Para a ministra de relações exteriores, América Latina deve articular uma voz comum sobre temas fundamentais, como mudanças climáticas, direitos humanos e desenvolvimento regional. Paridade de gênero na chancelaria é a primeira marca da gestão
Por: Antonia Urrejola | Entrevista com: Pierre Lebret | Tradução: Ramon Szermeta e Juan-Pablo Pallamar | Antonia Urrejola, ministra de Relações Exteriores do Chile.
Nesta entrevista, ministra de Relações Exteriores do governo do presidente Gabriel Boric e ex-presidenta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Antonia Urrejola discute os projetos de sua gestão e se engaja na reconstrução de uma política externa que foi muito criticada durante o mandato de Sebastian Piñera. Sua prioridade serão os direitos humanos, o meio ambiente, os direitos das mulheres e a integração regional. Com certo pragmatismo, a nova ministra inicia sua gestão em uma região que confirma uma onda de governos progressistas.
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O mundo se lembra do “Chile Despertou” como a lição de um povo contra um sistema profundamente desigual, de um povo contra os abusos. Hoje o Chile tem o presidente mais jovem de sua história e caminha para uma nova Carta Magna. Que mudanças o povo chileno pode esperar em questões de política externa?
Antonia Urrejola – Em matéria de política externa, o Chile tem que responder ao que você acabou de apontar. Efetivamente o “Chile acordou” e hoje temos um jovem presidente com uma forma de liderança que é nova para o Chile e para a região. É uma liderança com empatia, que representa não só a juventude, mas também uma esquerda democrática, que tem um olhar inclusivo para todos os setores, todas as comunidades e diversidades, e acredito que a política externa tem que ser um reflexo dessa liderança que tem o presidente [Gabriel] Boric. Nessa perspectiva, devemos promover uma política externa não encapsulada, uma política externa em contato com países vizinhos, com chancelarias de outros países, com organismos multilaterais. Mas também que esteja em contato com as pessoas, tanto com as demandas dos cidadãos chilenos, como nas viagens que serão feitas. E espero ter um espaço para conhecer e ouvir os cidadãos e cidadãs dos diferentes países. Acredito que esse é o ímpeto que o presidente Boric tem, essa empatia que tem que se refletir na política, e a política externa não pode ficar de fora dessa liderança.
Quais serão as prioridades do Chile em termos de política externa? O que é essa diplomacia que você define como “turquesa” e feminista?
A política externa dialoga com a política interna, e a “política turquesa” responde a questões prioritárias que são a crise climática e a questão ambiental. A nomeação de Maisa Rojas é um sinal nesse sentido. Na região e no mundo ela é conhecida por sua luta contra as mudanças climáticas e isso é um sinal do Chile para o exterior. A política turquesa é uma visão abrangente dos efeitos das mudanças climáticas, tanto da biodiversidade, pela cor verde, quanto do que se refere aos oceanos, e aí quero reconhecer o trabalho do ex-chanceler Heraldo Muñoz neste assunto, em um país com extensas áreas oceânicas como o Chile. Se vamos falar sobre como lidar com as mudanças climáticas e ter uma política ambiental como prioridade, temos que lidar com as questões de biodiversidade e a questão oceânica e antártica. É por isso que essa política turquesa, que é uma síntese dessas perspectivas, deve nos permitir ter uma voz muito mais forte, seja no nível multilateral, seja também procurar agendas comuns sobre essas questões nas relações bilaterais. Não podemos enfrentar isoladamente a questão climática, energética e ambiental.
Em questões feministas, o presidente tem sido muito enfático sobre a importância de uma política feminista. Por exemplo, é a primeira vez que o Comitê Político incorpora a ministra da mulher com um assento. Esse fato por si só fala de uma política feminista, algo que permitirá que a agenda de gênero seja uma dimensão transversal na política de governo. A política externa também tem que responder a isso, incluindo a transversalidade da política feminista. Quando falamos de mudança climática, ou da desigualdade estrutural que o Chile tem, nas esferas da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], a perspectiva de gênero também será incluída em todas essas conversas. Também terá efeito na nomeação de mulheres embaixadoras, em que a paridade será essencial. Temos que começar a trabalhar para diminuir a diferença de gênero no próprio ministério, na própria representação diplomática, na carreira diplomática e na formação de futuros profissionais diplomáticos, e de fato nomeamos uma mulher, uma feminista, como diretora da Academia Diplomática.
Nos últimos anos, vemos como governos conservadores deixaram organizações como a Unasul para criar outras sem grande ambição integracionista. Apenas a Celac poderia ser revivida pelo governo mexicano. Para você, como e em que deve consistir a integração regional, aonde ela deve ser direcionada para que seja sustentável e útil aos povos da região?
Existem vários espaços de integração regional. A primeira prioridade da política externa do Chile é a integração regional com os países vizinhos. Os países vizinhos são essenciais nas relações internacionais e é preciso começar primeiro por reforçar a integração com esses países, trabalhar em agendas comuns, e nosso país sobretudo pelas diferenças que tivemos nas questões fronteiriças. As diferenças continuarão existindo, mas o importante é encontrarmos agendas comuns para trabalhar juntos e isso vai além dos governos no poder, há problemas comuns que nos unem.
Para o presidente, a relação do nosso país com a América Latina é fundamental. Mas, além disso, é preciso recuperar a voz da América Latina nos fóruns mundiais, e é uma questão que o presidente me apontou como prioritária, para que a região se reposicione em questões importantes como as mudanças climáticas, já que somos uma das regiões mais afetadas por esse fenômeno. Temos que ter uma voz comum sobre essas questões. A integração regional tem a ver com uma agenda comum, no que diz respeito ao meio ambiente, à crise migratória, ao narcotráfico, ao comércio justo, ao desenvolvimento sustentável, devemos estabelecer uma agenda comum com os países da região para além das diferenças ideológicas. Podemos ter divergências ideológicas, podemos ter alianças no espaço ideológico de lideranças, de visões comuns, mas isso não significa que não vamos trabalhar a integração regional com todos os países da região, e o estabelecimento de uma agenda comum deve ajudar-nos neste sentido.
Hoje temos um continente fragmentado, polarizado, onde se perderam espaços de diálogo, e só há espaços de diálogo entre aqueles que se relacionam ideologicamente e é isso que queremos deixar para trás, além do fato de que o presidente vai ter mais relações pessoais ou aproximação com alguns governos da região devido à existência de visões comuns do ponto de vista ideológico. Mas, ao mesmo tempo, a integração deve ser reforçada em relação às grandes questões que nos afetam a todos, e não há governos de esquerda e nem de direita nessa hora. Nesse sentido, a ideia não é gerar mais organizações regionais. O que aconteceu com organizações como o Prosur, com seu viés ideológico, o que fizeram foi fragmentar o continente e que a região não tenha uma voz única nas questões que são comuns.
Mas a Unasul havia alcançado uma certa unidade além dos governos da época…
Sim, exatamente. Por isso é necessário fortalecer as iniciativas existentes que deram certo, o diálogo regional, o diálogo com os países vizinhos, e gerar as abordagens necessárias para construir e defender agendas comuns. As diferenças ideológicas são normais e sempre existiram, mas não podemos continuar fragmentando a região. Ao final, o que acontece com a América Latina é que ela perdeu visibilidade, perdeu espaço no cenário global, perdeu-se. Sem mencionar a visão que considera a América Latina como uma região desenvolvida que não precisa de mais cooperação, quando a verdade é o contrário, os desafios são muitos e as lacunas estruturais são muito presentes.
O presidente Gabriel Boric tem sido muito enfático e inequívoco sobre o respeito aos direitos humanos como marca de sua política externa. Ele tem criticado a Venezuela e a Nicarágua. Mas hoje há transformações políticas e geopolíticas em curso na América Latina, e a reaproximação dos Estados Unidos com a Venezuela pode ser uma delas. Que parcela de pragmatismo será necessária na política externa do Chile?
Para o presidente, a questão dos direitos humanos não é a teoria do empate. A agenda dos direitos humanos será uma questão fundamental para nosso governo e a política exterior. Dito isso, e sendo muito claro sobre as posições que o presidente tem tomado, com relação à Venezuela e à Nicarágua, por exemplo, também temos relações bilaterais com esses países e essas relações vão continuar. Espero que a liderança do presidente Boric, uma liderança de esquerda, uma esquerda democrática, possa ser útil para procurar uma aproximação com esses países e procurar soluções para as graves crises que essas sociedades estão vivenciando. É um desafio, e esses governos dos quais estamos falando têm que querer e aceitar essa ponte. Creio que as relações bilaterais têm que continuar existindo com todos. Por exemplo, com a Venezuela, em relação à questão da migração…
Existe a possibilidade de um acordo regional ou vontade para isso nesta matéria?
A ideia é começar a trabalhar em uma proposta que precisa ser discutida com diferentes países, mas a ideia é construir uma política de migração com os demais países da região para encontrar uma solução para enfrentar essa grave crise. Mas essa solução também passa pelo próprio governo venezuelano, e temos que dialogar com eles. Ao olhar para os direitos humanos, precisamos dar importância às vítimas e procurar soluções além de posições ideológicas dos governos de plantão. No caso da política migratória, será fundamental estabelecer um diálogo com a Venezuela e outros países da região.
A senhora disse em entrevista ao jornal La Tercera que o Tratado Integral e Progressivo de Associação Transpacífico (TPP11) não será uma prioridade do atual governo. O Chile não deveria começar buscando fortalecer o comércio intrarregional?
Por um lado, o Chile já tem um grande número de acordos de livre comércio na região e fora da região. Esses tratados ainda estão em vigor e continuarão, ninguém está questionando nenhum. Em relação ao TPP11, há um longo debate que dura muitos anos, e não é uma prioridade, não porque não seja importante, mas porque entendemos que a primeira coisa a ver é como vai se dar o processo constituinte que será muito importante para ver como a sociedade chilena encara os tratados do país. Mas em nenhum caso foi dito não ao TPP11. O Chile está hoje em um debate que tem efeitos sobre o TPP11, sobre o tipo de sociedade que queremos, o desenvolvimento sustentável que queremos, o comércio justo, a participação das comunidades locais no desenvolvimento econômico, e que de alguma forma será muito importante para ver como discutimos esse tipo de tratados. Mas não é que o TPP11 esteja fechado, trata-se de aguardar qual vai ser o resultado do debate constituinte. Insisto que ninguém está pedindo para rever os tratados, e eventualmente se houver um processo pós-constituinte em alguma área como desenvolvimento sustentável, participação das comunidades locais, etc., estou sinalizando um cenário posterior que acho importante apontar…
Mas também há certas pressões de alguns partidos políticos…
Sim, por isso é importante ressaltar que se estamos falando de agendas comuns como mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável, participação comunitária, se eventualmente isso leva à necessidade de revisão dos tratados, qualquer revisão é multilateral, não é unilateral e nisso temos de ser muito enfáticos. Mas é preciso entender que há um conjunto de tratados que são dos anos 90, que o mundo mudou, que há novos desafios. A mudança climática há 20 anos era algo distante, hoje está aqui e é urgente. E modo como olhamos para os tratados tem que incluir esse olhar. A questão das novas tecnologias, privacidade de dados, questões que hoje fazem parte da agenda mundial e, portanto, eventualmente alguns tratados devem ser vistos desde uma perspectiva diferente do que o mundo é hoje. Se isso acontecer, essas negociações têm que ser no âmbito multilateral ou bilateral dependendo do acordo, mas não é um debate unilateral.
O governo de Sebastián Piñera é acusado de ter violado os direitos humanos desde 18 de outubro de 2019. E sua presidência também significou um profundo retrocesso em termos de política externa. No entanto, o Chile tem sido um país reconhecido por ser aberto ao mundo, apegado ao direito internacional e ao multilateralismo, e tem mantido relações privilegiadas em questões comerciais com grandes potências como Estados Unidos e China. Qual será a posição do país nessa “nova era” definida pelo chanceler alemão após a invasão russa da Ucrânia?
A posição do presidente foi muito clara, condenou sem nuances. Falou de uma invasão da soberania e expressou sua solidariedade com as vítimas. Acredito que o tuíte do presidente, curto e preciso, fala por si do eixo da política externa nesta matéria. Claro que existem relações bilaterais, relações comerciais, que são sempre levadas em consideração, mas em relação à invasão russa, o presidente foi muito claro. Vamos continuar defendendo e insistindo na retomada dos canais diplomáticos e multilaterais, porque se não insistirmos nessa solução, só mais gente vai morrer, e a crise vai piorar. Desde este pequeno país, a nossa voz vai levantar a urgência de voltar a se sentar na mesa, de voltar a procurar soluções diplomáticas para uma crise que, independentemente das suas causas, a verdade é que agora há uma invasão e há pessoas inocentes morrendo, a verdade é que provoca uma outra crise, a migratória, na qual pessoas devem deixar o seu país, deslocar-se para países que sofreram uma crise econômica como resultado da pandemia. Portanto, não é apenas a crise do sistema multilateral e da diplomacia, aqui há uma crise humanitária que afeta milhões de pessoas, e no fundo esse é o eixo central, a vida das pessoas, a qual o presidente Boric frequentemente aponta. Não há muitos presidentes que falem com tanta empatia sobre a vida das pessoas. Nosso papel, em questões de crise como esta ou outra, é proteger as vítimas e procurar as melhores soluções, e se isso levar a falar com governos que violam os direitos humanos, claro que o faremos, porque o que importa é encontrar soluções.
Em poucas palavras, como você definiria a política externa de seu governo nos próximos meses?
Feminista, com foco em direitos humanos, e multilateral.
Veja em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/com-boric-um-chile-pela-integracao-regional/
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