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Losurdo e a luta contra o atual estado das coisas

Marcos Aurélio da Silva comenta “A questão comunista”, de Domenico Losurdo, enfatizando como o escritor italiano recoloca no centro do debate marxista o tema do progressismo histórico encarnado pelo desenvolvimento das forças produtivas.

Por: Marcos Aurélio da Silva

A questão comunista: história e futuro de uma ideia, livro póstumo de Domenico Losurdo organizado por Giorgio Grimaldi, recoloca no centro do debate marxista – e da esquerda em geral − o tema do progressismo histórico encarnado pelo desenvolvimento das forças produtivas. A rigor, trata-se, entre outros, de um ajuste de contas com as teorias do “decrescimento feliz” (Serge Latouche) e do “convivialismo” (Alain Caillé), que hoje animam o ecologismo de vestes liberais.

Central no argumento é a ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas não se opõe à proteção do meio ambiente, mas é condição para pôr em discussão a gravidade da crise ambiental que hoje nos ameaça. Aqueles que têm uma visão vulgar da categoria de forças produtivas não deixarão de se surpreender com essa tese. Mas assim como Marx e Engels, Losurdo é muito consciente da noção hegeliana de que a natureza pertence à história, e exatamente por isso não se deixa enganar por definições fáceis desta categoria.

Retomando os ensinamentos da Crítica do Programa de Gotha, Losurdo nota que para Marx a produtividade do trabalho, por grande e crescente que seja, “não é a fonte de todas as riquezas”, sendo a natureza mesma “fonte dos valores de uso”, que assim constituem a “riqueza material”, como também o trabalho, “que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana”, a rigor “a maior força produtiva”. Daí que a destruição capitalista dos recursos naturais, ou seu empobrecimento, tenha ao mesmo tempo o significado de destruição desta “força natural” que é a “força de trabalho humana”.

Outro aspecto decisivo do livro trata daquilo de que se esquecem os teóricos do ecologismo liberal: a história do colonialismo. É aqui que o filósofo italiano recorda a experiência da China, cujo limitado desenvolvimento das forças produtivas herdado da era colonial conduziu a uma desastrosa devastação florestal. Hoje, a mesma China, sob o comando de um Partido Comunista, não apenas supera essa devastação, como é capaz de eliminar a pobreza extrema da sua população por meio daquilo que Marx chamou de “capacidade científica objetivada”.

E eis como Losurdo nos convida a uma crítica do comunismo como simples “ideário da evasão”: sem aderir à fórmula segundo a qual “o movimento é tudo, o fim é nada”, a atualidade de sua posição está em conseguir entrelaçar-se às “lutas reais” ou, como diriam Marx e Engels, às lutas “contra o atual estado de coisas”. Empreendimento que para Losurdo está essencialmente vinculado ao direito ao desenvolvimento, à defesa da soberania e da independência nacionais e à oposição ao desmantelamento do Estado; e que está carregado de promessas para a realização da liberdade individual e de relações menos belicosas entre culturas e povos.

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Obra póstuma do filósofo Domenico Losurdo, que trabalhava nela na época de seu falecimento, A questão comunista foi organizada a partir de originais encontrados pela família do autor. Com escritos que abarcam os anos de 2014 a 2018, A questão comunista pode ser considerada um complemento à obra O marxismo ocidental, já que confronta as várias tendências políticas que estabeleceram algum nível de diálogo com o movimento comunista mas que, de uma forma ou de outra, buscaram diferenciar-se dele, dada a atribuição de uma carga indesejável à palavra “comunista”.

Em diálogo com autores contemporâneos, Losurdo estabelece uma linha de continuidade entre o pensamento de Marx e Engels e os desdobramentos desse movimento, tanto na Revolução Russa de 1917 quanto nas lutas anticoloniais do século XX. A obra trata de retomar a tradição do movimento comunista, com a proposta de resolver seu conflito com o liberalismo. Losurdo propõe, em uma operação claramente hegeliana, a apropriação-superação da proposta liberal, na qual as liberdades individuais opõem-se ao poder político. Ele reivindica a hereditariedade comunista das liberdades obtidas no interior dos Estados liberais, indicando que neles a garantia das liberdades humanas se apresentam como radicalmente atreladas à construção do poder político pelo movimento comunista.

O livro de Domenico Losurdo tem tradução de Rita Matos Coitinho, introdução de Giorgio Grimaldi, texto de orelha de Marcos Aurélio da Silva e capa de Maikon Nery.

 

Veja em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/03/21/losurdo-e-a-luta-contra-o-atual-estado-das-coisas/

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