Influência na América do Sul e postura conciliadora histórica já posicionaram Brasil como mediador decisivo na solução de outros conflitos na região. Para especialistas, país deve entrar em cena para evitar nova escalada
Por: Matheus Gouvea de Andrade | Créditos da foto: Gustavo Ferreira/Acervo MRE. Sede do Itamaraty em Brasília: governo brasileiro já teve papel decisivo em outros conflitos na América do Sul
A América do Sul é tradicionalmente palco de poucos conflitos entre nações vizinhas. No entanto, nas últimas décadas, algumas questões envolvendo fronteiras levaram à escaladas militares.
Nestes momentos, o Brasil visto como independente e a principal potência regional, teve papel chave para evitar uma guerra de maiores proporções. Há 25 anos, o país foi fundamental nos chamados Acordos de Brasília, que colocaram fim a disputas de décadas entre Peru e Equador. É com este retrospecto que especialistas acreditam que o Brasil possa novamente auxiliar na manutenção da paz na região, desta vez entre Venezuela e Guiana.
“O Brasil estabeleceu seu território de maneira pacífica, e sempre buscou deixar a região livre de conflitos”, afirma o jurista e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer. O professor lembra o começo do século 20, quando o Itamaraty, então comandado pelo Barão do Rio Branco, teve papel fundamental nas constituições das fronteiras dos Estados-Nacionais da região nos atuais moldes de hoje.
Lafer avalia que o Brasil tradicionalmente tem local de atuação muito significativo, “exercendo um centro de gravidade na região”, algo que entrou em cena em outros momentos de tensão. Em 2008, uma disputa que também envolveu a Venezuela colocou em risco a estabilidade da América do Sul.
À época, o governo do então presidente colombiano Álvaro Uribe combatia as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e realizou uma operação militar em território equatoriano. A questão provocou fortes questionamentos de Quito, com o então presidente Rafael Correa entrando em duros embates com o governo de Bogotá.
A Venezuela, então comandada por Hugo Chávez, também ficou contra Uribe, com quem o venezuelano nutria uma rivalidade. Com as vias diplomáticas se extinguindo, muitos temiam um confronto militar. Neste momento, a mediação do Brasil entrou em cena, com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty buscando o diálogo para solucionar o tema. Lembrando o episódio, Lafer aponta que o governo Lula tinha como preocupação “evitar uma fragmentação na América do Sul”.
Para o professor de Direito Internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Raphael Vasconcelos, os maiores ativos do Brasil nestes contextos são a tradição do Itamaraty e a qualidade do seu corpo diplomático. “A postura conciliadora histórica e de neutralidade – interrompida apenas poucas vezes de forma irresponsável ao longo dos anos – dá ao Brasil credibilidade como um conciliador isento”, afirma.
Acordos de Brasília
Com 25 anos completos em 2023, os Acordos de Brasília são um dos casos mais simbólicos de como o Brasil atuou também para solucionar uma questão fronteiriça na região. A disputa entre Peru e Equador por um território de 78 quilômetros na fronteira dos dois países começou em 1941, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Nesse cenário, foi assinado no Rio de Janeiro, então capital, um protocolo entre os dois países sobre o tema, que tinha Brasil, Argentina, Chile e Estados Unidos como garantidores.
Em 1995, houve renovação das tensões entre Peru e Equador pela zona fronteiriça. O professor das Universidades Científica del Sur e San Ignacio de Loyola, em Lima, Francisco Belaunde, avalia que o risco de uma escalada militar era real. “Havia uma estratégia equatoriana de não reconhecer os Protocolos do Rio. Além disso, sempre que há enfrentamentos militares, há um risco que haja um cálculo errado de ação e que as coisas fiquem fora de controle, ainda que não seja a intenção de um país. Todos os conflitos podem avançar além da vontade dos envolvidos”, afirma.
Segundo Lafer, a questão em disputa era um trecho de fronteira com difícil delimitação, e as equipes técnicas do Brasil ajudaram a garantir um acerto que estivesse de acordo com a sensibilidade dos dois países.
Com mediação brasileira, os novos acordos propuseram medidas como parques ecológicos para benefício dos dois países, e a facilitação comercial de regiões do interesse do Equador. “Os Acordos de Brasília foram muito importantes, já que retomaram o protocolo do Rio, com algumas adições”, afirma Belaunde.
“Foi uma solução bem-sucedida para uma controvérsia. Se valeu da autoridade que o Brasil tinha com ambas as nações”, afirma Lafer. Em outubro deste ano, a presidente peruana Dina Boluarte recebeu o homólogo equatoriano Guillermo Lasso para uma cerimônia em Lima celebrando os 25 anos dos acordos, amplamente elogiados, especialmente pelo impulso aos laços comerciais entre os dois países.
Possibilidades de nova mediação
Na recente questão entre Venezuela e Guiana, que disputam a região de Essequibo, Lafer avalia que cabe ao governo brasileiro exercer um papel relevante, lembrando que o país tem fronteira com ambos, e há tratados sobre a Amazônia.
Além disso, para o ex-ministro, o “movimento da Venezuela pode abrir porta ao revisionismo fronteiriço na região, o que não interessa ao Brasil”. Os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Guiana, Irfaan Ali, concordaram em realizar uma reunião sobre a recente disputa. A conversa está marcada para quinta-feira (14/12), em São Vicente e Granadinas, país do Caribe que ocupa a presidência pro tempore da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). O governo Lula também participará do encontro, procurando a mediação.
“O Brasil é um país tão grande que tem um peso diplomático muito importante. Do ponto de vista de sua influência, interessa ser mediador em todos os tipos de conflitos. Em geral, é parte do prestígio”, diz Belaunde.
Por sua vez, Lafer lembra que, a diferença do conflito entre Peru e Equador é que esta é uma questão existencial para a Guiana, já que envolve dois terços de seu território, além de importantes zonas marítimas e de atividade econômica.
Além disso, uma série de interesses de outras potências é levantada quando o tema é tratado. Nos últimos anos, petroleiras dos EUA fizeram importantes investimentos na Guiana. Enquanto isso, a China mantém laços com os dois lados, e a Rússia tem uma série de cooperações com Caracas, incluindo militares.
Ainda assim, na visão do ex-ministro, cabe ao Brasil o papel de exercer sua influência regional neste caso. “A Rússia está muito envolvida na Ucrânia, enquanto a China tem interesses na região, mas deve seguir seu histórico e ser mais prudente”, avalia. Já Washington “ficaria muito satisfeita se o Brasil encaminhasse uma solução, principalmente por ter pouca influência interna na Venezuela hoje. Como Brasil tem alguma relação com Maduro, isso deve ajudar”, afirma Lafer.
Caminhos possíveis
Vasconcelos lembra que não há um rito ou tratado de aplicação obrigatória nestes casos, apesar de que a própria carta de fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) e as diretrizes do Direito Internacional servirem para balizar uma atuação mediadora.
Por sua vez, em 1º de dezembro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu que a Venezuela não pode tomar medidas para anexar a região de Essequibo. Segundo o professor, a existência de um procedimento em curso na CIJ impõe, por outro lado, contornos à atuação mediadora do Brasil, “que sempre esteve atento e defendeu o respeito à institucionalidade internacional”.
Para Vasconcelos, o foco do Brasil deve ser primeiro o de evitar o agravamento desse conflito no curto prazo – conseguindo, por exemplo, um compromisso do governo venezuelano de não ingressar no território em disputa e que o governo da Guiana não receba forças militares estrangeiras em suas fronteiras. Nas últimas semanas, autoridades guianenses mencionaram a possibilidade de permitirem a instalação de bases norte-americanas em seu território.
Além disso, o professor acredita que Brasília deve estimular concessões mútuas para que os dois Estados cheguem a um acordo definitivo sobre o conflito. Por fim, em caso de impossibilidade de acerto, cabe ao Brasil garantir que as partes se submetam à institucionalidade internacional – jurisdicional ou não – para neutralizar a crise no longo prazo.
A América do Sul é tradicionalmente palco de poucos conflitos entre nações vizinhas. No entanto, nas últimas décadas, algumas questões envolvendo fronteiras levaram à escaladas militares.
Nestes momentos, o Brasil visto como independente e a principal potência regional, teve papel chave para evitar uma guerra de maiores proporções. Há 25 anos, o país foi fundamental nos chamados Acordos de Brasília, que colocaram fim a disputas de décadas entre Peru e Equador. É com este retrospecto que especialistas acreditam que o Brasil possa novamente auxiliar na manutenção da paz na região, desta vez entre Venezuela e Guiana.
“O Brasil estabeleceu seu território de maneira pacífica, e sempre buscou deixar a região livre de conflitos”, afirma o jurista e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer. O professor lembra o começo do século 20, quando o Itamaraty, então comandado pelo Barão do Rio Branco, teve papel fundamental nas constituições das fronteiras dos Estados-Nacionais da região nos atuais moldes de hoje.
Lafer avalia que o Brasil tradicionalmente tem local de atuação muito significativo, “exercendo um centro de gravidade na região”, algo que entrou em cena em outros momentos de tensão. Em 2008, uma disputa que também envolveu a Venezuela colocou em risco a estabilidade da América do Sul.
À época, o governo do então presidente colombiano Álvaro Uribe combatia as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e realizou uma operação militar em território equatoriano. A questão provocou fortes questionamentos de Quito, com o então presidente Rafael Correa entrando em duros embates com o governo de Bogotá.
A Venezuela, então comandada por Hugo Chávez, também ficou contra Uribe, com quem o venezuelano nutria uma rivalidade. Com as vias diplomáticas se extinguindo, muitos temiam um confronto militar. Neste momento, a mediação do Brasil entrou em cena, com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty buscando o diálogo para solucionar o tema. Lembrando o episódio, Lafer aponta que o governo Lula tinha como preocupação “evitar uma fragmentação na América do Sul”.
Para o professor de Direito Internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Raphael Vasconcelos, os maiores ativos do Brasil nestes contextos são a tradição do Itamaraty e a qualidade do seu corpo diplomático. “A postura conciliadora histórica e de neutralidade – interrompida apenas poucas vezes de forma irresponsável ao longo dos anos – dá ao Brasil credibilidade como um conciliador isento”, afirma.
Acordos de Brasília
Com 25 anos completos em 2023, os Acordos de Brasília são um dos casos mais simbólicos de como o Brasil atuou também para solucionar uma questão fronteiriça na região. A disputa entre Peru e Equador por um território de 78 quilômetros na fronteira dos dois países começou em 1941, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Nesse cenário, foi assinado no Rio de Janeiro, então capital, um protocolo entre os dois países sobre o tema, que tinha Brasil, Argentina, Chile e Estados Unidos como garantidores.
Em 1995, houve renovação das tensões entre Peru e Equador pela zona fronteiriça. O professor das Universidades Científica del Sur e San Ignacio de Loyola, em Lima, Francisco Belaunde, avalia que o risco de uma escalada militar era real. “Havia uma estratégia equatoriana de não reconhecer os Protocolos do Rio. Além disso, sempre que há enfrentamentos militares, há um risco que haja um cálculo errado de ação e que as coisas fiquem fora de controle, ainda que não seja a intenção de um país. Todos os conflitos podem avançar além da vontade dos envolvidos”, afirma.
Segundo Lafer, a questão em disputa era um trecho de fronteira com difícil delimitação, e as equipes técnicas do Brasil ajudaram a garantir um acerto que estivesse de acordo com a sensibilidade dos dois países.
Com mediação brasileira, os novos acordos propuseram medidas como parques ecológicos para benefício dos dois países, e a facilitação comercial de regiões do interesse do Equador. “Os Acordos de Brasília foram muito importantes, já que retomaram o protocolo do Rio, com algumas adições”, afirma Belaunde.
“Foi uma solução bem-sucedida para uma controvérsia. Se valeu da autoridade que o Brasil tinha com ambas as nações”, afirma Lafer. Em outubro deste ano, a presidente peruana Dina Boluarte recebeu o homólogo equatoriano Guillermo Lasso para uma cerimônia em Lima celebrando os 25 anos dos acordos, amplamente elogiados, especialmente pelo impulso aos laços comerciais entre os dois países.
Possibilidades de nova mediação
Na recente questão entre Venezuela e Guiana, que disputam a região de Essequibo, Lafer avalia que cabe ao governo brasileiro exercer um papel relevante, lembrando que o país tem fronteira com ambos, e há tratados sobre a Amazônia.
Além disso, para o ex-ministro, o “movimento da Venezuela pode abrir porta ao revisionismo fronteiriço na região, o que não interessa ao Brasil”. Os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Guiana, Irfaan Ali, concordaram em realizar uma reunião sobre a recente disputa. A conversa está marcada para quinta-feira (14/12), em São Vicente e Granadinas, país do Caribe que ocupa a presidência pro tempore da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). O governo Lula também participará do encontro, procurando a mediação.
“O Brasil é um país tão grande que tem um peso diplomático muito importante. Do ponto de vista de sua influência, interessa ser mediador em todos os tipos de conflitos. Em geral, é parte do prestígio”, diz Belaunde.
Por sua vez, Lafer lembra que, a diferença do conflito entre Peru e Equador é que esta é uma questão existencial para a Guiana, já que envolve dois terços de seu território, além de importantes zonas marítimas e de atividade econômica.
Além disso, uma série de interesses de outras potências é levantada quando o tema é tratado. Nos últimos anos, petroleiras dos EUA fizeram importantes investimentos na Guiana. Enquanto isso, a China mantém laços com os dois lados, e a Rússia tem uma série de cooperações com Caracas, incluindo militares.
Ainda assim, na visão do ex-ministro, cabe ao Brasil o papel de exercer sua influência regional neste caso. “A Rússia está muito envolvida na Ucrânia, enquanto a China tem interesses na região, mas deve seguir seu histórico e ser mais prudente”, avalia. Já Washington “ficaria muito satisfeita se o Brasil encaminhasse uma solução, principalmente por ter pouca influência interna na Venezuela hoje. Como Brasil tem alguma relação com Maduro, isso deve ajudar”, afirma Lafer.
Caminhos possíveis
Vasconcelos lembra que não há um rito ou tratado de aplicação obrigatória nestes casos, apesar de que a própria carta de fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) e as diretrizes do Direito Internacional servirem para balizar uma atuação mediadora.
Por sua vez, em 1º de dezembro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu que a Venezuela não pode tomar medidas para anexar a região de Essequibo. Segundo o professor, a existência de um procedimento em curso na CIJ impõe, por outro lado, contornos à atuação mediadora do Brasil, “que sempre esteve atento e defendeu o respeito à institucionalidade internacional”.
Para Vasconcelos, o foco do Brasil deve ser primeiro o de evitar o agravamento desse conflito no curto prazo – conseguindo, por exemplo, um compromisso do governo venezuelano de não ingressar no território em disputa e que o governo da Guiana não receba forças militares estrangeiras em suas fronteiras. Nas últimas semanas, autoridades guianenses mencionaram a possibilidade de permitirem a instalação de bases norte-americanas em seu território.
Além disso, o professor acredita que Brasília deve estimular concessões mútuas para que os dois Estados cheguem a um acordo definitivo sobre o conflito. Por fim, em caso de impossibilidade de acerto, cabe ao Brasil garantir que as partes se submetam à institucionalidade internacional – jurisdicional ou não – para neutralizar a crise no longo prazo.
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