O romancista socialista Jack London faleceu neste dia em 1916. Neste conto, ele descreve por que largou o “individualismo” selvagem, que praticava diariamente sem perceber, para abraçar o socialismo após perambular pelos EUA, ser preso e ler alguns livros.
Por Jack London/ Tradução: Alberto Alexandre Martins/ Fotografia de Bettmann / Corbis
Posso dizer que me tornei um socialista de modo bastante semelhante ao dos pagãos teutônicos quando tornaram-se cristãos – isto é, a marteladas. Não somente eu não buscava o socialismo na época da minha conversão, como estava mesmo em guerra com ele. Eu era jovem e inexperiente, não sabia nada de coisa alguma e, embora jamais tivesse ouvido falar de uma escola de nome “individualismo”, eu entoava o hino dos fortes com todo o sangue do meu coração.
Mas isso porque eu era realmente forte. Quando digo forte estou dizendo que tinha boa saúde e uma musculatura rija, possessões que são, ambas, facilmente superestimadas. Minha infância foi passada em fazendas da Califórnia, minha adolescência entregando jornais nas ruas de uma próspera cidade da costa oeste e finalmente minha juventude nas águas saturadas de ozônio da Baía de San Francisco e do Oceano Pacífico. Adorava a vida ao ar livre e trabalhava sob céu descoberto nas mais árduas tarefas. Sem aprender nenhum ofício, apenas saltando de emprego em emprego, eu olhava o mundo e abençoava cada pedacinho seu. É bom deixar claro que todo esse entusiasmo era devido ao fato de ser forte e saudável, não importunado por dores nem por fraquezas, nunca preterido pelo patrão por não ter uma aparência apropriada, sempre capaz de conseguir um emprego nas minas de carvão, nos mares ou em trabalhos manuais de qualquer espécie.
Por tudo isso, exultante em minha juventude, capaz de me sair bem em qualquer emprego e qualquer briga, eu era um individualista desenfreado. O que é muito natural. Eu era um vencedor. A partir daí passei a chamar este jogo, onde quer que o visse ou onde quer que pensasse que o visse jogado, de um jogo bastante apropriado para HOMENS. Ser um HOMEM era escrever em meu coração a palavra homem com letras maiúsculas. Arriscar-me como um homem, lutar como um homem, fazer o trabalho de um homem (mesmo que sob o salário de um garoto) – essas eram coisas que me tocavam e me mantinham vivo como nenhuma outra. Eu vislumbrava à minha frente o panorama deslumbrante de um infinito e tranqüilo futuro, no qual, representando aquele que eu acreditava ser o jogo do HOMEM, eu continuaria a viajar sempre com uma saúde inquebrantável e transpondo todos os obstáculos com os músculos sempre novos. Esse futuro, como estou dizendo, era infinito. Só conseguia me ver zanzando vida afora como uma das feras selvagens de Nietszche, espreguiçando-se amorosamente e conquistando tudo através da superioridade e da força.
Quanto aos desaventurados, aos fracos e doentes, velhos e aleijados, devo confessar que raramente pensava neles, exceto indistintamente quando sentia, às vezes, que, deixando de lado os imprevistos, eles podiam ser tão bons quanto eu e trabalhar igualmente tão bem, se eles realmente o desejassem. Imprevistos? Bem, eles representavam o DESTINO, também escrito com letras maiúsculas, e não havia modo de se escapar do DESTINO. Napoleão tinha sofrido um acidente em Waterloo, mas isso não acabava com o meu desejo de tornar-me um tardio Napoleão. Além do mais, o otimismo, gerado num estômago que podia digerir até farpas de ferro moído e em um corpo que florescia mesmo nas piores condições, não me permitia considerar os acidentes como algo sequer de longe relacionado à minha gloriosa personalidade.
Espero ter deixado bem claro que me sentia profundamente orgulhoso de ser um dos nobres cavaleiros armados da natureza. A dignidade do trabalho tornara-se para mim o fato que maior impressão me causava no mundo. Sem ter lido Kipling ou Carlyle, eu arquitetava evangelhos de trabalho que varriam os deles para as sombras. O trabalho era tudo. Purificação e salvação. O orgulho que significava para mim um dia inteiro de trabalho árduo seria inconcebível para você. É quase inconcebível para mim mesmo quando volto os olhos para trás e penso no assunto. Eu era um escravo fiel do salário através do qual o capitalista me explorava. Esquivar-me ou ludibriar o homem que me pagava o salário era um pecado, antes de tudo, contra mim e, em segundo lugar, contra ele. Para mim era um crime que vinha logo atrás de traição, mas tão ruim quanto.
Em suma, meu alegre individualismo era dominado pela ética da elite ortodoxa. Eu lia os jornais da elite, assistia os oradores da elite e urrava às tremendas superficialidades dos políticos de elite. Não duvido que, se outros acontecimentos não tivessem influenciado o curso da minha vida, eu teria me transformado num fura-greves profissional e com minha cabeça e força de trabalho esmagadas definitivamente por um porrete nas mãos de algum militante sindical.
Exatamente nessa época, após uma viagem de sete meses junto aos mastros de um navio, com dezoito anos recém-completos, entrou em minha cabeça a idéia de experimentar a vida de vagabundo. Por estradas e vagões fechados eu abri caminho, a duras penas, desde o vasto Oeste onde os homens saltavam pelos campos e os empregos caçavam os homens, até os centros congestionados do Leste, onde os homens não eram senão pequeninas batatas lutando por seus empregos com toda a força que possuíam. E nesta nova aventura selvagem me descobri encarando a vida de um ângulo inteiramente novo e diferente. Tinha escorregado do proletariado para aquilo a que os sociólogos têm mania de se referir como a “porção submersa”, e fiquei perplexo ao descobrir como essa “porção submersa” era recrutada.
Lá me deparei com todas as espécies de homens, muitos dos quais já haviam sido, uma vez, tão aptos, ousados e aventureiros quanto eu; homens do mar, homens das armas, trabalhadores, todos exaustos, comidos e desfigurados pelos esforços, asperezas e acidentes imprevistos, agora deixados de lado por seus senhores como velhos cavalos. Eu me arrastei pelas ruas e mendiguei nas portas dos fundos das casas junto com eles, sentindo os mesmos calafrios em vagões e parques da cidade, ouvindo aqui e ali histórias de vidas que tinham começado tão auspiciosas quanto a minha, com estômagos e corpos tão bons ou talvez até mais fortes que os meus e que findavam ali, ante os meus olhos, na destruição do abismo social.
E enquanto ouvia essas histórias meu cérebro começava a martelar. A mulher da rua e o homem das sarjetas aproximaram-se de mim. Eu vi a imagem do abismo social tão vivo e claro como se fosse uma coisa concreta, e no fundo do abismo então eu vi – eles e, só um pouco acima, eu próprio, agarrando-me às paredes escorregadias com todo o suor e a força de minhas unhas. E confesso que um pavor se apoderou de mim. O que aconteceria quando minhas forças faltassem? Quando fosse incapaz de trabalhar ombro a ombro com os homens mais fortes que, em comparação, eram como bebês ainda malnascidos? E uma vez ou outra eu pronunciava um solene juramento. Algo mais ou menos assim:
“Todos os meus dias trabalhei até a exaustão com meu corpo e apesar do número de dias que trabalhei, e até por isso mesmo, estou cada vez mais perto do fundo do abismo. Eu vou sair desse abismo, mas não com os músculos do meu corpo. Não vou nunca mais trabalhar como trabalhei e que Deus me fulmine se um dia eu der de mim mais do que o meu corpo pode dar. Desde então ando ocupado em escapar de qualquer trabalho duro.”
Uma vez, por acesso, enquanto percorria umas 10.000 milhas de Estados Unidos e Canadá, parei na cidade de Niagara Falls, fui capturado por um policia a procura de subornos, privado do direito de me declarar culpado ou inocente, sentenciado de uma hora para outra a 30 dias de prisão por não ter residência fixa, tampouco algum meio visível de sustento, algemado e acorrentado junto com um grupo de homens em circunstâncias similares, levado país abaixo até Buffalo, registrado na Penitenciária de Erie, o cabelo e o bigode raspados a zero, vestido com as roupas listradas de um condenado, compulsoriamente vacinado por um estudante de medicina que praticava em pessoas tais como nós, obrigado a marchar em bloco e a trabalhar sob as vistas de guardas armados com rifles e carabinas – tudo isso por aventurar-me um pouco como uma das feras selvagens. Quanto a maiores detalhes esta testemunha declara-se muda, embora possa-se desconfiar que o seu exultante patriotismo tenha se evaporado um pouco e vazado por alguma fresta no fundo de sua alma – pelo menos, desde que passou por essa experiência, ele já se deu conta de que se interessa muito mais por homens, mulheres e crianças do que por fronteiras geográficas imaginárias.
Mas para voltar à minha conversão. Creio que ficou evidente que o meu individualismo feroz foi eficazmente expulso de mim e que alguma outra coisa foi, tão ardorosamente quanto, introduzida. Assim como tinha sido um individualista sem sabê-lo, eu era agora um socialista sem sabê-lo, ou seja, um socialista nada científico. Tinha renascido, mas não ainda rebatizado, e estava dando voltas para descobrir que espécie de coisa eu era. Voltei para a Califórnia e abri os livros. Não me lembro quais foram os primeiros. De qualquer modo, pouco importa. Eu era isso, o que quer que isso fosse, e através dos livros descobri que isso era um socialista. Desde esse dia já abri muitos livros, mas nenhum argumento econômico, nenhuma lúcida análise acerca da lógica e da inevitabilidade do socialista me deixa tão profunda e convincentemente tocado quanto aquele dia em que pela primeira vez vi as paredes do abismo social fecharem-se ao meu redor e me senti escorregando para baixo, para baixo, para os destroços do fundo.
Veja em: https://jacobin.com.br/2021/11/como-me-tornei-socialista/
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