Catorze anos após último discurso, presidente retomou agenda de demandas por mudanças no Conselho de Segurança e FMI. Lula também fez críticas à extrema-direita, defendeu Julian Assange e pediu mais ação para o clima.
Por: Jean-Philip Struck | Créditos da foto: TIMOTHY A. CLARY/AFP/Getty Images
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou seu discurso de abertura da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, nesta terça-feira (19/09), para reforçar que o Brasil abandonou o isolacionismo que caracterizou os quatro anos do governo Jair Bolsonaro e está se reencontrando com o multilateralismo.
Lula também voltou a pleitear antigas demandas da diplomacia brasileira, como a reforma de organismos internacionais em especial o Conselho de Segurança da ONU – e um papel mais ativo das nações mais ricas no combate às mudanças climáticas e desigualdade.
“Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta”, disse Lula, citando um bordão que já usou em outros encontros e cúpulas internacionais desde que voltou à Presidência. “O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, nossa região, o mundo e o multilateralismo. Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais.”
O discurso na Assembleia Geral marcou o retorno de Lula ao palco da ONU após um hiato de 14 anos: a última participação do político brasileiro no encontro havia ocorrido em 2009.
Críticas à extrema direita
Sem mencionar Bolsonaro nominalmente, Lula denunciou “aventureiros de extrema direita” que “negam a política”.
“Em meio aos escombros do neoliberalismo, surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário. Repudiamos uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores. Precisamos resgatar as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU.”
Lula também disse que seu retorno à Presidência ocorreu “graças à vitória da democracia” no Brasil. “A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão. A esperança, mais uma vez, venceu o medo”, disse, usando também um bordão associado à sua campanha. “Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre.”
Demandas por reformas em organismos internacionais
Nos dois primeiros mandatos de Lula, uma das prioridades de sua agenda externa foi a defesa de uma ampliação e reforma substancial do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cuja composição permanece inalterada há mais de sete décadas, e que inclui apenas as principais potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido.
Mais de uma década depois, Lula voltou a defender uma mudança na composição e fez críticas indiretas aos atuais membros do Conselho. Além do Brasil, Alemanha e Japão também pleiteiam espaço permanente no organismo.
“O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime. Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia.”
Mas Lula não se limitou ao Conselho de Segurança em suas demandas por reforma. Ele também defendeu que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial passem por mudanças.
“O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo – o da igualdade soberana entre as nações – vem sendo corroído. Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego. Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução. No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos. A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável”, disse Lula.
Clima, fome, desiguladade
Lula iniciou sua fala mencionando a primeira vez que discursou na tribuna da ONU como presidente, em 2003, e usou a oportunidade para abordar a necessidade de combate às mudanças climáticas e à fome.
“Naquela época, o mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática. Hoje, ela bate às nossas portas, destrói nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres.”
“A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo está cada vez mais desigual. Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade.”
Lula lembrou ainda que os países ricos estão entre os principais responsáveis pelas emissões que alimentam as mudanças climáticas: “Os países ricos cresceram baseados num modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado.”
“Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas. São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera. Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo.”
Lula cobrou também mais incentivos financeiros para a preservação: “Sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade. A promessa de destinar 100 bilhões de dólares – anualmente – para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma promessa. Hoje esse valor seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de dólares.”
Desmatamento
Lula também mencionou em seu discurso a queda recente nas taxas de desmatamento da Amazônia, após o avanço da devastação sob Bolsonaro.
“Retomamos uma robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. Ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%. O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si.”
Julian Assange
O presidente mencionou rapidamente o caso do ativista australiano Julian Assange, que se encontra desde 2019 numa prisão de segurança máxima no Reino Unido, após passar sete anos vivendo na embaixada do Equador, em Londres, e que no momento corre o risco de ser extraditado para os EUA. O fundador do Wikileaks entrou na mira da Justiça após publicar documentos secretos sobre a atuação militar dos EUA no Iraque e no Afeganistão.
“É fundamental preservar a liberdade de imprensa. Um jornalista, como Julian Assange, não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima.”
Ucrânia x Rússia
Lula abordou apenas brevemente a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, um tema que suscitou críticas no primeiro semestre, por sugerir uma equivalência entre Kiev e Moscou no conflito. Na tribuna da ONU, Lula voltou a defender que a paz será apenas alcançada por meio de negociações, mas evitou fazer um julgamento sobre as causas do conflito.
“A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo. Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações”, disse o presidente brasileiro, sem se alongar muito no tema.
Contraste com Bolsonaro
A comitiva de Lula que foi aos Estados Unidos tem sete ministros e 24 parlamentares. Além do encontro na ONU, a agenda presidencial inclui encontros bilaterais como o presidente dos EUA, Joe Biden, e da Ucrânia, Volodimir Zelenski.
O discurso de Lula, pontuado por defesas ao multilateralismo, contrastou com as falas isolacionistas do seu antecessor na Presidência, o político de extrema-direita Jair Bolsonaro, que nas quatro ocasiões em que discursou na ONU usou o palco para denunciar ambientalistas, criticar outros países, atacar adversários e promover tratamentos fraudulentos contra a covid-19 – em falas que eram especialmente direcionadas para consumo de sua base radical de eleitores.
Isolado e alvo de reprovação internacional por causa do desmonte de políticas ambientais promovido por seu governo, Bolsonaro também teve poucos encontros bilaterais com outros líderes mundiais à margem da assembleia. Suas falas, por sua vez, provocaram fortes críticas de organizações ambientais.
Tradicionalmente, desde 1949 cabe ao Brasil fazer o discurso de abertura, seguido dos Estados Unidos. O primeiro chefe de Estado brasileiro a falar no encontro foi João Baptista Figueiredo, em 1982. Desde então, somente Itamar Franco não chegou a discursar na Assembleia Geral da ONU.
Último discurso em 2009
Alguns temas mencionados por Lula nesta terça-feira eram familiares. Em 2009, quando falou na ONU pela última vez em seu segundo mandato, Lula abordou tópicos como reforma em sistemas de governança global, em especial uma desejada ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma demanda antiga do Brasil, mas também de países como Alemanha e Japão. Ele defendeu ainda mudanças em organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
“Não é possível que, passados 65 anos, o mundo continue a ser regido pelas mesmas normas e valores dominantes quando da conferência de Bretton Woods [que estabeleceu regras financeiras e de comércio]. Não é possível que as Nações Unidas, e seu Conselho de Segurança, sejam regidos pelos mesmos parâmetros que se seguiram à Segunda Guerra Mundial”, dissera Lula no discurso de 2009.
À época, o mundo sofria os impactos da crise financeira de 2008-2009, que não afetou o Brasil imediatamente. “[O que faliu] foi a doutrina absurda de que os mercados podiam auto-regular-se, dispensando qualquer intervenção do Estado, considerado por muitos um mero estorvo”, disse o político petista na ocasião.
Lula ainda abordou temas mudança climáticas e cobrou uma atuação maior dos países ricos na questão: “Todos os países devem empenhar-se em realizar ações para reverter o aquecimento global.”
Outros temas desse discurso envolvem questões hoje basicamente esquecidas, como o golpe em Honduras que derrubou o então presidente Manuel Zelaya, que se refugiou na embaixada brasileira em Tegucigalpa. À época, em sua fala, Lula defendeu a restituição imediata do líder deposto ao poder. “Sem vontade, não há como evitar a proliferação de golpes de Estado como o que derrubou o presidente Manuel Zelaya de Honduras.”
Em 2010, último ano do seu mandato, Lula não tomou parte na Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo sido representado por seu então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/na-onu-lula-cobra-reforma-de-organismos-internacionais/a-66862225
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