No bioma que o agro mais devastou nos últimos anos, o maior território quilombola do país protege 83% de cobertura nativa – enquanto fazendas desmatam até 80% da vegetação. Projeto luta para colocar no mapa as comunidades invisíveis
Por: Duda Menegassi, em O Eco | Créditos da foto: Rute Pina/Agência Pública
As mesmas montanhas que deram abrigo e segurança para formação dos quilombos, hoje emolduram um dos principais refúgios do Cerrado em Goiás. Estamos no Território Quilombola Kalunga, o maior do país. Com mais de duzentos anos de história, estas terras já testemunharam muitos conflitos e mudanças. Algo, porém, manteve-se na essência Kalunga: a relação dos quilombolas com a terra e o respeito pelo Cerrado. Enquanto os pastos e as monoculturas avançam aceleradas pelo resto do estado, onde resta apenas cerca de 30% do bioma, em terra Kalunga a cobertura da vegetação nativa é de 83%.
Os dados, levantados a partir da plataforma MapBiomas, foram divulgados pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) durante evento realizado no Território Quilombola dos Kalunga, em parceria com o Ibama PrevFogo.
Palco de um desmatamento acelerado nos últimos anos, resta apenas 49% da cobertura nativa do Cerrado no Brasil. Deste total, menos de um quinto estão sob algum tipo de proteção formal, em unidades de conservação ou terras indígenas. Outros 13% do bioma estão em vazios fundiários, ou seja, terras públicas ainda não destinadas.
“A gente ouve falar o tempo inteiro de ponto de não-retorno na Amazônia, se é 20% [de desmatamento] mesmo. E a gente já perdeu metade do Cerrado. Será que existem áreas do Cerrado onde esse ponto de não-retorno já está se instalando? Existem áreas do Cerrado onde os córregos que antes tinham água o ano inteiro, hoje não têm mais. Existem áreas em que não temos mais como recuperar a vegetação original porque foi invadida por espécies exóticas. E áreas em que o processo de restauração é lento, quase impossível, porque o solo foi tão remexido que aquele banco de sementes se exauriu”, alerta a diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar.
A maior parte do que resta do Cerrado, 62%, está em propriedades particulares, vulnerável a uma legislação que permite o desmate legal de 65 a 80% da vegetação nativa. O Código Florestal estabelece que a Reserva Legal (área de vegetação nativa que deve ser mantida por lei nas propriedades rurais) nos domínios do Cerrado é de apenas 20% e, dentro do contexto geopolítico da Amazônia Legal, de 35%.
Desde 1985 até 2022, o Cerrado perdeu 25% da sua cobertura nativa, conforme dados do MapBiomas. Ou seja, em apenas 38 anos, o bioma perdeu um quarto de toda sua extensão, principalmente devido ao avanço da agropecuária. Em 2023, o desmatamento segue em alta no bioma.
“Nós não estamos falando de não produzir no Cerrado, estamos falando de produzir com responsabilidade e proteger o que ainda tem para proteger. Apesar dessa importância, uma área muito pequena do Cerrado está sob proteção formal e grande parte da vegetação nativa do Cerrado hoje está em áreas de propriedade privada”, completa Ane Alencar.
Um bom exemplo de como a produção pode ser aliada da conservação vem justamente das comunidades tradicionais, como mostram os números do Território Quilombola dos Kalungas. Muitos povos tradicionais, entretanto, seguem invisíveis sem o reconhecimento e proteção do governo.
“Nós sabemos que existem muitas comunidades tradicionais que não são reconhecidas oficialmente e nós queremos mostrar que elas existem e mostrar com dados reais o papel delas para conservação. A gente vê isso acontecendo com Terras Indígenas, com as comunidades que estão reconhecidas, mas não sabemos a dimensão disso porque tem muitas comunidades que a gente não conhece porque são invisibilizadas e não tem muito dado pro Cerrado sobre isso”, ressalta a analista de pesquisas do IPAM, Carol Guyot.
Carol conduz uma pesquisa, ainda em andamento, sobre o papel das comunidades tradicionais para a conservação do Cerrado e as ameaças que elas sofrem por não serem reconhecidas. “É urgente que elas sejam reconhecidas para que continuem contribuindo com a conservação do Cerrado”, pontua.
A pesquisadora é uma das responsáveis pela plataforma Tô no Mapa, realizada pelo IPAM junto ao Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e à Rede Cerrado, em parceria com o Instituto Cerrados, com o objetivo de dar maior visibilidade – e literalmente “colocar no mapa” – as comunidades tradicionais e seus territórios. A plataforma já mapeou 241 comunidades em todo o país.
Formalmente, os territórios quilombolas equivalem hoje a apenas 0,5% da cobertura nativa do Cerrado. Em todo o país, apenas 147 territórios quilombolas são reconhecidos e titulados, de forma parcial ou total.
“Foi uma luta de braço pelo nosso direito e pela permanência no território”, conta Seu Sirilo Rosa, de 69 anos, liderança na comunidade Engenho II, uma das 39 que existem dentro do território dos Kalungas. Ao todo, cerca de 8 mil pessoas vivem no quilombo.
O território foi reconhecido inicialmente pelo governo de Goiás em 1991 como “sítio histórico e patrimônio cultural” e certificado em 2005 como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares.
São 263 mil hectares, distribuídos por três municípios: Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Dentro dessas terras, a vegetação nativa do Cerrado mantém uma cobertura de 83,4%, sendo 73,9% de florestas e 9,5% de campos nativos.
Em fevereiro de 2021, o território Kalunga foi reconhecido pela ONU como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil.
O papel das comunidades tradicionais para conservação do Cerrado
Geraizeiros, apanhadores de sempre-vivas e quebradeiras de coco babaçu são algumas das outras identidades das comunidades tradicionais que refletem a diversidade sócio-cultural do Cerrado. Povos que dependem do bioma para manutenção dos seus modos de vida e, nessa relação, ajudam a conservar e a manejar o bioma.
“O modo de vida das comunidades, das populações tradicionais contribuem para a conservação. A forma como elas fazem sua roça, como elas utilizam da biodiversidade do local, na coleta de frutos, de óleos, no uso medicinal das plantas. Esse modo tradicional faz com que essas áreas se mantenham com vegetação nativa”, destaca a analista do IPAM.
É através da conservação do Cerrado que as comunidades mantêm aquilo que necessitam para sobreviver, sejam frutos, plantas medicinais, madeira, assim como a água.
O supervisor da brigada do PrevFogo, Charles Pereira, quilombola da comunidade Kalunga de Engenho II, confirma essa relação. “Todas as comunidades têm suas crenças, seu respeito pela natureza, as plantas medicinais, as áreas que não pode queimar. Tem gente que vive da mangaba, do caju e agora da baunilha-do-cerrado, que é uma planta da família das orquídeas. Tem áreas aqui que são sagradas, tem as raizeiras, que são as pessoas que fazem remédio. Todo mundo depende do Cerrado para sobreviver. São os saberes tradicionais”, resume.
O fogo como ferramenta de conservação do Cerrado
O fogo é um elemento natural do Cerrado. Na época, intensidade e frequência correta, ele ajuda a manter a riqueza do bioma – a savana mais biodiversa do mundo. “O fogo é um instrumento natural de manejo da paisagem do Cerrado. Essa paisagem heterogênea, ora com mais árvores, ora mais arbustos, mais campos, isso também é determinado pela ocorrência, frequência e intensidade do fogo”, explica a diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar.
Ela lembra ainda do Projeto de Lei nº 11.276/2018, atualmente parado no Senado, que cria a Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo. “É importante que a sociedade brasileira comece a entender qual o lugar do fogo e como usar o fogo”, reforça.
O conhecimento vem dos mais antigos. “Só queimava em abril e sexta-feira da Paixão. Ou em outubro, depois das primeiras chuvas. Chovia muito naquele tempo”, lembra José Rosa, de 69 anos, um dos mais velhos moradores da comunidade de Engenho II.
“Para fazer as queimadas naquele tempo, a gente reunia a companheirada. Ia uns na frente botando fogo e outros atrás apagando com o ramo do buriti verde. O abafador nosso era isso”, conta enquanto abre um sorriso.
O Território Quilombola Kalunga possui quatro brigadas do PrevFogo/Ibama, compostas por 75 brigadistas, majoritariamente quilombolas.
“É o Kalunga falando com o Kalunga, esse é o grande diferencial. E cada um conhece o seu território com a palma da sua mão”, conta o supervisor de brigada Pronto-Emprego do PrevFogo em Cavalcante, Charles Pereira.
Além disso, ter as próprias pessoas da comunidade sob a farda do PrevFogo e do Ibama facilita o diálogo com os demais moradores, a troca dos saberes tradicionais com os técnico-científicos e a confiança.
A atuação do PrevFogo no Território Kalunga começou em 2011, inicialmente com uma política “fogo zero” que causou atrito com a comunidade, que sempre usou o fogo como parceiro para limpeza das roças. Apenas a partir de 2014, as brigadas passaram a adotar o Manejo Integrado do Fogo (MIF), reconhecendo o papel das queimadas – de forma controlada – na manutenção do próprio Cerrado.
O trabalho tem dado resultado. O último grande incêndio no território foi em 2017.
Além do combate direto a eventuais incêndios, os brigadistas fazem um importante trabalho de prevenção. Isso inclui as queimas prescritas, realizadas entre abril e junho, quando não está tão quente, nem tão seco e é mais fácil conter as chamas. Neste tipo de ação, a equipe identifica as áreas que precisam ser queimadas para manter o ciclo natural do fogo e eliminar a vegetação seca que pode ser combustível para grandes incêndios. Em média, o intervalo entre as queimas é de 3 anos.
Há também a queima controlada, que tradicionalmente é feita pelos moradores para limpar e renovar sua roça. Feita durante os meses mais quentes do ano, esta queima é manejada pelos brigadistas com a delimitação de aceiros, e apoio de abafadores, sopradores e bombas d’água que fazem com que as chamas não se alastrem para além da área desejada.
De acordo com o supervisor do PrevFogo, hoje é a própria comunidade quem faz a maior parte das queimas controladas. “A gente faz um trabalho de ir de casa em casa pra perguntar quando vai queimar as roças”, conta Charles, que está na brigada desde 2011. “E tem as áreas sensíveis que a gente protege, como veredas e buritizais”, completa.
De acordo com dados do MapBiomas Fogo, cerca de 73% da área afetada pelo fogo no Território Quilombola Kalunga já foi queimada mais de uma vez. Apenas em 2022, 16.000 hectares foram queimados, tudo dentro do controle dos Kalungas.
Durante a imersão promovida pelo IPAM junto ao Prevfogo, os brigadistas realizaram a queima controlada em uma área de roça comunitária dos Kalunga. A favor ou contra o vento, induziram e apagaram as chamas com maestria, eliminando a vegetação seca sem deixar que o fogo crescesse mais do que deveria.
Em incêndios, as chamas descontroladas consomem largas extensões da paisagem e se atrevem a queimar ambientes sensíveis ao fogo como as veredas, buritizais e matas de galeria.
Já na ação controlada, os campos são queimados apenas dentro dos limites impostos através de aceiros – faixas sem material combustível que impedem a passagem do fogo. Nessas condições, ao invés de destruição, o fogo traz renovação. Seja de plantas que florescem e brotam após as chamas, até mesmo de animais, como formigas que chegam para se aproveitar do ambiente mais aberto.
“Nós estamos seguindo o que os antigos já faziam. A gente chama a queima prescrita de fogo dos antigos, porque eles são os verdadeiros sábios”, explica Charles.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/em-terras-kalungas-refugio-ao-cerrado-ameacado/
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