Por Fernando Nogueira da Costa | Créditos da foto: (Reprodução)
Infelizmente, no debate público brasileiro, usa-se e abusa-se do ataque ad hominem (ao homem): é a desqualificação do interlocutor por juízo negativo de suas intenções. Critica a pessoa, em vez da opinião dela, com a intenção de desviar a discussão e desacreditar a ideia desse oponente a priori.
Por exemplo, no artigo “A Batalha pela Alma de Boric” (Valor, 27/12/21), de autoria de Jorge G. Castañeda, ex-ministro de Relações Exteriores do México, e professor da Universidade de Nova York, a crítica deveria sim ser dirigida ao reducionismo analítico. Ele trata a heterogeneidade nacional e a complexidade institucional latino-americana de maneira muito simplória – e quase atemporal, não datando e localizando as circunstâncias de cada presidente à esquerda.
Em análise maniqueísta, ele reduz tudo no âmbito da discussão a duas categorias opostas:ao rejeitar uma das opções, o interlocutor não teria alternativa a não ser aceitar a outra. Ele diz: “desde a virada do século, a América Latina teve duas “esquerdas” políticas distintas:
1. uma esquerda moderada, democrática, globalizada e moderna, e
2. uma esquerda anacrônica, estatista, nacionalista e autoritária.
O grupo mais moderado é exemplificado por:
1. os governos chileno e uruguaio, nos últimos 20 anos, e
2. o governo brasileiro durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (apesar de sua corrupção).
Em menor medida, o governo de primeiro mandato do presidente boliviano Evo Morales e o governo da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, em El Salvador (mais uma vez, apesar da corrupção), também se encaixam nessa categoria.
A esquerda radical é exemplificada por:
1. o falecido Hugo Chávez, ex-presidente da Venezuela,
2. o sucessor escolhido por ele, Nicolás Maduro;
3. o Rafael Correa, no Equador;
4. o presidente nicaraguense Daniel Ortega;
5. o regime Castro, em Cuba.
É mais difícil categorizar Andrés López Obrador, no México, Pedro Castillo, no Peru, e Néstor Kirchner, Cristina Kirchner e Alberto Fernández, na Argentina.”
A hipótese tentada ser defendida por Castaneda, sem espaço para apresentar dados suficientes e arrumar argumentos irrefutáveis, é a seguinte.
“Agregue a isso a história recente do Chile, os resultados do segundo turno e a composição da coalizão governante, e há boas razões para pensar:Boric poderia optar por não governar como um típico populista de esquerda latino-americano.
Em vez disso, ele poderia atuar mais como um socialdemocrata europeu, nos moldes de Felipe González, o primeiro premiê socialista da Espanha após o retorno do país à democracia na década de 1970. A esperança, sem dúvida é essa, pelo bem do Chile – e da América Latina. ”
Em lugar de debater essa ideia – a possibilidade institucional de passagem do populismo latino-americano para a socialdemocracia europeia, liderada por partidos de origem trabalhista em aliança com partidos verdes e liberais clássicos no parlamentarismo exigente de maioria –, a opção de seus críticos é imputá-lo uma Culpa por Associação. Buscam simplesmente desacreditar uma ideia ao associá-la a algum indivíduo ou grupo malvisto em determinadas redes sociais.
Por exemplo, acusam: “Castañeda foi o típico trânsfuga ‘moderno’ dos anos 1990. Começou a vida no Partido Comunista, duas décadas antes, escreveu o livro saudado pelos ultraliberais latino-americanos como uma espécie de Corão da Era pós-soviética, para a periferia, e terminou como funcionário de um governo de direita”.
Percebe-se também nesse debate público um Apelo à Hipocrisia ou tu quo que:“você também…”. Alguém da esquerda radical busca rebater uma acusação com outra acusação, desviando a atenção da correção (ou não) da acusação. Ocorre quando se aponta uma suposta contradição entre o argumento atual da pessoa e suas ações ou afirmações anteriores.
“A ideia de qualquer candidato de esquerda ser uma ameaça à institucionalidade é uma cantilena oportunamente esquentada pela grande mídia. O que subjaz é não se deve nem se pode enfrentar o neoliberalismo. Estas coisas são mais fáceis de tolerar quando vem da direita tradicional em vez de conversos, como Castañeda. Foi de esquerda na juventude, mas ministro do governo Fox no México e inimigo declarado de toda esquerda. Quando tenta traçar os contornos de uma esquerda aceitável, mostra apenas de onde fala. ”
Nesse caso, é nítida a Falácia Genética: apego emocional, seja negativo, seja positivo, à origem do emissor de uma ideia. Um argumento é desvalorizado ou defendido não por seu mérito, mas somente por causa de origem histórica da pessoa defensora da ideia. É típico pensar“ou está comigo ou está contra mim – e isso o desqualifica”.
Os ataques pessoais são contumazes. “Castaneda é uma espécie de Demétrio Magnoli mexicano. Mas sem aquela cara de estátua (Moais) da Ilha da Páscoa. Esta só o Demétrio tem”. (…) “Certo. Também tem algo de Roberto Freire e tais. ”
No entanto, em uma análise aparentemente mais acadêmica, alerta-se: “no Brasil, o debate político está muito personalizado e, infelizmente, parte da esquerda perde-se nessa fulanização”. Daí o professor expõe sua opinião: “a primeira coisa a interessar é qual programa Lula e o PT proporão para uma aliança capaz de englobar a candidatura Alckmin na vice-presidência de Lula”.
Paradoxalmente, o programa esboçado pelo Professor Titular de Ciência Política é um anti-programa, pois propõe a volta ao passado, para o qual haveria de ter força política no Congresso Nacional para derrubar toda a legislação implantada, inclusive constitucionalmente, desde o Golpe de 2016. É a tradicional ilusão de a conquista eleitoral do Poder Executivo permitir uma revolução em vez de constatar a minoria à esquerda entre os congressistas e tentar aprovar uma re-evolução institucional.
“No caso do PT, irá propor quais ‘desrreformas’ para iniciar a negociação em torno de um eventual governo Lula-Alckmin? Vamos conjecturar improvisadamente e apenas para ilustrar uma lista. O PT poderia propor várias ‘desrreformas’: (a) trabalhista; (b) previdenciária; (c) retomada da valorização do salário mínimo; (d) do teto de gasto; (e) independência do Banco Central; (f) retorno ao sistema de partilha no pré-sal; (g) suspensão dos processos de privatização da Eletrobrás, dos Correios, das refinarias da Petrobrás; (h) volta do imposto sobre exportação, como fez com árdua luta o peronismo na Argentina, etc. , etc.
Como medidas políticas: (a) desmilitarização do governo e das instituições do Estado (STF, TSE) e volta dos militares aos quartéis; (b) fim da cláusula de barreira para os partidos políticos; (c) fim das mordomias de parlamentares que os colocam acima dos seus partidos; (d) apuração dos crimes cometidos contra a saúde pública e assim por diante. ”
São propostas voltadas para o passado e sem enfrentamento das questões urgentes do presente: a retomada do crescimento do emprego e da renda, além da assistência social para a mobilidade social dos miseráveis. Quando se assume o governo, de maneira democrática, em alternância de poder, não se governa isolado, apenas com sua pureza ideológica, mas sim de maneira pragmática:deve ter serenidade para aceitar o imutável, coragem para lutar pelo alterável – e sabedoria para distinguir um do outro.
Porém, para atacar a aliança com Alckmin (simbólica de uma Frente Ampla Progressista contra a extrema-direita), além de rejeitar a Federação de Partidos com PSB, PSOL, PCdoB, PV, Rede e talvez PDT, outro professor universitário e integrante do Diretório Nacional do PT, prega o exclusivismo autossuficiente de O Partido. Considera todos os demais golpistas ou menores, justificando assim o PT ter uma postura isolacionista!
Se é para olhar o passado, em vez de voltar-se para o futuro com possíveis mudanças estruturais e institucionais a ser aprovadas pelo Congresso Nacional e implementadas pelo corpo técnico nomeado para cargos-chave na máquina pública brasileira, em lugar de destilar o rancor político contra Os Outros, o necessário será se preparar para não repetir erros. Tanto no escândalo jurídico-midiático do “mensalão”, quanto no do chamado “petrolão”, a raiz desses problemas esteve no fisiologismo das alianças feitas para obter a coalizão governamental com partidos de aluguel do “Centrão”.
Se para governar, no Brasil, a coalizão partidária será inevitável, a nomenclatura – quadros políticos nomeados sem a devida competência técnica – não deverá ser novamente baseada no “amicismo”, favorável aos amigos de Quem Indica (QI). Pelo contrário, a reputação ilibada de profissional vigilante de seus pares deverá ser um critério fundamental para evitar o aparelhamento partidário corrupto.
Todos os nomeados devem desfrutar, no âmbito da sociedade, de reconhecida idoneidade moral. Esta é a qualidade da pessoa íntegra, sem mancha, incorrupta.
Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Patrulha-Ideologica/4/52379
Comente aqui