É preciso entender os efeitos subjetivos da reforma curricular. “Itinerário formativo” responsabiliza individualmente os jovens e seus planos de futuro. E disparidade do ensino — ter ou não aula de dança, por exemplo – alimenta “feridas pessoais”
Por: Roberto Rafael Dias da Silva | Crédito Foto: Tânia Regô/Agência Brasil
Milena cursa o segundo ano do ensino médio em uma escola estadual que fica muito próxima de sua casa. Moradora da periferia urbana de uma cidade média do sul do Brasil, a estudante, provavelmente, será a primeira pessoa a concluir o ensino médio em sua família: sua mãe parou de estudar na oitava série, seu padrasto deixou a escola na 6a e seus dois irmãos ainda estão na educação infantil. Ocupa seu tempo contribuindo na organização da casa, cuidando de seus irmãos e conversando com sua amiga Clara pelo celular. Sua experiência escolar vincula-se ao Novo Ensino Médio: estuda quinze disciplinas diferentes e escolheu cursar um itinerário na área de Ciências Humanas, no qual participa de atividades de Projeto de vida e Iniciação Científica. Queria muito estudar alguma atividade artística no contraturno escolar; mas, neste momento, sua mãe – que trabalha como doméstica na casa de uma família de classe média baixa do mesmo bairro em que moram – não está conseguindo pagar.
Situação diferente encontramos com sua amiga Clara, filha da patroa de sua mãe, que estuda em uma pequena escola privada na parte mais central do bairro. A estudante é filha de um funcionário público e de uma enfermeira que, morando em casas separadas, organizaram uma rotina para o desenvolvimento de sua filha. Sua escola de ensino médio fez uma ‘adesão seletiva’ ao conteúdo da reforma curricular e, dessa maneira, sua carga horária escolar foi ampliada e os itinerários correspondem a menos de 10% da carga horária. Além de uma agenda formativa direcionada para o Enem e para os vestibulares das universidades públicas, Clara tem aulas de Projetos de Vida, Robótica e Escrita Criativa. Frequenta um clube de idiomas e o voluntariado de sua igreja no turno da tarde. E, certamente, também dedica várias horas por dia para conversar com Milena, sua melhor amiga.
Reconstruir, ainda que de modo breve, as trajetórias de Milena e Clara, trata-se de um exercício fundamental para rastrear as novas desigualdades que são engendradas no contexto do Novo Ensino Médio no Brasil, particularmente no que concerne ao desenvolvimento de projetos de vida como eixo estruturante destes currículos. A reforma do ensino médio, constituída no contexto de publicação da versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), atribuiu centralidade para o desenvolvimento de projetos de vida na escola dos adolescentes e jovens. A criação recente das políticas curriculares estaduais levou adiante a este direcionamento, favorecendo com que todos os estados brasileiros apresentassem em seus documentos e diretrizes o projeto de vida como uma dimensão estruturante, seja como componente curricular específico, seja como princípio orientador dos currículos desta etapa da escolarização.
A hipótese que desenvolverei neste pequeno texto, a partir da narrativa das experiências escolares de Milena e Clara, no Novo Ensino Médio, é que estamos assistindo ao advento de um novo sistema de desigualdades na escola dos adolescentes e jovens. As críticas a esta reforma curricular têm sido muito relevantes nos últimos anos e, mais recentemente, revela certa decepção com os direcionamentos que a atual equipe do Ministério da Educação têm produzido para esta questão. Este texto, então, pretende levar adiante a maior parte destas críticas e tentar decifrar o cenário em que estamos vivenciando, no qual as desigualdades tornaram-se mais individualizadas e diversificadas.
Com François Dubet, tenho aprendido que a estrutura das desigualdades apresentou-nos um amplo conjunto de “provações individuais e de sofrimentos íntimos que nos enchem de cólera e nos indignam”. Os modos pelos quais as desigualdades são percebidas ultrapassa (mas não exclui) as clássicas dimensões da renda, do acesso a bens materiais e culturais ou mesmo os critérios convencionais para definir a pobreza. À medida em que há uma reconfiguração do capitalismo industrial, as próprias identidades de classe ou de outras formas de hierarquia, as novas formas de sofrimento ou de percepção das injustiças foram multiplicadas. Acompanhando o sociólogo francês, poderíamos pensar que estamos diante de “um mundo fracionado segundo uma infinidade de critérios e dimensões”. Em outras palavras, nosso vocabulário social nem mesmo consegue nomear a estes novos grupos e critérios.
Entre incluídos e excluídos, precários e estáveis, integrados e desintegrados ou ganhadores e perdedores, novas comparações são engendradas deslizando de uma “desigualdade das posições sociais” para uma “desigualdade dos indivíduos”. Dubet é bastante perspicaz em seu diagnóstico, uma vez que consegue intuir que, hoje, “as pequenas desigualdades parecem bem mais pertinentes do que as grandes”. A experiência das desigualdades convertida em desafios íntimos e singulares não consegue oferecer razões para que lutemos juntos para transformar a ordem das coisas.
Antes de prosseguirmos, merece destaque a sinalização do sociólogo francês acerca das desigualdades políticas no interior destas novas percepções da desigualdade.
A distância entre provas individuais e os desafios coletivos abre espaço para o ressentimento, as frustrações, por vezes ao ódio pelos outros, a fim de evitar o desprezo de si mesmo. Ela gera indignações, mas, por enquanto, estas não se transformam em movimentos sociais, em programas políticos e tampouco em interpretações sensatas da vida social.
No que tange à questão dos adolescentes e jovens que vivenciam cotidianamente os desafios do Novo Ensino Médio – marcadamente Clara e Milena, que escolhi para abrir este texto – necessitamos apresentar três ponderações. A primeira delas refere-se ao próprio desenho da proposta curricular que atribui ênfase para as escolhas individuais, supondo que os estudantes podem personalizar os seus percursos formativos. À medida em que a individualização das responsabilidades torna-se um imperativo curricular e a capacidade de escolha apresenta-se como seu operador conceitual, verificamos a constituição de um currículo que responsabiliza aos mais fracos pelas suas escolhas.
Quando Milena e Clara frequentam duas experiências escolares diferenciadas, há poucas quadras de distância, não deveríamos perceber somente as “grandes” desigualdades (de classe, de acesso ou de distribuição de bens simbólicos). Há uma série de operações que transformam essas desigualdades em questões singulares, individuais ou a provas particulares a serem enfrentadas. A necessidade de escolher um itinerário formativo ou a planejar um projeto de vida mediante a ausência de experiências formativas relevantes é bastante cruel!
Ainda gostaria de acrescentar uma terceira ponderação: ter ou não ter aulas de dança, cursar ou não uma atividade extraclasse, preparar-se ou não para exames seletivos como o Enem são percebidos pelos estudantes como “feridas pessoais”. Explica Dubet que “a mudança de sistema de desigualdades está associada a uma mutação nos modelos de justiça”. Ou, em outras palavras, quando o mérito individual é absolutizado como princípio curricular, as dores da impossibilidade ou do fracasso são sentidas por indivíduos singulares.
Enfim, os efeitos curriculares e subjetivos do Novo Ensino Médio precisam ser estudados em suas minúcias, não somente para decifrarmos o sistema de desigualdades nele engendrado. A luta política tem nos mostrado a exigência de uma nova sensibilidade e sugere a necessidade de novas ferramentas teóricas para seu enfrentamento. Há que se enfrentar essa questão para dela emergir novos dispositivos de luta e de resistência a uma política que responsabiliza – individualmente – nossas futuras gerações!
Veja em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/o-novo-ensino-medio-e-as-novas-desigualdades/
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