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Em defesa da festa nas arquibancadas

A experiência de milhares de pessoas assistindo futebol juntas é a essência do esporte. Após décadas sendo demonizadas como bandidos, a ausência das torcidas durante a pandemia enfatizou o triste vazio durante as partidas.

Por: Dan Hancox | Tradução: Pedro Silva | Crédito Foto: Alberto Gardin / NurPhoto via Getty Images. Torcedores do CA Osasuna comemoram um gol durante uma partida de futebol contra o CD Leganes em Leganes, Espanha, em 7 de abril de 2025.

“Futebol sem torcida não é nada.” Tornou-se uma máxima frequentemente repetida na era dos excessos hipercapitalistas do futebol. Proclamado décadas atrás por Jock Stein, emblemático ex-técnico do Celtic, o slogan foi recentemente atribuído erroneamente a Matt Busby, técnico do Manchester United na década de 1960, e posteriormente reapropriado por Keir Starmer em uma investida tipicamente pouco convincente para atrair o público.

Como os tempos mudaram. As elites reclamam das multidões no futebol desde o século XIV, quando Eduardo II emitiu uma proclamação proibindo o esporte, lamentando que “há muito barulho na cidade causado pela disputa por bolas, da qual muitos males podem surgir”. Dada a hegemonia global do futebol moderno no século XXI, parece extraordinário que, tão recentemente quanto 1985, o Sunday Times tenha publicado um editorial descrevendo o jogo como “um esporte da ralé, praticado em estádios da ralé e cada vez mais assistido pela ralé”. É um veredito ainda mais chocante quando se percebe que foi veiculado após o horrível incêndio no estádio Valley Parade, em Bradford City, onde cinquenta e seis torcedores perderam a vida.

Os fãs de futebol, como todos os grupos de pessoas, não são uniformemente bons, morais e educados. É verdade que, por um tempo, nas décadas de 1970 e 1980, manifestações racistas, a presença organizada da extrema direita e a violência casual tornaram-se incrivelmente comuns em — ou depois de — partidas de futebol (particularmente, mas não exclusivamente, na Inglaterra). Em 1983, a situação havia piorado tanto que os ministros do esporte do Conselho da Europa se reuniram para discutir como deter o que um deles chamou de “terrorismo no futebol”. A crise no esporte, àquela altura, já vinha se formando há algum tempo, ligada a pânicos morais mais amplos sobre a delinquência juvenil e a violência entre jovens do sexo masculino. Stuart Hall alertou, no final da década de 1970, sobre uma “espiral de amplificação”, na qual relatos exagerados da mídia exacerbavam os medos de problemas, que alimentava apelos por repressão policial e judicial e que, por sua vez, alimentava uma resposta mais conflitiva perante os torcedores, e assim por diante.

A violência hedonista e o machismo de uma pequena minoria deram à imprensa de direita britânica a oportunidade de usar a linguagem vociferante e desumanizante que refletia seus sentimentos sobre todas as formas de cultura jovem da classe trabalhadora: “TUMULTO! Os fãs do United são animais” (Sunday People, 1975); “SELVAGENS! ANIMAIS!” (Daily Mirror, 1975); “Esmague esses bandidos” (The Sun, 1976). Em uma mórbida prévia das tragédias que logo se seguiriam — mais notavelmente Hillsborough em 1989, onde uma grave negligência policial levou à morte de noventa e sete torcedores, mudando o jogo para sempre — o Daily Mirror fez a seguinte sugestão em 1977:

Outra ideia seria colocar essas pessoas em “complexos para hooligans” todos os sábados à tarde. […] Eles deveriam ser reunidos, de preferência em um local público. Assim, poderiam ser ridicularizados e expostos pelo que são — idiotas irracionais sem respeito pela propriedade ou bem-estar alheio. Deveríamos garantir que os tratamos como animais — pois seu comportamento prova que é isso que eles são.

Desde Hillsborough e as reformas que se seguiram, a experiência do público foi gentrificada a ponto de se tornar irreconhecível. Derrotistas lamentam que “o jogo acabou”, mas esse pessimismo não se reflete na realidade. Há muito o que lamentar sobre um esporte administrado por petro-Estados e autoridades caricaturalmente corruptas como a FIFA, mas o futebol também se abriu consideravelmente para mulheres, pessoas não-brancas e torcedores LGBTQIA+; a extrema direita foi em grande parte expulsa e forçada a buscar outras vias de recrutamento; e as brincadeiras, a catarse e a alegria coletiva ainda permanecem, mesmo que — infelizmente — tenham um preço mais alto.

A verdade do slogan cooptado por Jock Stein nunca foi tão bem ilustrada quanto durante a pandemia. Quando os esportes profissionais retornaram em junho de 2020, após um hiato de três meses, o fizeram sem torcida e a portas fechadas. Os alemães tinham um termo para essa visão enervante: geisterspiele, ou estádios fantasmas. O espetáculo normalmente estridente de uma partida disputada diante de 70.000 pessoas gritando sua paixão e fúria em uníssono foi reduzido a um balé televisionado estéril e quase silencioso. Tudo lembrava o filme experimental Dogville, de Lars von Trier, onde o cenário de uma pequena cidade é reduzido a contornos de giz em um piso preto, como uma produção teatral especialmente espartana.

As emissoras mergulhavam os espectadores ainda mais fundo nesse vale misterioso, introduzindo sons falsos de torcida. Era possível desligar essa trilha sonora artificial, mas restava o vazio de tudo, pancadas ocasionais da bola ou gritos distantes dos jogadores ecoando pelas vastas e brilhantes arenas da Premier League. Era uma surpresa o quão monótono tudo se tornava, como se você tivesse sintonizado uma sessão de treinamento no parque local por engano. A maioria dos torcedores de futebol que conheço não suportava o silêncio assustador e não assistia aos jogos. Parecia uma sátira um tanto exagerada do estado das coisas sob o capitalismo tardio: atomizados, presos em nossas casas, tecnologicamente conectados ao mundo exterior e cada vez mais alienados por causa disso.

Isso trouxe à tona o motivo pelo qual vamos aos jogos, e a qualquer outro evento esportivo, na verdade: não para ver melhor a ação (você tem uma visão muito melhor assistindo em uma grande tela plana em casa), mas para vivenciar a força emocionante e a solidariedade da torcida. Esse arrepio de excitação nervosa pode ser uma sensação física por si só, uma ansiosa descarga de adrenalina. Você sabe que a sobrecarga sensorial será quase avassaladora e, ao se aproximar do estádio, pode sentir suas ondas murmurantes de energia coletiva emanando de um epicentro, mesmo antes de ouvi-las ou vê-las, em ondulações e depois em ondas.

Assistindo ao Osasuna, time navarro, jogar na primeira divisão da Espanha em uma fria noite de janeiro, meu anfitrião, Natxo, me levou para ver aos “ultras” do clube, a maioria deles vestidos de preto, com bandeiras hasteadas como os manifestantes antifascistas que haviam marchado pelo centro de Pamplona no dia anterior. O estádio do Osasuna é conhecido por ter a melhor atmosfera da La Liga devido à sua intensidade e arquitetura “à inglesa”, com arquibancadas vertiginosamente íngremes que fazem você se sentir como se estivesse quase no topo do campo — e (raro na Espanha) uma nova forma de arquibancada em pé, onde cada portador de ingresso recebe um assento numerado, mas pode optar por ficar em pé, se desejar. Isso é chamado pelas autoridades de “em pé seguro”.

Felizmente, os detalhes mais sutis das intenções das autoridades não haviam chegado ao povo de Navarra, e ficamos em três fileiras, com a densidade de uma roda punk. Natxo abaixou o assento de plástico atrás de mim e subiu nele, apoiando-se no meu ombro para se equilibrar, enquanto outros se espalhavam e enchiam os corredores. Todos se amontoavam em busca de proximidade e solidariedade.

Ensinaram-me cânticos e hinos em espanhol e basco, todos cantados em um volume ensurdecedor, e quando o Rayo Vallecano, time adversário, marcou o primeiro gol, a música continuou sem a menor pausa para reclamações ou protestos — como se os acontecimentos em campo fossem totalmente alheios à nossa presença. Lembrei-me de outro cântico, popular em todo o mundo hispânico: “Alcohol, alcohol, alcohol, alcohol, alcohol/Hemos venido a emborracharnos y el resultado nos da igual”. O primeiro verso deve ser bastante claro; o segundo, fundamental, diz algo como “Não nos importamos com o resultado; viemos só para nos embebedar”.

Eu sugeriria ajustar a famosa frase de Jock Stein de acordo com as prioridades corretas: futebol sem torcedores não é nada — e o futebol realmente não importa.

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/04/em-defesa-da-festa-nas-arquibancadas/

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