Há 7 mil tipos de plantas comestíveis no mundo. Mas 60% da humanidade depende de quatro espécies e poucos animais, em algumas poucas regiões do mundo. Como transformar a natureza econômica dos alimentos e garantir um direito
Por: Ricardo Abramovay
Amartya Sen[i] tinha 10 anos e se lembra até hoje dos gritos contínuos de gente pedindo ajuda, por falta de comida. Em sua recém-publicada autobiografia, Uma casa no mundo (Companhia das Letras), ele relata a cena chocante, 77 anos atrás, de um homem, no pátio de sua escola, em Santiniketan (um bairro da cidade de Bolpur em Bengala Ocidental, Índia), totalmente fora de si e que, pelo que os alunos descobriram, estava sem comer havia um mês.
A cidade fica a apenas 150 quilômetros de Calcutá, cidade portuária por onde as exportações agrícolas indianas transitavam, sob o incentivo do aumento dos preços, no auge da Segunda Guerra Mundial. O alimento existia, mas era inacessível aos que dele necessitavam. A famosa fome de Bengala de 1942/43 matou entre dois e três milhões de pessoas.
Este paradoxo da fome em plena abundância nunca lhe saiu da cabeça e quando, nos anos 1970, já economista, Amartya Sen, se debruçou sobre o tema, sua conclusão foi inequívoca: “era mais importante dar mais atenção ao direito aos alimentos e não à disponibilidade deles”. A frase singela resume o espírito do conjunto da obra deste prêmio Nobel de Economia, conquistado em 1988, por sua contribuição a um ramo da ciência econômica chamado economia do bem-estar. E nada resume melhor sua posição neste campo tão técnico e matematizado da microeconomia que sua definição de desenvolvimento.
Para Amartya Sen, desenvolvimento não se refere ao poder de aumentar a produção de bens e serviços, às tecnologias ou à organização social voltada a esta finalidade. Sua definição, que deu origem ao título do livro que publicou no ano em que foi contemplado com o Nobel, vai muito além: desenvolvimento é o processo permanente de expansão das liberdades substantivas dos seres humanos. O importante não são as coisas e sim o que as pessoas fazem com as coisas e como sua produção incide em suas vidas. Entre os benefícios potenciais que um bem econômico e, mais ainda, o crescimento econômico poderiam trazer e seus efeitos reais sobre a vida das pessoas, a distância pode ser quilométrica.
Em Bengala, as pessoas tinham a liberdade de produzir e de comprar alimentos. Mas essa liberdade era puramente formal, não era substantiva. A Índia era uma colônia britânica à época, e Amartya Sen mostra que nem o Parlamento britânico, nem a imprensa indiana, sob forte censura, veiculavam a tragédia que não escapava aos olhos de uma criança de 10 anos.
A natureza econômica dos alimentos, o fato de eles serem produzidos, distribuídos e consumidos no âmbito de uma economia de mercado, não pode escamotear o direito à alimentação. Em outras palavras, a eficiência na alocação dos recursos e os incentivos que os mercados oferecem aos agentes econômicos são importantes, mas não garantem uma alimentação suficiente e saudável para todos. O “direito aos alimentos” não pode ser puramente formal e abstrato. Se o preço dos alimentos está muito acima do que os pobres podem pagar, seu “direito à alimentação” está irremediavelmente comprometido, mesmo que os alimentos existam e, em tese, possam ser comprados.
Foi isso que Betinho[ii] percebeu nos anos 1990, e esta é a razão pela qual os governos democráticos brasileiros, sob pressão da sociedade civil organizada e de campanhas memoráveis, implantaram, ao longo de duas décadas, organizações estatais e iniciativas que permitiram ao País sair do mapa da fome em 2014. Essas organizações e iniciativas foram discutidas no Congresso, mas, sobretudo, foram concebidas, implementadas e avaliadas por conselhos com forte participação cidadã. Parcela tão importante da vida econômica do País (a alimentação de sua população) era pautada por um conjunto de organizações que tinham voz ativa na organização das políticas alimentares.
O corpo das pessoas é um marcador social incontornável: 22% das crianças do Nordeste de até cinco anos, em 1996, tinham uma estatura que revelava sua carência nutricional crônica. Em 2006, este total caiu para 6%. É claro que o aumento na oferta alimentar resultou no barateamento da comida e contribuiu para esse resultado. Mas ele não teria sido alcançado sem um conjunto de medidas públicas voltadas a dotar as populações vulneráveis dos meios que lhes permitissem satisfazer suas necessidades.
A construção de cisternas, que possibilitaram a convivência com a seca, a decisão de melhorar a composição da merenda escolar com a aquisição de alimentos vindos da agricultura familiar, o aumento gradual do salário-mínimo e as transferências diretas de renda foram essenciais para que o aumento da produção agropecuária se traduzisse substantivamente em redução da fome. Este é um exemplo de ampliação das liberdades substantivas dos seres humanos (a liberdade de ter uma alimentação que permita um crescimento saudável) sem as quais é gigantesco o risco de que o crescimento econômico se afaste da satisfação das necessidades sociais.
Mas a influência da organização democrática sobre a vida social não pode limitar-se a suas dimensões distributivas. O crescimento econômico contemporâneo vem sacrificando os tecidos socioambientais nos quais ele até aqui se apoiou. A destruição dos serviços ecossistêmicos dos quais depende a oferta de bens e serviços é muito mais rápida que a capacidade da natureza de se recuperar da guerra que o sistema econômico trava sistematicamente contra ela. A oferta alimentar contemporânea depende de um pequeno número de produtos, cuja oferta concentra-se em algumas poucas regiões do mundo. Por um lado, a monotonia das paisagens agrícolas e a uniformidade das criações animais ampliam os riscos de colapso: segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) nos últimos 30 anos episódios de severa seca (como a que se abateu sobre as regiões produtoras de grãos no Brasil este ano) atingiram 75% da área plantada.
Por outro lado, a gigantesca biodiversidade que poderia estar na base dos sistemas alimentares é desperdiçada. Segundo o relatório da organização britânica Kew Royal Botanic Garden há mais de 7000 plantas comestíveis no mundo, das quais mais de 450 podem ser cultivadas. No entanto, 60% da humanidade depende de quatro culturas: soja, trigo, milho e arroz. As criações concentracionárias (e geneticamente homogêneas) de animais só não resultam em contaminação viral e bacteriana em larga escala em virtude do consumo de antibióticos em que estas tecnologias se apoiam. 70% dos antibióticos produzidos hoje destinam-se a animais e boa parte destes materiais escapam para o solo e os cursos d’água, resultando em preocupante avanço da resistência antibacteriana.
O paradoxo da fome em meio à abundância tomou uma nova feição no Brasil: nosso sistema agroalimentar é o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, no entanto, a fome e a desnutrição cresceram exatamente à medida que estas emissões aumentavam. A hospitalização infantil por desnutrição atingiu, em 2022, o pior índice dos últimos catorze anos, como mostra pesquisa da Fiocruz.
É indispensável que a democracia atinja o cerne das decisões e das iniciativas econômicas e não esteja presente apenas nos mecanismos voltados à distribuição da riqueza. É cada vez mais evidente, por exemplo, o contraste entre as reais necessidades alimentares das pessoas e aquilo que o sistema agroalimentar lhes oferece, mesmo nas sociedades mais ricas do planeta. Os guias alimentares, que vêm sendo publicados em todo o mundo (tema em que a pesquisa brasileira exerce forte liderança global), sinalizam a urgência de que se aumente o consumo de verduras, hortaliças e folhas, reduzindo-se a quase nada a entrada de ultraprocessados na dieta e diminuindo também de forma importante o consumo de carnes.
Se depender estritamente do punhado de grandes empresas que dominam o setor agroalimentar, esta mudança não ocorrerá. A transição para sistemas agroalimentares saudáveis e sustentáveis depende de forte participação social e de instituições públicas voltadas à difusão de padrões alimentares e culinários saudáveis, mas também da descentralização de iniciativas capazes de desconcentrar a oferta alimentar e de promover a diversidade nos cultivos, nas criações animais e nas práticas culinárias. As diferentes formas de aglicultura urbana e periurbana que, no mundo todo, ganham importância em terrenos vazios das cidades, por iniciativas de movimentos sociais, são um exemplo neste sentido.
A crise socioambiental contemporânea exige que se amplie o escopo daquilo que a ciência econômica considerou até aqui pertencer ao domínio dos bens públicos. Tão importantes quanto as praças, as estradas, o sistema de água e esgoto e a internet são os impactos das decisões econômicas sobre a natureza e a sociedade. Esses impactos não podem mais ser tratados como “externalidades”.
O recém-falecido sociólogo Bruno Latour escreveu uma década atrás um livro em que propõe a derrubada da Torre de Marfim da vida acadêmica e tem como subtítulo a proposta de “colocar as ciências em democracia”. Neste momento de recuperação das instituições brasileiras, da mesma forma, é fundamental “colocar a economia em democracia” e deixar de tratá-la como se fosse uma esfera autônoma da vida social.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/abramovay-a-fome-em-meio-a-abundancia/
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