Em quanto é preciso reduzir as emissões de CO2. Por que a saída não é tecnologia e mercados – mas redistribuição de riquezas e desalienação. Como Economia e Ecologia podem andar juntas nesta trilha, se descartarem a Crematística
Por: Isabela Callegari
É comum que a comparação da economia nacional com uma economia doméstica seja utilizada para justificar as políticas de austeridade, nos mais diferentes meios de comunicação. Tal argumentação ignora o fato de que o governo nacional não tem limitação de emissão da sua própria moeda, e que o crescimento econômico, o nível de tributos e a taxa de juros são variáveis dependentes das ações do governo, o que não é uma situação análoga à de uma família. Assim, como muitas vezes já contra-argumentado, a comparação está equivocada no que concerne ao sistema monetário e às variáveis macroeconômicas.
Longe da simples equivalência ou transposição de uma “pequena casa à grande casa”, no entanto, a etimologia da palavra Economia nos mostra que ela de fato significa “Administração da casa” ou “Regras da casa” (do grego, Oikos que é casa, moradia; e Nomos, que é administração, organização, distribuição). Ou seja, em um sentido amplo, estamos falando da administração dessa grande casa comum, considerando suas características específicas – que também se diferenciam daquelas de uma unidade familiar. Assim, a palavra Economia está intimamente ligada ao conhecimento da nossa “casa”, pertinente à Ecologia, bem como, o exercício da Economia suporia o compromisso com a gestão equilibrada da atividade produtiva, dos elementos naturais usados como recursos, da reprodução social e da distribuição dos bens e serviços, tendo consciência do funcionamento da biosfera e dos impactos da ação antrópica.
Isso nos remonta ao fato de que Aristóteles estabeleceu uma diferença crucial entre a Economia e a Crematística, onde a última seria o movimento feito em prol da acumulação do dinheiro por si mesmo. Assim, a Economia trataria da necessária troca monetária, derivada do uso do dinheiro como meio, enquanto a Crematística envolveria as ações e estratégias destinadas ao mero acúmulo financeiro. Fica evidente, portanto, que o que se exerce majoritariamente sob o nome de Economia é na verdade a chamada Crematística, para a satisfação dos objetivos capitalistas, ao passo em que é imprescindível e urgente aderirmos ao verdadeiro significado de Economia, indissociável da Ecologia, inclusive para a nossa sobrevivência e bem-estar.
Atualmente, estamos presenciando uma guinada – tanto alardeada quanto tardia – de discursos oficiais, políticas e financiamento para o enfrentamento das mudanças climáticas, frente à escalada de eventos ambientais extremos vividos pelas populações. No entanto, tais ações seguem ainda balizadas pela crematística, e à revelia das evidências ecológicas. Primeiramente, apenas no que concerne à questão climática, temos que o Holoceno (iniciado cerca de 11,65 mil anos atrás) é a Era geológica caracterizada por uma inédita estabilidade, que possibilitou a agricultura, o sedentarismo e o surgimento de sociedades complexas. Assim, os efeitos que estamos tentando conter envolvem secas sem precedentes, extinções em massa, derretimento das calotas polares e aumento do nível do mar, dentre outros decorrentes desses, e outros ainda não totalmente previsíveis. Colocado de outra forma, buscamos evitar que os seres humanos vivam em um cenário climático que nunca vivenciamos enquanto espécie.
Sá Barreto (2021a; 2021b) nos traz alguns dados de extrema relevância para dimensionarmos o crescimento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, que se dá nos últimos 250 anos. Durante a maior parte do Holoceno, tal concentração esteve em torno de 280 ppm (partes por milhão). Em 2012 atingiu-se o patamar de 439,9 ppm, o valor mais alto em 800 mil anos. Já em 2020, a concentração de CO2 apenas atingiu a marca de 409,9 ppm, algo sem precedentes para os últimos 3 milhões de anos. Além da óbvia coincidência desse aumento exponencial com a forma de produção desencadeada pela Revolução Industrial, a parcela de emissões derivada da atividade humana (emissões antropogênicas) também é verificável por meio da mensuração de diferentes isótopos de carbono.
Desde 2017 emitimos mais de 50 bilhões de toneladas de CO2 equivalente anualmente. Enquanto isso, estima-se que a vegetação do planeta absorva aproximadamente 5 bilhões de toneladas de CO2 equivalente por ano, de modo que cerca de 3 a 4 ppm se acumulam na atmosfera anualmente. Mesmo na pandemia, onde a atividade econômica diminuiu drasticamente e as emissões tiveram um recuo inédito, a concentração de gases na atmosfera seguiu em ascensão, pois nosso nível de emissões é muito superior do que a vegetação consegue capturar (Sá Barreto, 2021b).
Um problema adicional é que a relação entre a concentração de gases e a elevação da temperatura não é algo estável, como se imaginava anos atrás, uma vez que há pontos críticos e de não-retorno, devido à multiplicidade e complexidade dos fatores biogeofísicos envolvidos. Com isso, a realidade é que a temperatura da Terra já está 1,7 graus acima da média pré-industrial, e a meta mais leniente que temos, estabelecida no Acordo de Paris (2015), de manter essa diferença em no máximo 2 graus Celsius até 2100, será provavelmente descumprida já em 2030 (UOL, 2024). Outras metas, como as de manter a concentração de gases de efeito estufa entre 350 ppm e 550 ppm, ou então, de chegar em 2030 com um nível de emissões anuais de 23,3 bilhões de toneladas de CO2 equivalente, e 2050, com emissões nulas, também são diametralmente opostas à trajetória que estamos seguindo.
Ainda, o clima é apenas um dos 9 limites planetários que estabelecem um espaço seguro para a nossa vida e a de outras espécies, 6 dos quais já foram ultrapassados: (i) mudanças climáticas; (ii) integridade da biosfera; (iii) mudanças no uso da terra (conversão da vegetação natural em outras paisagens); (iv) uso de recursos hídricos; (v) ciclos biogeoquímicos entre seres vivos, atmosfera, solo e água; e (vi) a liberação de novos produtos sintéticos no ambiente (microplásticos, resíduos nucleares, inseticidas etc.) (NEXO, 2024).
No entanto, todas as soluções apresentadas globalmente estão orientadas para o mesmo caminho, apostando na garantia de grandes somas de dinheiro voltadas ao desenvolvimento e implementação de novas tecnologias. O aumento da eficiência está no cerne da hipótese de descolamento (decoupling em inglês), que embasa a agenda da Economia Verde ou crescimento verde. Advoga-se que é possível seguir crescendo e mantendo o modo de consumo atual, ao mesmo tempo em que se diminui o impacto ambiental por meio da maior eficiência tecnológica.
Tal argumento guarda semelhança com a ideia de gotejamento (trickle-down economics, em inglês), de que os trabalhadores eventualmente se beneficiariam da acumulação capitalista, apesar da concentração de renda. As duas ideias se assemelham tanto por legitimarem o estado das coisas, na instância ecológica e social, respectivamente, como por serem dependentes uma da outra nesse momento histórico. Não apenas o padrão de consumo dos capitalistas é completamente desproporcional em termos de impacto ambiental, como é do seu interesse de classe que o mundo busque mimetizar o seu modo de vida, e que o consumo de massa seja impulsionado. Além disso, necessitam manter estratégias de obsolescência programada, de flexibilização ambiental e de expansão territorial, de modo que são convenientes as decisões políticas baseadas na hipótese de que a maior eficiência tecnológica basta. Por sua vez, a população, mesmo sofrendo o caos ambiental e social, acredita que o acúmulo infinito a beneficia, pelo gotejamento, e que, por isso, o único caminho é de fato o descolamento, e não uma reestruturação social profunda.
Parrique et al (2019) compilam evidências de que o foco exclusivo em melhorias técnicas é absolutamente insuficiente para a necessária diminuição na pressão ambiental, o que está relacionado a sete motivos chave. (I) Primeiramente, independente do grau de eficiência, quanto mais os elementos naturais são extraídos, proporcionalmente mais energia e recursos são usados por unidade extraída. (II) Em segundo lugar, a maior eficiência diminui o custo, de forma que o excedente monetário se reverte em aumento de consumo do mesmo bem ou de outros, o que é chamado de efeito rebote. (III) Em terceiro lugar, as melhorias técnicas em uma área tendem a acarretar novos problemas em outra. Como exemplo atual, temos que os produtos menos emissores de gases de efeito estufa utilizam uma quantidade extremamente superior de minerais. (IV) Em nome da hipótese do descolamento, muito se fala na migração para uma economia baseada em serviços. Porém, desconsidera-se que todos os serviços têm um lastro material e uma cadeia produtiva envolvida no seu provimento. (V) O potencial da reciclagem é limitado pela intensidade energética do processo, pela necessidade de adição de materiais novos, e pela menor capacidade de materiais reciclados atenderem às demandas sociais. (VI) Há um direcionamento falho do progresso técnico em si, muitas vezes incompatível com as necessidades ecológicas reais. (VII) E, por fim, muitas das evidências apresentadas em favor da hipótese de descolamento desconsideram que o impacto ambiental não foi diminuído, mas apenas migrou para outro país ou região.
Assim, observa-se que a necessidade de acumulação não apenas impulsiona politicamente a ideia de descolamento para o seu próprio objetivo, como condiciona as respostas ecológicas ao lucro, resultando em novos nichos de mercado igualmente expansivos e ambientalmente danosos, como o de painéis solares, e impedindo o desenvolvimento tecnológico e a viabilidade de outras ações ecologicamente necessárias, porém pouco rentáveis, como a reciclagem de certos materiais e a reestruturação das cidades. A produção de carros elétricos individuais é impulsionada como uma grande solução, mas há ausência de planejamento que diminua em larga escala a necessidade de carros individuais, por exemplo. Nesse sentido, embora o desenvolvimento técnico visando a eficiência seja sempre bem-vindo, a hipótese do descolamento serve para evitar o debate acerca da suficiência.
Mesmo dentro de um paradigma reformista, o Estado deve exercer o papel de desafiar a acumulação se quisermos de fato lidar com a crise climática. Vultuosos investimentos seguem sendo necessários, mas muitos serão incompatíveis com o lucro ou ainda, podem influenciar negativamente o lucro de ramos estabelecidos. Determinados produtos e setores teriam que ser descontinuados e deve haver planejamento para a realocação de trabalhadores, bem como um forte sistema de proteção social prévio.
O planejamento estatal deve também guiar a reorientação produtiva e possíveis reconversões industriais, bem como as empresas devem estar sujeitas a regras mais rigorosas de logística reversa de seus produtos. Por fim, em termos de cooperação internacional, é urgente que sejam banidas estratégias voltadas à obsolescência programada, e que os países periféricos tenham suas dívidas externas perdoadas e processos de dolarização revertidos, uma vez que a necessidade de atrair capital externo tende a impulsionar o extrativismo e a flexibilização ecológica.
Esses são apenas alguns exemplos de medidas voltadas à suficiência e à diminuição do uso de recursos de forma absoluta, que não dependem de grandes avanços tecnológicos, mas sim, requerem embates políticos que contrariam grandes interesses, e no limite, a própria lógica capitalista. E se por um lado, tais ações parecem politicamente irreais ou utópicas, por outro, são apenas consequências da análise concreta e das evidências. A urgência da suficiência deriva da realidade ecológica da nossa casa comum e não deveria haver nada de ambicioso em estabelecer regras para a nossa própria sobrevivência. Se isso nos parece impossível, não resta alternativa que não seja tornar possível o impossível.
Veja em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/pedagogia-do-caos-climatico/
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