Empresas públicas brasileiras aceleram busca do saneamento universal e são exemplo para o mundo. Fato confirma viabilidade de tratar a água como direito humano, e derruba argumentos pela privatização, no momento em que mais ameaçam
Por: Léo Heller. Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) de Barueri, a maior da América do Sul. Construída pela Sabesp, é alvo da tentativa de privatização da empresa premiada pela ONU
O Brasil foi escolhido neste ano, pela ONU-Água, como um dos três casos de sucesso no cumprimento do Objetivo 6 dos ODS1. Essa escolha e a descrição do caso2 objetivam dar visibilidade aos progressos realizados e aos fatores que os determinaram, para servir de “acelerador” e estimular o cumprimento do ODS6 e suas metas.
A escolha do Brasil para caso de destaque
O sucesso do caso brasileiro deve-se basicamente à evolução dos indicadores relacionados ao tratamento de esgotos e à consequente melhoria na qualidade da água. Trata-se do indicador 6.3.1 (“proporção da vazão de águas residuárias domésticas e industriais tratada de forma segura”) e do indicador 6.3.2 (“Proporção de corpos de água com boa qualidade ambiental”, de acordo com padrões nacionais ou subnacionais). Para o primeiro indicador, o Relatório informa que 900 estações de tratamento de esgotos (ETEs) foram construídas no país entre 2013 e 2019, correspondendo a um investimento total de mais de 10 bilhões de dólares. Para o segundo, em 2017, 63% dos corpos de água avaliados registraram “boa qualidade ambiental”, e a proporção aumentou para 71% em 2020. A ONU-Água sugere que esse avanço pode ser explicado pela melhoria no tratamento de esgotos. Em algumas bacias, chuvas mais abundantes podem explicar essa melhoria, devido à maior diluição dos dejetos.
Um comentário que pode ser feito sobre esse progresso no tratamento de esgotos é certa contradição com relatório recente do monitoramento dos ODS3, que destaca o Brasil no gráfico a seguir:
Verifica-se que o país, em 2022, tinha cerca de 70% da população atendida com rede coletora de esgotos, mas que menos de 40% desse contingente tinham seus esgotos tratados, dado este que é apenas quantitativo e não considera o desempenho do tratamento, reconhecidamente uma preocupação.
O que explica o sucesso
O relatório aponta que, nas décadas de 2000 e 2010, “investimentos federais de larga escala foram alocados, com contribuições dos estados e outras fontes”, tendo sido citado o PAC. Embora não referida, a alocação de recursos provenientes do pagamento pelas outorgas de recursos hídricos para o projeto e construção de ETES, por comitês de bacias, pode ter sido componente não desprezível dos investimentos.
Portanto, pode-se dizer que o sucesso do caso brasileiro ocorreu graças ao investimento público, e não ao privado. Nesse sentido, fica mais que evidenciada a falácia dos defensores da aprovação da Lei 14.026/2020, que argumentavam contra o modelo implementado pela Lei 11.445/2007, “demasiadamente estatizante” e incapaz de atrair os “disponíveis” investimentos privados.
Além do investimento público, o relatório menciona outros fatores que teriam propiciado esse avanço. Um deles é a existência de diferentes mecanismos para alocação de recursos, desde financiamento para serviços em cidades maiores até recursos não onerosos para pequenas municipalidades; embora considerem que o subsídio cruzado entre comunidades ricas e pobres permaneça limitado. A existência de uma estrutura legal e institucional adequada é outro fator, com destaque para a participação social em vários níveis. Ainda, o condicionante da existência de planos para o acesso a recursos federais é exaltado, embora se reconhecendo que a qualidade dos planos seja variável. É interessante também a ênfase para uso de dados para o planejamento, graças aos sistemas de informação, como o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS). Todos estes fatores resultaram de políticas implementadas em um período de valorização da gestão pública da prestação dos serviços no país, o que certamente ainda tem espaço para melhorias, com a implantação de medidas estruturantes, conforme previsão do Plansab.
Alguns outros fatores considerados podem ser, no entanto, controversos. Como exemplo, o estudo avalia que “água está em posição elevada na agenda política”, havendo comprometimento no nível mais alto de governo. Tal afirmativa desconhece o vácuo político institucional vivido no governo Temer e, sobretudo, no período Bolsonaro. Afirma também que as iniciativas refletem a diversidade do país, e que levam em consideração os diferentes desafios ambientais e sociais, como assentamentos informais, presença de indígenas e quilombolas, o que no mínimo é discutível, dada a abordagem generalizante usual na prática das políticas públicas do país no período analisado, quando sequer foi iniciada a implementação do Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR).
Como síntese, a ONU-Água conclui que o país se concentrou em três dos cinco “aceleradores”: financiamento, governança e dados e informações. Recomenda que, no futuro, os dois outros – desenvolvimento de capacidades e inovação – devem ser priorizados, o que levaria à aceleração do avanço no alcance do ODS6.
O relatório confirma ainda desafios que o setor ainda precisará enfrentar, sendo significativo o esgotamento sanitário, “particularmente nas áreas rurais”. O relatório aponta que, embora o acesso ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário esteja acima da média da América Latina e Caribe, a cobertura de esgotamento sanitário é inferior à de água, sendo destacado o gap urbano-rural, a baixa cobertura no Norte e no Nordeste, bem como em assentamentos informais urbanos e populações indígenas e quilombolas, expondo essas populações “a doenças associadas à água e outros problemas relacionados”.
Veja em: https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/agua-a-onu-desmente-os-privatistas/
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