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O antirracismo seletivo de Macron

Emmanuel Macron descreveu o antissionismo como uma nova forma de antissemitismo. No entanto, ao associar todos os judeus franceses ao Estado de Israel, ele corre o risco de alimentar o ressentimento entre as vítimas do racismo.

Por: David Broder | Entrevista com: Maxime Benatouil |Tradução: Gercyane Oliveira | Crédito Foto: Sean Gallup / Getty Images. O presidente francês, Emmanuel Macron, chega à Cúpula do Euro de outubro em 17 de outubro de 2018 em Bruxelas, na Bélgica.

Se acreditarmos na palavra de Emmanuel Macron, a França tem um problema crescente com o antissemitismo. O presidente se dirigiu ao Conselho Representativo das Organizações Judaicas do país na semana passada, declarando um aumento do antissemitismo “sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial”. Já em 11 de fevereiro, seu ministro do Interior informou que em 2018 houve um aumento de 74% nos ataques a judeus. Fontes do governo também associaram esse desenvolvimento aos protestos dos gilets jaunes, pois os ministros culparam essa “praga marrom” pela vandalização racista de uma loja de bagels em Paris e pelos recentes ataques a jornalistas.

No entanto, muitos judeus franceses criticam essa tentativa de transformar as alegações de antissemitismo em uma arma. As denúncias de envolvimento dos gilets jaune no ataque à loja de bagels logo se mostraram infundadas, e a tentativa do presidente de considerar o antissionismo uma nova forma de antissemitismo obscureceu a distinção entre judeus e Israel. Ao mesmo tempo, os judeus antirracistas enfatizaram os perigos de uma abordagem de dois pesos e duas medidas que não leva a islamofobia e o racismo contra os negros tão a sério quanto o antissemitismo.

Para Maxime Benatouil, um dos principais membros da União Franco-Judaica pela Paz (UJFP), a luta contra o antissemitismo deve ser combinada com uma defesa consistente das minorias. Ele conversou com David Broder, da Jacobin, sobre a presença de atitudes antissemitas entre os protestos dos gilets jaunes, a tentativa de Macron de transformar os ataques aos judeus em armas e o perigo de colocar as minorias umas contra as outras.


DB

O filósofo Bernard-Henri Lévy afirmou que o antissemitismo está no centro do movimento dos gilets jaunes. Suas observações se encaixam em uma narrativa mais ampla em que os ministros e a imprensa pró-Macron pintaram o movimento como de extrema direita ou liderado por fascistas. Há alguma evidência de que ideias anti-establishment ou conspiratórias entre os gilets jaunes estejam ligadas ou não a temas antissemitas?

MB

Os comentários de Bernard-Henri Lévy são sintomáticos da reação contra os gilets jaunes. Esse é um movimento social real das classes trabalhadoras e populares e surgiu fora das estruturas políticas estabelecidas que tradicionalmente enquadram suas atividades. É verdade que houve sinais de antissemitismo nesse movimento, no qual a mídia francesa se concentrou especialmente, e também houve figuras nos protestos, como o ex-comediante Dieudonné [conhecido por usar a saudação quenelle e promover temas antissemitas].

Mas não há antisemitismo específico entre os gilets jaunes como tal, assim como não há no restante da sociedade francesa. E mesmo que o movimento reflita a sociedade em geral, à medida que cresceu, ele se tornou mais politizado e houve mais resistência entre as fileiras dos gilets jaunes contra o racismo, o sexismo, a homofobia e, de fato, o antissemitismo. Nesse sentido, o desenvolvimento político do movimento tem sido realmente surpreendente.

DB

Mas há evidências de ataques crescentes contra os judeus, ilustrados de forma mais clara pelo assassinato, no ano passado, da sobrevivente do Holocausto Mireille Knoll. De fato, foi relatado que houve um aumento de 74% nos incidentes antissemitas na França. O que você acha que está por trás disso?

MB

É terrível que ocorram tantos incidentes antissemitas – foi relatado que houve 531 incidentes desse tipo no ano passado. Mas não tenho certeza se é uma boa ideia apresentar esses números dessa forma. Embora os números que o Ministério do Interior forneceu à mídia francesa tenham relatado um aumento de 74% em relação ao ano anterior, na verdade, há dez anos, o número de incidentes desse tipo era de cerca de 800 por ano, muito maior do que agora. Talvez a decisão de falar de um aumento sem dar uma ideia da tendência geral tenha sido um erro, ou talvez haja motivos políticos para querer pintar esse quadro.

O governo está tentando sugerir que há um aumento nos incidentes antissemitas relacionados aos gilets jaunes – por exemplo, quando houve uma pichação racista em uma loja de bagels em Paris, o fato de ter sido feita com tinta amarela foi considerado pelo governo como prova de que era proveniente desses manifestantes dos “coletes amarelos”, e os ministros tuitaram nesse sentido. Mas descobriu-se que a pichação havia aparecido dois dias antes da manifestação em questão e, de qualquer forma, não estava em seu trajeto.

DB

Houve uma tempestade na mídia depois que o escritor Alain Finkielkraut foi chamado de “sionista sujo” na cara por um gilets jaune. Embora a palavra “sionista” possa ou não ser usada como um código para “judeu”, você não acha que esse tipo de incidente deixa o movimento aberto a críticas ou, pelo menos, dá a impressão de não demonstrar solidariedade aos judeus diante do antissemitismo?

MB

Finkielkraut é um conhecido escritor conservador e é de fato um sionista, com um longo histórico de polêmicas antipalestinas. Mas chamá-lo de “sionista sujo” ou dizer “volte para Tel Aviv” pode claramente ter uma dimensão antissemita.

Além de reconhecer isso, também vale a pena esclarecer duas coisas sobre Finkielkraut e esse incidente. Ele imediatamente procurou instrumentalizá-lo como se ele próprio fosse um antirracista. Mas não foi como se algum cidadão judeu aleatório, talvez usando um kipá, estivesse passando pela manifestação e fosse assediado pelos gilets jaunes.

Pelo contrário, Finkielkraut é uma figura pública bem conhecida. Na verdade, ele próprio é conhecido por ataques racistas, por exemplo, em uma entrevista ao Ha’aretz há alguns anos, na qual chamou o time de futebol francês de “preto-preto-preto” [subvertendo uma descrição comum de seu caráter multirracial, “branco-negro-árabe”], reclamando que não havia jogadores brancos suficientes.

Finkielkraut trabalha para uma das principais estações de rádio do país e convidou para seu programa um polêmico judeu ainda mais conservador, Éric Zemmour. Zemmour encobriu o legado do regime de Vichy do marechal Pétain, alegando que ele havia tentado salvar os judeus franceses e coisas do gênero.

Portanto, é claro que esses incidentes são ruins e não deveriam acontecer, mas dificilmente podem ser usados por essas figuras para caracterizar os gilets jaunes como propagadores do antissemitismo.

DB

Após o incidente com Finkielkraut, na última terça-feira, houve dois protestos diferentes contra o antissemitismo em Paris: o que os dividiu?

MB

Eles representaram duas concepções muito diferentes do que significa “antirracismo”. Anteriormente, falei sobre instrumentalização política e, de fato, um dos protestos foi convocado pelo Parti Socialiste (PS), em uma aparente tentativa de angariar apoio para si mesmo. O PS foi um partido importante por muito tempo, mas caiu para 6% dos votos na eleição presidencial de 2017 e foi forçado até mesmo a abandonar sua sede histórica.

Buscando reavivar sua base, convocou uma manifestação que incluiu os principais partidos, ou pelo menos La République en Marche, de Emmanuel Macron, e os Républicains, de direita. O comício foi um veículo para reunir os partidos do centro político e da direita.

Não apenas o Rassemblement National (ex-Front National) de Marine Le Pen não foi convidado, mas também, a princípio, o La France Insoumise. Essa foi uma tentativa de instrumentalizar o antissemitismo, com o objetivo de dar a impressão de que o partido de Jean-Luc Mélenchon é indiferente a esse problema. No entanto, figuras conservadoras e racistas foram incluídas na marcha convocada pelo Parti Socialiste, incluindo Éric Ciotti, um parlamentar dos Républicains que queria introduzir medidas para proibir o uso de símbolos religiosos, principalmente por mulheres que usam hijab e acompanham crianças em atividades fora da escola.

Para nós da União Judaico-Francesa pela Paz (UJFP) – uma organização judaica antirracista e antissionista – não faz sentido nos manifestarmos lado a lado com pessoas como essas. Ao mesmo tempo, as forças de esquerda – a France Insoumise, o Partido Comunista, mas também aquelas como o Parti des Indigènes de la République, cuja porta-voz Houria Bouteldja vem enfrentando há anos ataques infundados e difamatórios, provavelmente por ser uma mulher árabe que defende a justiça – não devem se envolver em um debate sem sentido sobre se são “antissemitas”, como já foi feito nos contextos britânico e americano.

Na terça-feira, nós da UJFP ajudamos a organizar uma manifestação separada que insistiu na necessidade de tornar a luta contra o antissemitismo parte de um antirracismo consistente. A manifestação no distrito de Menilmontant, em Paris, foi realizada em conjunto com o Novo Partido Anticapitalista e outras organizações, como os Indigènes de la République e outros grupos que representam trabalhadores árabes e pessoas de ascendência africana.

Não podemos combater o racismo de uma forma que simplesmente absolva o Estado de sua própria responsabilidade pela promoção do antissemitismo, da islamofobia, do racismo contra negros e ciganos e, de fato, da dinâmica destrutiva criada quando se tenta priorizar o combate a uma forma de racismo em detrimento das outras.

DB

Enzo Traverso apontou para o sentimento de discriminação que pode surgir quando o Estado leva o racismo contra algumas minorias menos a sério do que outras, fazendo com que elas se sintam menos valorizadas e protegidas. No entanto, ao mesmo tempo em que o Estado francês proclama sua luta contra o antissemitismo, é notável o quão pouco seus líderes têm se manifestado contra a ideia de que os judeus não estão seguros na França, por exemplo, quando, após os ataques de Paris em novembro de 2015, o premiê israelense Benjamin Netanyahu afirmou que os judeus franceses deveriam se mudar para Israel para ter segurança real. Como o antirracismo pode ser desvinculado da “vitimização competitiva” ou de colocar as minorias umas contra as outras?

MB

Em 2017, Emmanuel Macron organizou a primeira homenagem aos ataques “Vel d’Hiv”, em que os judeus foram reunidos em um velódromo em Paris antes de serem transportados para os campos de extermínio na Alemanha. Escandalosamente, ele fez isso junto com Benjamin Netanyahu, de modo que o chefe de uma potência estrangeira foi retratado como se fosse um representante dos judeus franceses e, portanto, como se esses últimos cidadãos fossem menos franceses. Nesse evento, Netanyahu ficou muito satisfeito, no entanto, ao ouvir Macron retratar o antissionismo e a campanha de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) como uma nova e perigosa forma de antissemitismo.

O que gostaríamos é que a sociedade francesa e o Estado francês levassem todo racismo tão a sério quanto o antissemitismo. A luta contra os ataques aos judeus não pode ser realizada de uma forma que também alimente a islamofobia ou vise outras minorias. Portanto, estamos tentando criar um espaço antirracista onde possamos colaborar e traçar estratégias com outros movimentos antirracistas de uma forma que não se limite a responder ao último ultraje antissemita e depois não dizer mais nada sobre racismo.

Para citar um exemplo disso, quando a sobrevivente do Holocausto Mireille Knoll foi assassinada e houve uma manifestação contra o antissemitismo, certamente não tivemos vontade de participar de uma manifestação que também incluísse a Frente Nacional (FN). De fato, naquela ocasião, até mesmo a Liga de Defesa Judaica, uma organização de extrema direita e ultrassionista, também não quis ficar em silêncio sobre a presença do FN. A forma particular do Estado de combater o antissemitismo, desconsiderando outros racismos e apresentando qualquer ataque a um cidadão judeu como um ataque a toda a República Francesa, pode, em parte, alimentar o pensamento conspiratório e o ressentimento contra os judeus, se eles forem vistos como protegidos de uma forma que outros não são. Estamos fazendo muito mais para combater o antissemitismo quando lutamos contra todo o racismo do que quando o tratamos de forma totalmente isolada.

DB

Nos últimos dias, Emmanuel Macron propôs classificar o “antissionismo” como uma forma de antissemitismo. Houve até a sugestão de que isso poderia levar a uma nova legislação para criminalizar algumas formas de crítica a Israel. Que medidas exatas você espera que isso envolva?

MB

O antissionismo e a oposição a Israel são uma opinião política que não deve, de forma alguma, ser restringida por lei. É claro que o antissionismo é uma ideia que pode ter muitos significados diferentes, desde a oposição generalizada entre os judeus ao projeto sionista, antes do estabelecimento do Estado de Israel em 1948, até a posição daqueles que não querem destruir Israel, mas sim transformá-lo em um Estado de todos os seus cidadãos, incluindo os cerca de 20% da população que são árabes-palestinos. Recentemente, é claro, a lei do estado-nação, em vez disso, retirou o status oficial do árabe em Israel e impôs uma discriminação ainda mais severa contra os palestinos.

Emmanuel Macron foi convidado a discursar no jantar do Conselho de Organizações Representativas dos Judeus (CRIF), que, apesar de um passado mais progressista, tornou-se uma força pró-Israel de extrema direita entre os judeus franceses – quase como uma segunda embaixada israelense -, embora a mídia francesa muitas vezes a apresente como a voz de toda a “comunidade judaica”. Ela é muito mais direitista e branda com os neonazistas até mesmo do que a AIPAC.

Podemos ver isso em sua completa falta de reação à iniciativa de Netanyahu de oferecer cargos importantes aos kahanistas (supremacistas judeus, que resistem firmemente às críticas à matança de palestinos) com a sua reeleição.

O CRIF tem pressionado para que o antissionismo seja classificado como antissemita e, quando Macron discursou em seu jantar, disse que, por trás da oposição à existência de Israel, havia “a negação do judeu”. Ele disse que a definição de antissemitismo apresentada pela Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto (IHRA) deveria ser adotada como lei, incluindo os exemplos específicos que ela lista. Esses últimos já causaram polêmica no Partido Trabalhista da Grã-Bretanha, pois especificam que é antissemita dizer que “a existência de um estado de Israel é um empreendimento racista”.

Isso implicaria que um crítico do colonialismo exercido pelos assentados poderia ser considerado um “antissemita” pelo fato de se opor ao “direito do povo judeu à autodeterminação”. Não se sabe ao certo quais medidas específicas serão tomadas. Mas como Macron falou em inserir a definição do IHRA no código penal, isso criminalizaria e impediria ainda mais o trabalho da campanha francesa do BDS e o movimento de solidariedade na Palestina.

Até o momento, os partidos de esquerda – como o France Insoumise (LFI) e o Partido Comunista Francês – mantiveram silêncio sobre suas críticas a essa medida, porque não querem ser arrastados para outra disputa sobre o assunto. Eles não demonstraram muita coragem. Adrien Quatennens, um jovem e brilhante parlamentar do LFI, disse que “não é uma ideia muito boa”.

Mas nós, como organização judaica antissionista, estamos respondendo com mais firmeza. Nós, juntamente com nossos aliados, resistiremos a esse ataque à liberdade de expressão. Como oponentes consistentes do antissemitismo e antirracistas consistentes, defenderemos o direito de criticar Israel e, acima de tudo, de demonstrar solidariedade aos palestinos.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2024/03/o-antirracismo-seletivo-de-macron/

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