Livro inédito no Brasil sugere: engrenagem capitalista já não pode ser mudada por dentro – e os Estados deixaram de ameaçá-la. Saída estaria em disseminar outras formas de conviver e produzir; e reforçá-las, até que se tornem hegemônicas
Por Silke Helfrich e David Bollier/ Abertura: Rodrigo Savazoni / Tradução: Vitor CostaImagem: Favianna Rodriguez
Na manhã de terça-feira (16), o perfil no Twitter da ativista e pesquisadora alemã Silke Helfrich comunicou que, dia 10 de novembro, durante uma caminhada por uma montanha em Liechtenstein, ela sofreu um acidente e faleceu.
Silke tinha 54 anos e era uma das mais profícuas teóricas do comum, com textos publicados em vários idiomas, sendo o último deles “Free, Fair and Alive”, de 2018, escrito em parceria com David Bollier.
Nós, do Instituto Procomum, havíamos acabado de avançar num acordo com ela e David para publicar a tradução deste seu último livro, numa ação em parceria com o Outras Palavras e a Editora Elefante.
Há pouco mais de um mês, nos reunimos para tratar dos termos dessa parceria, que, além de traduzir e publicar o livro, pretendia promover, em 2022, debates presenciais no Brasil, se possível com esses autores cuja obra exerce grande influência em nosso trabalho.
Silke não tem livros traduzidos para o português.
Em “O Comum entre Nós”, eu a cito muitas vezes, em especial no último capítulo onde apresento um quadro por ela desenvolvido que compara a economia neoliberal e a economia do comum. Uma de suas principais virtudes – e preocupações – era popularizar a ideia do comum (dos commons), para que mais ativistas e pesquisadores pudessem compreender e se utilizar dessa lente para compreender e transformar o mundo.
Formada em literatura e pedagogia pela Universidade Karl Marx, em Leipzig, Silke atuou pela Fundação Heinrich Böll. Entre 1999 e 2007, ela coordenou o escritório da fundação para América Central, Cuba e México. Foi quando tomou contato com o conceito do comum, que se tornou central em sua vida e nos projetos ativistas e acadêmicos aos quais passou a se dedicar desde então.
Escreveu uma série de livros, entre eles duas obras seminais também com David Bollier: The Wealth of the Commons beyond Market and State (2012) e Patterns of Commoning (2015). A última entrada em seu blog, escrito em alemão (https://commons.blog/), data de 21 de setembro de 2021.
A morte de Silke é uma enorme perda para o movimento comuneiro internacional. Que ela nos inspire a seguir buscando um mundo mais justo e igualitário entre todes. (Rodrigo Savazoni)
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Introdução
Este livro se propõe a superar uma epidemia de medo com uma onda de esperança baseada na realidade. Enquanto nos permitirmos ser aprisionados por nossos medos, nunca encontraremos as soluções de que precisamos para nos ajudar a construir um novo mundo. Claro, temos muitos bons motivos para temer – a perda de nossos empregos, o governo autoritário, os abusos corporativos, o ódio racial e étnico. Acima de tudo está o aquecimento da Terra, uma ameaça existencial para nossa própria civilização. Assistimos espantados as sondas espaciais detectarem água em Marte enquanto as autoridades lutam para encontrar água potável para as pessoas na Terra. As tecnologias poderão, em breve, permitir que as pessoas editem os genes de seus filhos por nascer como um texto em um computador, mas os meios para cuidar dos doentes, idosos e sem-teto permanecem indefinidos.
O medo e o desespero são alimentados por nossa sensação de impotência, a sensação de que nós, como indivíduos, não podemos alterar as trajetórias atuais da história. Mas nossa impotência tem muito a ver com a forma como concebemos nossa situação: como indivíduos, sozinhos e isolados. O medo e nosso esforço compreensível pela segurança individual estão atrapalhando nossa busca por soluções coletivas e sistêmicas, as únicas que realmente funcionarão. Precisamos reformular nosso dilema da seguinte forma: O que podemos fazer juntos? Como podemos fazer isso fora das instituições convencionais que estão falhando conosco?
A boa notícia é que inúmeras sementes de transformação coletiva já estão brotando. Brotos de esperança podem ser vistos nas fazendas agroecológicas de Cuba e nas florestas comunitárias da Índia, nos sistemas comunitários de Wi-Fi na Catalunha e nas equipes de enfermagem dos bairros na Holanda. Elas estão surgindo em dezenas de moedas locais alternativas, novos tipos de plataformas da web para cooperação e campanhas para recuperar cidades para as pessoas. A beleza de tais iniciativas é que atendem nossas necessidades de maneira direta e empoderadora. As pessoas estão se preparando para inventar novos sistemas que funcionem fora da mentalidade capitalista, para benefício mútuo, com respeito pelo planeta Terra e com um compromisso com o longo prazo.
Em 2009, um grupo de amigos em Helsinque assistia frustrado ao fracasso de outra cúpula internacional sobre mudança climática. Eles se perguntaram o que eles próprios poderiam fazer para mudar a economia. O resultado, depois de muito planejamento, foi uma “troca de crédito” na vizinhança, na qual os participantes concordam em trocar serviços entre si, desde traduções de idiomas e aulas de natação até jardinagem e edição. Dê uma hora de sua experiência a um vizinho; obtenha uma hora dos talentos de outra pessoa. O Helsinki Timebank, como foi chamado mais tarde, cresceu e se tornou uma robusta economia paralela de mais de 3.000 membros. Com trocas de dezenas de milhares de horas de serviços, tornou-se uma teia de convívio social alternativa à economia de mercado e parte de uma grande rede internacional de bancos de tempo.
Em Bolonha, Itália, uma senhora idosa queria um simples banco de praça no ponto de encontro favorito do bairro. Quando os moradores perguntaram ao governo municipal se eles próprios poderiam instalar um banco, uma burocracia perplexa respondeu que não havia procedimentos para fazê-lo. Isso desencadeou uma longa luta, ao fim da qual criou-se um sistema formal para coordenar as colaborações dos cidadãos com o governo de Bolonha. A cidade acabou por criar o Regulamento de Bolonha para o Cuidado e Regeneração de Comuns Urbanos, que organiza centenas de “pactos de colaboração” entre cidadãos e governo: reabilitar edifícios abandonados, gerir jardins de infância, cuidar de espaços verdes. Desde então, o esforço estimulou um movimento chamado de Co-City na Itália, que orquestra colaborações semelhantes em dezenas de cidades.
Mas, em face da mudança climática e da desigualdade econômica, esses esforços não são muito pequenos e locais? Essa crença é um erro que os tradicionalistas cometem. Eles estão tão focados nas instituições de poder que fracassaram, e tão fixados no contexto mais global que não conseguem reconhecer que as forças reais para a mudança transformacional se originam em pequenos lugares, com pequenos grupos de pessoas, sob o olhar do poder. Os céticos dos “pequenos” zombavam dos agricultores que semeiam grãos de arroz, milho e feijão: “Você vai alimentar a humanidade com… sementes ?!” Pequenas apostas com capacidades adaptativas são, na verdade, veículos poderosos para a mudança do sistema. Neste momento, um enorme universo de iniciativas sociais de baixo para cima – familiares e novas, em todas as esferas da vida, em ambientes industrializados e rurais – estão atendendo com sucesso às necessidades que a economia de mercado e o poder do Estado são incapazes de atender. A maioria dessas iniciativas permanece invisível ou não é identificada com um padrão mais amplo. Na opinião pública, elea são tratadas com condescendência, ignoradas ou vistas como aberrações e marginais. Afinal, elas existem fora dos sistemas de poder predominantes – o Estado, o Capital, o Mercado. As mentes mais convencionais contam com coisas comprovadas e não têm muita coragem para experimentos, embora as fórmulas supostamente vencedoras de crescimento econômico, fundamentalismo de mercado e burocracias nacionais tenham se tornado flagrantemente disfuncionais. A questão não é se uma ideia ou iniciativa é grande ou pequena, mas se suas premissas contêm o germe da mudança para o todo.
Para evitar qualquer mal-entendido: a alternativa do Comum não se referem apenas a projetos de pequena escala para melhorar a vida cotidiana. É uma visão germinativa para reimaginar nosso futuro juntos e reinventar a organização social, economia, infraestrutura, política e o próprio poder do Estado. O Comum é uma forma social que permite às pessoas desfrutar da liberdade sem reprimir os outros, praticar a justiça sem controle burocrático, promover a união sem compulsão e afirmar a soberania sem nacionalismo. O colunista George Monbiot resumiu muito bem as virtudes do Comum: ele ”dá a vida comunitária um foco claro. Depende da democracia em sua forma mais verdadeira. Destrói a desigualdade. É um incentivo para proteger o mundo dos vivos. Em suma, cria uma política de pertencimento”.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/mundoem-desencanto-a-alternativa-do-comum/
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