Clipping

Para escapar da prisão invisível

Em todo o mundo eurocêntrico, a política permanece impotente — porque os muito ricos preferem o fim do planeta ao fim de seus privilégios. O que é preciso para vencê-los? Qual o papel, neste cenário, de um jornalismo de profundidade?

Por: Redação Outras Palavras | Imagem: Paulete Matos

Eleito em meio a esperanças, o governo acabou por ceder aos que capturam, sem nada produzir, a riqueza de um país regredido e extenuado. Por isso, o Parlamento apressou-se a aprovar as novas leis, que reduzem direitos sociais e ampliam a desigualdade. Tramitaram a jato, em violação mal disfarçada à Constituição. Em debate público, houve chantagem explícita dos “mercados”, que investiram contra a moeda nacional. A mídia participou, ao difundir as ideias – evidentemente falsas – de que “as contas públicas não fecham” e “é necessário um ajuste fiscal”.

Os parlamentares da oposição que resistiam foram demovidos pela liberação de bilhões de reais em emendas. Mas ao recompensá-los, o Executivo não ganhou mais liberdade. Ao contrário: pagou para que lhe vestissem uma camisa-de-força. Agora, será ainda mais difícil ampliar os investimentos públicos. Num contexto adverso, enquanto não há força para reformas estruturais, seriam o principal caminho para reduzir a injustiça social. Mas escandalizam o 0,1% que quer o dinheiro do Estado apenas para si.

Ao vencer, este grupo se prepara (e se fortalece) para novas pressões. Não haverá trégua. Foi pouco, dizem os porta-vozes dos rentistas, mal terminadas as votações. O ministro da Fazenda e o novo (?) presidente do Banco Central lhes dão razão: “não existe bala de prata”, disseram há poucos dias, para sugerir que novas maldades virão. Como no filme O Feitiço do Tempo, o “ajuste fiscal” é um pesadelo que nunca termina.

* * *

São bastante conhecidos – e viáveis – os meios para evitar um colapso climático. O uso de combustíveis fósseis precisa ser reduzido, por meio de amplos investimentos em fontes energéticas limpas. Redes de transporte coletivo devem substituir, em larga medida, o automóvel. A construção das infraestruturas necessárias tem um efeito colateral positivo, pois pode gerar milhões de ocupações dignas, num mundo carente de direitos para as maiorias. Reduzir o abismo social importa – pois o 1% mais rico (77 milhões de pessoas) emite, por seu padrão de consumo, tanto CO² quanto os 66% mais pobres (5 bilhões de humanos)… O combate ao consumismo pode ser complementado com medidas específicas, como a restrição à pecuária industrial. Não podem ser mais tolerados processos hoje muito difundidos – como a obsolescência programada e a produção incessante de embalagens descartáveis (especialmente plásticos).

E apesar de estarmos todos cientes dos caminhos, fracassam, uma após a outra, as conferências da ONU convocadas para encarar o problema. Nada indica, por enquanto, que será diferente na COP30, em Belém. Os dois principais motivos são normalmente ocultados, pois apontam para o parasitismo do capital financeirizado. No Ocidente, as corporações agigantaram-se e já não aceitam ser limitadas nem pelas sociedades, nem pelos Estados. Um pequeno tributo internacional sobre as transações financeiras (como a Taxa Tobin), ou sobre a exportação de petróleo e minérios, permitiria financiar a transição energética nos países pobres, hoje sem forças para realizá-la. A construção de grandes redes de ferrovias e metrôs (como se faz na China) faria despencar as viagens unipessoais e a venda de carros. O que impede a adoção de medidas como estas não é sua suposta inviabilidade mas… sua eficácia.

O segundo motivo talvez seja de ordem político-psicanalítica. Como não se cansa de lembrar o economista Ladislau Dowbor, os avanços técnicos das últimas décadas permitiriam assegurar vida digna a todos os seres humanos. A riqueza produzida coletivamente equivale a 3,3 mil dólares por mês (R$ 20 mil) por família de quatro pessoas.

Mas onde há abundância, não há privilégio. É óbvio que o Brasil será um país mais justo e feliz, se o Estado destinar ao SUS, à escola pública de excelência e à despoluição dos rios urbanos os R$ 800 bi que transfere todos os anos aos rentistas. Mas talvez a frase célebre de Mark Fisher (“parece mais fácil acreditar no fim do mundo que no fim do capitalismo”) precise de um complemento. Isso se dá também porque, para o 0,1% que controla o poder, é mais fácil aceitar a extinção do planeta do que o fim de suas regalias…

* * *

Como escapar de uma prisão invisível – ou seja, daquela que, estando inscrita na subjetividade social, é mais eficaz do que qualquer outra? Os privilegiados desejam o fim da Política como potência coletiva (daí seu permanente flerte com o fascismo). Mas por que – sendo tão minoritários – sua ideia de que as mudanças sistêmicas são inviáveis ainda prevalece?

Passadas quatro décadas da queda do “socialismo real”, perdura a ausência de um novo horizonte emancipatório. Por não se sentirem ameaçados, os rentistas responderam à crise iniciada em 2008 radicalizando seu projeto e sua cobiça. Os governos ocidentais nunca emitiram tanto dinheiro em favor dos mais ricos, nem atacaram tão ferozmente o Estado de bem-estar social. As megacorporações e fundos serviram-se da tecnologia não para reduzir o tempo de trabalho – mas para torná-lo mas intenso e desprotegido. A periferia foi submersa novamente na condição de semicolônia.

O déficit de projetos e consciência não está apenas no plano teórico. Espraia-se também no terreno da informação. Ao estabelecer uma aliança de facto com o capital financeiro, o governo brasileiro provavelmente ignora as consequências devastadoras deste movimento – e desconhece, em especial, as novas teorias que mostram como seria possível evitá-lo. Quando transferem seus bancos de dados para o Google ou a Meta, as universidades e o Judiciário do país parecem desconhecer que estão oferecendo seu bem mais precioso (conhecimento estratégico) em troca de espelhinhos.

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/para-escapar-da-prisao-invisivel/

Comente aqui