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O que as primeiras sociedades humanas podem nos ensinar sobre o futuro?

Precisamos analisar a importância da compreensão do “comunismo primitivo” para os primeiros marxistas e a maneira como esse conceito se conecta com conhecimentos antropológicos posteriores.

Por: Camilla Power | Tradução: Everton Lourenço | Imagem: do livro Iroquois: People of the Longhouse, de Michael G. Johnson. Comunidade de iroqueses trabalhando, com suas “casas longas” ao fundo. O estudo dos iroqueses por Lewis Henry Morgan inspirou o conceito de “comunismo primitivo” em Marx e Engels

Opróprio Marx deixou de lado por um tempo seu trabalho sobre O capital para estudar um pouco de Antropologia, o que podemos encontrar nos seus cadernos de anotação – dos quais Engels extraiu o trabalho que levou a A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Além de Marx e Engels, há também Rosa Luxemburgo: enquanto prisioneira na Primeira Guerra Mundial, ela escreveu Introdução à economia política, onde utilizou o que havia de mais moderno na Antropologia de sua época.

Todos eles consideravam que não seremos capazes de compreender o futuro comunista a menos que possamos entender o comunismo primitivo. Todos eles se perguntaram sobre “de onde viemos?”, e todos tinham um conceito de “voltar para o futuro”. Para citar Engels, em certo sentido, o comunismo do futuro será “um renascimento em uma forma mais elevada da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gentes [clãs matrilineares]”. O que os seres humanos foram, em primeiro lugar, informará o que devemos nos tornar.

Isso obviamente faz sentido. Se você considerar que, como resultado da natureza humana, sempre houve uma elite, uma hierarquia, onde os homens dominaram as mulheres, então que esperança pode haver para qualquer tipo de revolução comunista? Mas, por outro lado, se Marx e Engels, baseando-se no trabalho de Lewis Henry Morgan, estiverem certos ao concluir que homens e mulheres eram iguais, que não havia propriedade privada, que havia propriedade comum de recursos, então um retorno revolucionário – em um nível superior – para aquilo que já fomos torna-se possível como parte de nossa natureza humana. Esta posição era popular no início do século 20. Para citar Rosa Luxemburgo em Introdução à economia política:

Somente sendo claros sobre as peculiaridades econômicas específicas da sociedade comunista primitiva é possível compreender com a devida profundidade o que existe hoje na sociedade de classes capitalista. Isso significa que há uma vantagem histórica real em nome da realização do socialismo.

Portanto, aprendendo com o chamado comunismo primitivo o que era possível, podemos identificar para onde essa revolução teria o potencial de nos levar, bem como entender o que realmente significa ser humano. Em outras palavras, o “comunismo em vida” – expressão que veio de Lewis Henry Morgan – não é algo que diz respeito apenas ao passado, sem relevância para os dias de hoje. Na verdade, hoje temos mais informações sobre caçadores-coletores igualitários e como eles realmente operam – sobre o “comunismo em vida” – do que Marx, Engels e Rosa Luxemburgo tinham. Para colocar isso em perspectiva, aqui está Rosa falando sobre Lewis Henry Morgan com relação à propriedade privada:

Ele aplicou um golpe decisivo nessa concepção ao apresentar toda a história da cultura primitiva como uma parte igualmente importante na sequência ininterrupta da humanidade – infinitamente mais importante do que a pequenina seção da história escrita.

Agora sabemos muito mais sobre as origens da cultura humana moderna na África entre 100.000 e 200.000 anos atrás, que impactaram nossa psicologia moderna. As sociedades que desenvolveram significativas hierarquias, acumulações de riqueza e propriedade privada representam uma ocorrência muito mais recente que isso. A herança daquelas primeiras sociedades verdadeiramente humanas ainda está conosco, em alguns sentidos, atualmente. Nós evoluímos física, psicológica e emocionalmente como caçadores-coletores em sociedades intensamente – poderíamos dizer assertivamente – igualitárias. Os impactos subsequentes da agricultura e do pastoreio têm sido de curto prazo em termos históricos.

Alan Barnard, um importante antropólogo dos bosquímanos do Sul da África, rastreou a maneira como os europeus enxergaram e discutiram a ideia dos caçadores-coletores desde o século XVII. Houve debates sobre propriedade comunitária versus propriedade individual e sobre seres humanos em seu “estado natural”, com este sendo entendido como sendo um estado de medo, ignorância, pobreza e maldade – em contraste com a “civilização”, com todos os seus benefícios de segurança e riqueza. Conhecemos o famoso ditado de Thomas Hobbes: a vida do homem em seu estado natural seria “pobre, desagradável, brutal e curta”.

À medida em que avançamos para o século XVIII e para Rousseau, temos a crença emergente de que a vida de forrageamento (um sinônimo para caça-e-coleta) era inerentemente pacífica, feliz e igualitária. É a partir daí que pela primeira vez temos a noção de que a desigualdade social começou com a agricultura – com o “primeiro lavrador

erguendo a primeira cerca”-, em outras palavras, com o surgimento de instituições civis que existem para mediar e proteger os direitos de propriedade. No iluminismo escocês, figuras como Adam Ferguson e William Robertson acreditavam que a caça-e-coleta significava a ausência de propriedade privada e a distribuição comunal de alimentos. O filósofo do direito civil de Glasgow, Jonathan Miller, deu início à investigação da questão da propriedade em relação ao sexo e ao gênero.

“Selvageria” e “civilização”

Porém, foi Lewis Henry Morgan em meados do século 19 (especialmente em sua publicação de 1877, A sociedade antiga, onde empregou a expressão “comunismo em vida”) quem exerceu muita influência em Marx e Engels. Morgan concentrou-se nos iroqueses, que não eram caçadores-coletores como entendemos o termo hoje: eles cultivavam milho e compunham a aliança política e militar das Seis Nações. No entanto, a descrição de uma aldeia iroquesa ilustra o que Morgan estava discutindo. A base de sua economia e parentesco estava nas “casas longas”. Os aspectos fundamentais captados por Morgan – e por Engels, claro – foram os relacionados com o parentesco matrilinear, o princípio organizador dos clãs ou “gentes”. A economia das casas longas enfatizava os recursos em comum, e dentro delas as mulheres agiam em solidariedade – particularmente contra qualquer homem que não estivesse disposto a fazer sua parte. Se houvesse um marido que não estivesse à altura do trabalho, ele poderia ser expulso. Ele não tinha direitos dentro da casa matrilinear de sua esposa, enquanto ela tinha todo o apoio econômico de seus parentes.

Morgan estava muito comprometido com a teoria evolutiva e se estabeleceu como o pioneiro da antropologia evolucionista. Ele conheceu Darwin logo após a conclusão de A origem das espécies e vinculou a evolução humana à sua ideia de uma progressão da “selvageria” para a “civilização”. Podemos preferir uma terminologia diferente – “selvageria”, por exemplo, é o que hoje chamaríamos de caçadores-coletores, e “barbárie” incluiria a horticultura primitiva, mas Morgan na verdade preenchia esses termos com conteúdo positivo. Ele descreve culturas que têm modos de vida valiosos e sofisticados, então “selvageria” não era um termo para depreciá-los. Precisamos nos afastar da noção de que o comunismo primitivo é algo que estaria bem abaixo na escala evolutiva. Há partes em nós – nos nossos corações, nossas mentes, nossos corpos e almas – que ainda são caçadores-coletores e que sempre serão, pois foi isso que nos tornou seres humanos.

Morgan concentrou-se na vida nas casas longas como a matriz da autonomia feminina. O antropólogo Paul Bohannon refere-se a essa descrição de Morgan como sendo uma “instituição simples, resiliente e flexível […] encarregada da vida política ou legal na […] comunidade; pode ser a unidade de produção e distribuição econômica; pode formar a base do cerimonial e do ritual”. Ela apresenta todos esses aspectos ao mesmo tempo: fornece educação, segurança social e segurança emocional.

A arquitetura doméstica e o ethos social que ele descreve podem ser prontamente transpostos do cenário iroquês para o campo dos caçadores-coletores, do tipo que é familiar na África Central. Há pequenos aglomerados de cabanas, com pessoas encostadas nas portas e umas nas outras conseguindo ver o que todos os outros estão fazendo. Entre os iroqueses, a menor dessas “cidades”, como ele as chamava, podia ter de 10 a 40 casas. Estas corresponderiam a diferentes clãs e relações familiares, onde as pessoas viveriam em comum. Ele conecta explicitamente essa sociabilidade igualitária ao “comunismo em vida” e ao que ele descreve como sendo o extraordinário “poder judiciário” das mulheres no interior dessa organização. Seu papel participativo e decisório certamente corresponderia à nossa compreensão dos caçadores-coletores modernos.

Foi isso que atraiu a atenção de Marx e Engels. As conexões teóricas originais que Morgan estabeleceu entre parentesco – especificamente clãs matrilineares -, sexo e ascensão da propriedade privada foram, é claro, utilizadas por Engels em sua grande obra. O quadro conceitual evolutivo de Morgan foi emprestado por Marx e Engels para atribuir as mudanças no parentesco matrilinear e nas formas de casamento às transformações nas relações de produção e no aumento simultâneo das desigualdades sociais. Dessa forma, eles foram capazes de descobrir por que as coisas mudaram.

Quando Morgan fala sobre “comunismo na vida” em A sociedade antiga, ele está se referindo particularmente ao conceito de casamento em grupo e comunismo sexual. Ele descreveu grupos inteiros de mulheres de um clã casando-se com grupos inteiros de homens – irmãos classificatórios – de outro.

Já dissemos que na verdade os iroqueses não são caçadores-coletores no sentido apropriado, mas o clã matrilinear ainda estava em evidência entre eles – o exato oposto da família nuclear, dentro da qual uma mulher seria apropriada como propriedade sob o controle e domínio de um marido. No clã matrilinear, grupos de mulheres estão unidos por parentesco, responsabilidades e, principalmente, por cuidados infantis compartilhados, terras compartilhadas e recursos compartilhados. Engels adotou fortemente a opinião de que, quando se trata da “civilização”, na forma de família, propriedade e Estado, a liberdade que existia anteriormente foi perdida. A ideia de que as sociedades primitivas eram “desagradáveis, brutais e curtas” foi de fato contestada, e a noção de que a instituição da família e da propriedade privada seriam intrinsecamente necessárias e uma parte da natureza humana foi refutada. A ideia mais provocativa assumida por Engels, que causou uma enorme reação contra ele no campo da Antropologia Social, foi a do poder das coalizões matrilineares, capazes de controlar os recursos.

Ataque ideológico

Quando Rosa Luxemburgo estava escrevendo, durante a Primeira Guerra Mundial, ela estava particularmente interessada na ideia de compartilhamento comunal e nas formas como isso ocorria em rituais entre os aborígines australianos, bem como entre os bosquímanos do Sul da África. Porém, com a fundação da Antropologia Social moderna  após a guerra, sob o comando de Bronislaw Malinowski na Grã-Bretanha e Robert Lowie e outros na Escola Americana, essas posições de Marx e Engels passaram a sofrer um ataque muito intenso. Marvin Harris, um antropólogo escrevendo em meados do século 20, descreveu o mandato da Antropologia moderna como sendo “expor o esquema de Morgan e destruir o método no qual ele se baseava”.

Trata-se de um mandato inerentemente político, e o que estava sob ataque era acima de tudo a ideia da propriedade comunal. Robert Lowie fez questão de tentar provar de maneira decisiva que a propriedade privada existia nas sociedades de caçadores-coletores. Trabalhando com culturas ameríndias norte-americanas, ele teve um trabalho árduo tentando demonstrar isso. Malinowski atacou especialmente a veracidade da maternidade coletiva, que ele considerava como sendo mais revolucionária e mais perigosa do que as Revoluções Francesa e Russa juntas. Era seu mandato “provar” que a família nuclear e que a união em casais eram as relações naturais entre homens e mulheres e que se tratavam de características intrínsecas da vida humana, que jamais poderiam mudar. Era sua posição, e a posição da Antropologia Social em geral, que o estudo das origens humanas deveria ser descartado como sendo um campo carente de quaisquer evidências e que deveria ser ignorado.

Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, uma verdadeira etnografia começou a surgir, baseada em estudos de uma série de caçadores-coletores – principalmente os estudos do etnógrafo canadense Richard Lee, cuja família tinha uma herança política de esquerda. Suas “Reflexões sobre o comunismo primitivo” consideram a compreensão de Morgan sobre o comunismo em relação à sua própria experiência trabalhando com os Ju/’hoansi em Botswana e Namíbia. E depois houve James Woodburn, com seu trabalho de campo de longo prazo sobre os caçadores igualitários Hadza, na Tanzânia. Esses dois homens foram especialmente influentes no período que antecedeu uma importante conferência intitulada “Man the Hunter” (“Homem, o Caçador”), realizada em 1966. Lee, ao falar sobre o comunismo primitivo, disse que este poderia ser definido como “uma alteridade por excelência, em termos negativos, no sentido da ausência de liderança, da ausência de desigualdade, da ausência de propriedade” – quase sugerindo a ausência de sociedade. Assim, a ideia de que a sociedade em si deveria estar amarrada às normas da civilização capitalista foi questionada.

As principais características que Lee identificou em termos do comunismo primitivo foram mobilidade, pequenos grupos, terras mantidas em comum, livre acesso a recursos e um ethos igualitário que impede a acumulação pessoal de riqueza, engrandecimento ou autoridade. Existem padrões muito definidos de compartilhamento e um respeito pela autonomia, bem como cooperação como indivíduos iguais e ausência de qualquer tipo de coerção. Ele produziu um material muito valioso e narrativas de como isso funcionava como princípio.

Lee contou como em um Natal ele quis presentear o acampamento no qual ele estava trabalhando com um grande boi, para que todos fizessem um banquete. Contudo, ele ficou consternado porque a resposta quando ele trouxe este animal foi indiferente – era magro demais, disseram eles. Ele ficou bastante chateado, até que começou a entender o que estava acontecendo: era exatamente a mesma dinâmica que ele observara quando os próprios caçadores produziam uma bela peça de caça – ou seja, as pessoas criticavam, de modo que qualquer um que pensasse ter feito um ótimo trabalho trazendo para casa esse belo animal de caça logo seria trazido de volta à terra. Há diversas histórias desse tipo.

James Woodburn apresentou o conceito de que as sociedades igualitárias poderiam ser fundamentalmente identificadas com o que ele chamou de “retorno imediato”: tudo o que fosse produzido seria consumido quase imediatamente. Existem alguns problemas com esse conceito, porque se você comparar as comunidades de caçadores-coletores com a caça de primatas, fica claro que os caçadores-coletores não necessariamente consomem os animais imediatamente. Há, todavia, uma importante verdade nisso, no sentido de que nas sociedades onde quase tudo é consumido rapidamente é impossível acumular riqueza. Woodburn comparou essa situação com o que ele chamou de sociedades de “retorno retardado”, que incluiriam qualquer grupo de base agrícola ou pastoril, onde recursos fossem armazenados ou guardados, ou onde as pessoas esperariam pelas colheitas. Ele observou que as sociedades de “retorno imediato” sempre eram baseadas em caça-e-coleta – embora nem todas as sociedades de caçadores-coletores sejam baseadas no retorno imediato: algumas são economias de armazenamento de caça.

Compartilhamento

No entanto, Woodburn mais uma vez identificou o imperativo social e ideológico do compartilhamento. O mecanismo hoje é chamado de “compartilhamento de demanda” – uma pessoa não pode recusar compartilhar o que outra lhe pede. Este é particularmente o caso com alimentos valiosos, como carne e mel. Também deve haver acesso direto aos recursos materiais necessários à vida, e ninguém pode controlá-los individualmente. As pessoas também possuem autonomia e conhecimento próprio. No caso dos Hadza, até as crianças sabem como encontrar comida. Todos têm essa autonomia, então todos os membros têm igualdade, independentemente de idade, gênero ou outras qualidades. Existe um respeito sem paralelos pela liberdade de movimento e existe o conceito de votar com os pés: se você não gosta do que alguém está fazendo, pode simplesmente sair e ir viver em outro lugar – e é possível ir para outros lugares porque a rede social para isso estará lá.

Essas comunidades são extremamente móveis, e isso é visto como um valor importante e positivo. Mesmo quando é possível armazenar alimentos e não compartilhá-los, essas comunidades não farão isso: preferem descarregar o excesso com outras partes da rede, ou trazer outras pessoas para participarem de um banquete se um grande animal de caça for abatido. Tudo será usado. A dinâmica social é se opor a qualquer coisa que permita a acumulação individual.

Até o jogo de azar serve a um propósito importante em uma comunidade como a dos Hadza. Itens valiosos – especialmente pontas de flechas de metal – serão usados em apostas, mas se trata de uma maneira brilhante de garantir que ninguém retenha todas as pontas de flechas. Elas são distribuídas puramente por meio de um lance de sorte, não exigindo habilidade nenhuma.

Woodburn também identificou a importância do próprio armamento. Todos tem acesso ao veneno que se coloca nas pontas das flechas, que é tão forte que o menor arranhão é suficiente para causar a morte de uma pessoa. Entre os Hadza, as mulheres não tinham acesso ao veneno, mas ainda tinham armamento suficiente para utilizar contra um indivíduo cuja guarda estivesse baixa. O que Woodburn estava apontando era que ninguém conseguiria se engrandecer ou se tornar violento ou desagradável demais, porque outros agiriam contra ele. Portanto, o armamento também desempenha um papel na restrição da dominação.

Woodburn foi bastante explícito ao falar sobre o comunismo primitivo, e outros antropólogos, como o anarquista Brian Morris, descreveram os caçadores-coletores das colinas do sul da Índia em termos de seu anarcocomunismo e, certamente, de seu modo de vida comunista. Alan Barnard, em referência ao teórico evolutivo do século 19, Pyotr Kropotkin, escreveu um artigo chamado Kropotkin visita os bosquímanos sobre ajuda mútua nas redes sociais de caçadores-coletores. Há toda uma geração de antropólogos que sucederam a essas primeiras figuras, incluindo Jerome Lewis, hoje um dos principais impulsionadores de estudos de sociedades igualitárias. Ele se refere ao fato de que o povo Mbendjele tem todo um idioma sobre “cortar” e “amarrar”: uma pessoa pode ter autonomia demais e acabar se isolando ou, por outro lado, ela pode ter dependência demais. Trata-se de um equilíbrio bastante delicado, mas os caçadores-coletores são especialistas em atingir esse equilíbrio.

Nenhum desses antropólogos, embora enfatizem a igualdade de gênero, chegou a identificar realmente como ela opera. Por exemplo, a piada sexual é utilizada como um mecanismo de nivelamento, com as mulheres falando em voz alta sobre o desempenho de um marido dentro da cabana – mais uma vez, um meio de impedir que os homens se engrandeçam. As mulheres são notavelmente vigilantes sobre a capacidade dos homens de prover.

Morgan era um darwinista, mas há toda uma série de Antropologia Darwiniana que tem um grande problema com tudo isso. Como os darwinistas pensam sobre animais em termos de competição, seleção natural e disputas de adequação e sucesso reprodutivo, alguns deles acham muito difícil pensar em termos de igualitarismo. É por isso que há esforços recorrentes de darwinistas para atacar a noção de igualitarismo nas sociedades de caçadores-coletores. Há um artigo notório, de Eric Alden Smith e colegas, sobre a transmissão de riqueza, onde se afirma que apesar de não haver propriedade privada, apesar do fato de que todos compartilham todas as coisas, ainda assim existem diferenças e desigualdades sociais. Esses darwinistas se concentram em características físicas – alguns podem ter melhor saúde, níveis diferentes de força ou serem capazes de segurar o arco com mais firmeza, o que poderia torná-los mais bem-sucedidos.

Sim, existe uma variação natural de habilidades, de maneira mais óbvia entre homens e mulheres, mas esse raciocínio está deixando escapar o ponto do que essas culturas estão tentando realizar: ou seja, a negação das diferenças, para não deixar que ninguém as amplifique a fim de valorizar uma pessoa mais que outra. A ideia, como no exemplo do jogo de azar, é que, se uma pessoa tiver mais sucesso na caçada, esse sucesso tende a se espalhar. James Woodburn descreve os extraordinários arcos dos Hadza: eles são grandes demais para que sejam eficientes na caça, e isso na verdade contrabalanceia as habilidades e coloca uma proporção maior de sorte na equação.

Há todo tipo de mecanismos culturais que impedem o acúmulo de prestígio ou auto-importância. Veja o exemplo dos povos da floresta Mbuti: se algum caçador específico estiver obtendo sucesso “demais” nas caçadas, consistentemente conseguindo pegar animais onde outros falham, então os membros do acampamento vão se amontoar em sua cabana procurando o “remédio” que deve estar causando essa desigualdade.

Igualitarismo

Andrew Whiten, um psicólogo evolutivo, tem se concentrado naquilo que ele chama de “inteligência maquiavélica” entre os primatas. Trata-se da ideia de que a principal causa da evolução da inteligência é a necessidade de lidar com o mundo social. Na política dos chimpanzés, a “inteligência maquiavélica” se expressa em alianças bastante sofisticadas mas instáveis entre machos, enquanto nos bonobos elas ocorrem mais entre fêmeas. Este modelo “maquiavélico” é muito interessante e completamente dialético quando utilizado para explicar os mecanismos do igualitarismo, especialmente no sentido econômico. Quanto mais evolui a inteligência maquiavélica, mais alianças podem ser manipuladas e negociadas, e mais difícil fica para que qualquer indivíduo específico exerça dominação, porque sempre é possível reunir uma aliança contra essa pessoa. A melhor estratégia passa então a ser não tentar dominar, mas garantir que você não seja dominado. Você apenas garante que, se outra pessoa tiver comida, você também receberá sua parte. Essa “contra-dominância”/”contra-dominação” subjaz o padrão de igualitarismo em todas as sociedades de caçadores-coletores.

Nossa evolução naquele período de distinto igualitarismo configurou a maioria dos aspectos da psicologia humana de maneiras muito particulares. O conceito de “mente social profunda” de Whiten associa esse igualitarismo à nossa vontade de compartilhar nossos pensamentos e de ler as mentes uns dos outros, dando origem a uma explosão de transmissão cultural em nossa espécie.

Outro psicólogo evolutivo que tem se concentrado nas sociedades de caçadores-coletores, e particularmente no igualitarismo, é Peter Gray, cujo material vale a pena ser estudado. Seu modelo para caçadores-coletores de “retorno imediato” sustenta que eles operam por meio de recreação, no sentido de que as decisões e associações são todas consensuais e negociadas, e não uma questão de qualquer indivíduo ser um líder (embora alguns possam ser seguidores). O ponto é que existem regras acordadas para esses “jogos” de nivelamento e que as decisões podem ser tomadas por meio desse processo. Isso está obviamente conectado com a importância do ritual como discutido anteriormente – Jerome Lewis fala sobre como particularmente as mulheres irão imitar e personificar qualquer homem que saia fora da linha. Isso cria uma risada contagiante, até que o homem saia bufando ou engula seu orgulho e se junte à diversão geral. O riso e a imitação são as forças de contra-dominação mais poderosas para lidar com indivíduos indisciplinados ou presunçosos.

Jerome Lewis, que foi educado pelos Mbendjele, descobriu que eles tinham um conceito conhecido como “massana“, que, por um lado, é uma palavra que pode significar recreação, ou mesmo brincadeira de criança, embora também tenha uma conotação de diversão compartilhada. Porém, por outro lado, massana também abrange rituais sagrados. Isso torna difícil distinguir entre brincadeira e religião. Até as crianças se envolvem em rituais, por meio dos quais invocam espíritos; como acontece com os adultos, trata-se de uma atividade fortemente marcada pelo gênero. Os meninos preparam o caminho para o espírito e as meninas dançam e cantam para atraí-los para fora da floresta. Cada grupo de gênero continuamente subverte e mina o prestígio que o outro grupo poderia acumular: as mulheres têm uma importância enorme, como aquelas que reproduzem, enquanto os homens, como caçadores, também possuem um papel vital.

No entanto, massana celebra o gênero de cada grupo, afirmando a sua autonomia, mas ao mesmo tempo também a sua interdependência. Há um movimento dialético constante, que se relaciona com o “amarrar” e “cortar” mencionados anteriormente: autonomia, mas também interdependência; separação, mas também unidade; subversão, mas também respeito. Esses rituais operam à maneira da dominância reversa. Se os homens invocam o espírito sagrado da floresta, as mulheres podem contra-atacar invocando seu próprio espírito. Durante o tempo do ritual, qualquer um dos sexos, com seus próprios rituais secretos, pode criar um caminho secreto na floresta, atraindo indivíduos de volta para coalizões de gênero e criando agrupamentos “políticos”. A solidariedade dentro do mesmo gênero cria solidariedade no outro, mas nenhum dos gêneros consegue estabelecer qualquer tipo de domínio.

Morna Finnegan ampliou o conceito primordial de Morgan, do “comunismo em vida”, vendo-o como dinâmico: não apenas “em vida” em um sentido de regularizado e rotineiro, mas também como “comunismo em movimento”. As sociedades caçadoras-coletoras são sociedades em movimento – elas vão além do que Woodburn descreveu como sendo de “retorno imediato” ou de “retorno retardado”. Qualquer coisa valiosa – que seja boa para comer, boa para se ter – está em movimento, é dada a outra pessoa. As pessoas estão sempre visitando parentes. Mas é nos rituais que isso é mais visivelmente observado. O ponto principal de Finnegan é que esses rituais são as forças dinâmicas ou as ações diretas que constituem o igualitarismo. Com grupos de caçadores-coletores da África Central, a atividade dramática no ritual tanto representa a independência e a autonomia dos grupos de gênero quanto afirma sua interdependência. A mesma oscilação de pêndulo também existe entre os hadza. Esta não é apenas uma expressão superestrutural de relações igualitárias: é a própria operação dessas relações.

Uma das áreas mais importantes e mais materiais do igualitarismo nessas sociedades, que é objeto de cada vez mais pesquisas, é a amamentação de bebês. Onde é obviamente comunista a partilha de comida e assim por diante, não pode haver nada mais comunista que o cuidado coletivo das crianças, incluindo a amamentação por outras pessoas que não a mãe. O livro Mothers and other (“Mães e outras”), de Sarah Hrdy, demonstra a importância do cuidado infantil cooperativo para a evolução humana. É o que nos tornou humanos. E está sobretudo evidente até hoje entre caçadores-coletores igualitários – uma relação recíproca e muito íntima baseada no parentesco, que corporifica o que há de mais definitivo em termos de cuidados infantis compartilhados e comunistas.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2023/04/o-que-as-primeiras-sociedades-humanas-podem-nos-ensinar-sobre-o-futuro/

 

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