Por: Marjorie Cohn | Créditos da foto: (Vuk Valcic/Sopa Images/Lightrocket via Getty Images)) |Tradução: César Locatelli
Em uma decisão patentemente política, a Suprema Corte do Reino Unido, com argumentação limitada, reverteu a negação, da corte inferior britânica, de extradição do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, para os Estados Unidos, apesar das recentes revelações de uma conspiração da CIA para sequestrá-lo e assassiná-lo.
Assange foi acusado pelo governo Trump de violação da Lei de Espionagem por revelar evidências de crimes de guerra dos EUA no Iraque, Afeganistão e Baía de Guantánamo. Ele pode ser condenado a 175 anos de prisão se for julgado e condenado nos Estados Unidos. Em vez de rejeitar a acusação de Trump, o governo Biden continua a correr atrás do caso contra Assange, apesar das graves ameaças que sua acusação representa para o jornalismo investigativo e de segurança nacional.
Os juízes do Tribunal Superior não questionaram a conclusão da juíza distrital Vanessa Baraitser do Reino Unido de que seria “opressivo” extraditar Assange devido à sua saúde mental. Michael Kopelman, professor emérito de neuropsiquiatria no King’s College London, testemunhou que Assange “sofre de um transtorno depressivo recorrente … às vezes acompanhado de características psicóticas, muitas vezes com ideias suicidas ruminativas”. Ele acrescentou que a “iminência da extradição ou a própria extradição desencadearia uma tentativa de suicídio, mas era o transtorno mental do Sr. Assange que levaria à incapacidade de controlar seu desejo de cometer suicídio”. Embora a administração Biden desafiasse a credibilidade de Kopelman, o Tribunal Superior ratificou a confiança de Baraitser em seu depoimento, que foi corroborado por um experiente psiquiatra de desenvolvimento, Quinton Deeley, que disse que o diagnóstico de Asperger de Assange significa que ele está em alto risco de suicídio se extraditado para os Estados Unidos.
A Corte Suprema aceita “garantias” condicionais dos EUA
Mas o Tribunal Superior se disse “satisfeito” com as “garantias” diplomáticas condicionais da administração Biden de que Assange: (1) não estaria sujeito a medidas administrativas especiais onerosas (Special Administrative Measures – SAMs) que o manteriam em extremo isolamento e monitorariam suas comunicações confidenciais com seus advogados; (2) não seria alojado na notória prisão de segurança máxima ADX Florence no Colorado; (3) receberia tratamento psicológico e clínico sob custódia; e (4) poderia cumprir qualquer pena de prisão na Austrália. “Alega-se que apenas nessas bases, o recurso [dos EUA] deveria ser permitido”, concluíram os juízes da Suprema Corte.
Em 4 de janeiro, após uma audiência de evidências de três semanas, Baraitser decidiu que se Assange fosse extraditado para os Estados Unidos, ele provavelmente se suicidaria devido à sua saúde mental frágil e às severas condições de prisão que enfrentaria. Durante a audiência, o governo dos Estados Unidos se absteve de dar as chamadas garantias que mais tarde ofereceu. Assim que Baraitser emitiu sua decisão negando a extradição, o governo Biden apresentou suas garantias. Mas deixou em aberto uma grande lacuna, afirmando que as garantias não se aplicariam se Assange cometesse um “ato futuro” que indicasse que medidas administrativas especias (SAMs) seriam apropriadas. Essa eventualidade não especificada seria baseada em uma determinação subjetiva.
“Isto é uma caricatura de justiça. Ao permitir este recurso, o Tribunal Superior decidiu aceitar as garantias diplomáticas profundamente falhas, dadas pelos EUA, de que Assange não seria mantido em confinamento solitário em uma prisão de segurança máxima”, disse o diretor da Anistia Internacional para a Europa, Nils Mui%u07Enieks. “O fato de os EUA se reservarem o direito de mudar de opinião a qualquer momento significa que essas garantias não valem o papel em que estão escritas.”
“O fato de os EUA se reservarem o direito de mudar de opinião a qualquer momento significa que essas garantias não valem o papel em que estão escritas”
Embora os Estados Unidos tenham renegado garantias quase idênticas no passado, a Suprema Corte do Reino Unido confiou que seu aliado, o governo dos EUA, cumprirá sua promessa no caso Assange. “Não há base para presumir que os EUA não tenham dado garantias de boa fé”, declarou a Suprema Corte, qualificando-os de “compromissos solenes de um governo para outro”.
Ao aceitar, sem questionamento, as garantias dos EUA, o Tribunal Superior ignorou as evidências de que mesmo que Assange não seja submetido a medidas especias (SAMs) ou alojado na prisão de segurança máxima de Florence (ADX), ele enfrentará formas equivalentes de isolamento. Ele seria invariavelmente colocado em segregação administrativa prejulgamento, com isolamento e privação sensorial semelhantes aos SAMs.
Além disso, após a condenação, Assange seria mantido em condições muito semelhantes de isolamento em qualquer prisão de alta segurança para a qual seja designado, seja ADX ou não. Ele pode ser colocado em uma Unidade de Gerenciamento de Comunicação, Unidade de Habitação Especial, Unidade de Alta Segurança ou Unidade de Gerenciamento Especial. Em qualquer um desses locais, Assange seria mantido em confinamento solitário de longo prazo com os mesmos riscos de saúde mental que na ADX.
Em nenhuma parte de sua decisão de 27 páginas sobre o tratamento carcerário de Assange após a extradição para os Estados Unidos, a Suprema Corte mencionou o complô da CIA para sequestrar e assassinar Assange.
Em 2017, o WikiLeaks expôs o sistema de hackeamento de vigilância eletrônica e guerra cibernética da CIA chamado “Vault 7”. A CIA chamou o vazamento de “a maior perda de dados na história da CIA”. Mike Pompeo, diretor da CIA de Donald Trump, rotulou o WikiLeaks de “serviço de inteligência hostil não estatal”. A CIA e funcionários administrativos fizeram “planos de guerra secretos” para sequestrar e até matar Assange, de acordo com uma reportagem explosiva do Yahoo!, publicada dois meses antes da decisão do Tribunal Superior. Altos funcionários da CIA e do governo buscaram “esquemas” e “opções” para assassinar Assange. O próprio Trump “perguntou se a CIA poderia assassinar Assange e fornecer-lhe ‘opções’ de como fazê-lo”, diz o relatório.
A hipocrisia da administração Biden na defesa da “liberdade da mídia”
Dois dias antes da decisão da Suprema Corte, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, na chamada Cúpula pela Democracia, declarou que “a liberdade de imprensa desempenha um papel indispensável ao informar o público, responsabilizar os governos e contar histórias que de outra forma não seriam contadas. Os Estados Unidos continuarão a defender o trabalho corajoso e necessário de jornalistas em todo o mundo”.
Ao buscar vigorosamente a extradição de Assange, os EUA estão fazendo exatamente o oposto. O processo contra Assange é o primeiro em que um jornalista é indiciado ao abrigo da Lei da Espionagem por publicar informações verdadeiras. Os Estados Unidos nunca processaram um jornalista ou meio de notícias por publicar informações confidenciais. O julgamento, uma eventual condenação e prisão de Assange, por fazer o que jornalistas rotineiramente fazem, enviará a mensagem assustadora aos jornalistas de que eles publicam material crítico ao governo dos Estados Unidos por sua conta e risco.
“Se extraditado para os Estados Unidos, Julian Assange poderá não apenas enfrentar um julgamento por acusações sob a Lei de Espionagem, mas também um risco real de graves violações dos direitos humanos devido às condições de detenção que poderiam equivaler a tortura ou outros maus-tratos”, tuitou a Anistia Internacional.
Assange vai apelar da decisão da Suprema Corte sobre a validade das garantias diplomáticas dos EUA para a Suprema Corte do Reino Unido. Se a Suprema Corte se recusar a ouvir seu recurso ou ele perder nesse tribunal, Assange poderá entrar com um recurso cruzado na Suprema Corte, pedindo que analise as questões sobre as quais Baraitser decidiu contra ele.
Essas questões incluem, sua extradição (1) é proibida porque seria por um crime político; (2) deve ser negada porque a acusação de Assange está sendo realizada por motivos políticos ocultos e não de boa fé; e (3) constituiria um tratamento desumano e degradante e resultaria na negação do direito a um julgamento justo e do direito à liberdade de expressão, tudo em violação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Eventualmente, Assange poderá apelar para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. O processo de apelação pode levar vários anos.
Enquanto isso, a saúde mental e física de Assange continua se deteriorando. Ele sofreu um derrame no final de outubro, quando a audiência de extradição começou. O relator especial das Nações Unidas sobre Tortura, Nils Melzer, não se surpreendeu. Melzer escreveu em um tuíte que “o Reino Unido está literalmente torturando Assange até a morte”, acrescentando: “como avisamos após examiná-lo, a menos que aliviado da pressão constante de isolamento, arbitrariedade e perseguição, sua saúde entraria em uma espiral descendente, colocando em perigo a sua vida.”
O governo Biden deve retirar imediatamente a acusação de Julian Assange e seu pedido de extradição. A vida de Assange e o jornalismo investigativo como o conhecemos estão em jogo.
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