Gaza, na rejeição à intervenção estadunidense no Haiti e na luta contínua pela abolição e dignidade, de Rikers a Rafah. Homenagear Malcolm e ignorar essas lutas é trair a própria política que o tornou perigoso para a estrutura de poder ocidental. Ele nos ensinou que a solidariedade deve se estender além das fronteiras, além do conforto, além da propaganda — que estar ao lado dos oprimidos não é opcional, mas essencial.
Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/05/o-que-tornou-malcolm-x-perigoso/