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Para compreender a proposta do Populismo de Esquerda

Em seu novo livro, Chantall Mouffe percorre os processos históricos centrais de nosso tempo: crise da democracia, explosão das desigualdades e descoesão social. Revolta resultante, argumenta, pode alimentar transformações radicais

Por Felipe Calabrez, no Le Monde Diplomatique Brasil

Acaba de chegar ao Brasil, publicado pela Autonomia Literária, o novo livro de Chantal Mouffe, Por um populismo de esquerda. O título, provocador, é um chamado à ação política e soa especialmente provocativo no atual contexto brasileiro.

Já no início a autora apresenta seu diagnóstico central, cujo foco é, vale salientar desde logo, a Europa: a crise da formação hegemônica neoliberal produziu o momento populista que marca a atual conjuntura. Ter-se-ia aberto, assim, nesse momento, a possibilidade de construção de uma ordem mais democrática.

Mouffe resgata o diálogo crítico que vem travando com os partidos social democratas e socialistas da Europa desde obras anteriores. Em Hegemonia e estratégia socialista, criticou o que chamou de “essencialismo de classe”, visão que deriva as identidades políticas da posição dos agentes sociais nas relações de produção, deduzindo daí seus interesses. Essa visão teria impedido esses partidos de entender as demandas difusas que surgiram na sociedade. Naquele momento (anos 1980), a solução proposta por Mouffe, ancorada teoricamente no pós-estruturalismo, defendia a adoção de uma visão antiessencialista de classe, com foco na articulação discursiva de uma contra-hegemonia socialista. O livro foi escrito no momento de crise da formação hegemônica da social-democracia e clamava pela formação de uma política de esquerda capaz de rever a inflexível centralidade que até então se dava à “classe trabalhadora”, de forma a incorporar as novas demandas e os novos movimentos sociais.

Já em Sobre o político, Mouffe criticou o chamado “consenso no centro”. Sua tese é a de que a dimensão do político é ontologicamente antagônica, isto é, ele é marcado por valores e interesses inconciliáveis, do que advém a necessidade de criação de canais que transformem o antagonismo, no qual a relação nós versus eles é uma relação amigo/inimigo, em agonismo: uma relação nós/eles na qual as partes conflitantes reconhecem a legitimidade de seus oponentes ao mesmo tempo em que reconhecem não haver uma solução racional para o conflito. Aqui o “eles” não é inimigo, mas adversário. O que teria ocorrido na Europa, então, é que os partidos da social-democracia abandonaram essa noção adversarial de democracia em favor de um modelo consensual. O abandono de um modelo adversarial – ou confrontacional – eliminou a fronteira que delimita interesses e projetos opostos e produziu um modelo tecnocrático de política, no qual haveria uma “política correta”, técnica e racional, e, portanto, inescapável. Sempre situando suas análises “na conjuntura”, a autora referia-se ali à chamada terceira via teorizada por Antony Guiddens e adotada politicamente por Tony Blair.

Não se entende Por um populismo de esquerda sem esse retorno: o abandono de canais agonísticos capazes de expressar os conflitos e as divergências de visões e interesses – traço inerente ao político – e a adoção de um consenso no centro geraram o que a autora chama de pós-política, condição marcada pela ausência de propostas claramente alternativas/oposicionistas, o que gera, por sua vez, desinteresse pelo processo democrático e apatia política.

Essa apatia, no entanto, teria sido sacudida pela crise de 2008, que trouxe à tona as contradições do modelo neoliberal e gerou questionamentos a essa hegemonia por diversos movimentos, à esquerda e à direita, mas que possuem um traço em comum: São antissistema. Eis o que a autora entende por momento populista,[1] argumento central em Por um populismo de esquerda, contribuição também situada “na conjuntura”.

O atual momento populista seria então marcado pela crise da formação hegemônica neoliberal, algo como o interregnum de Gramsci, crise cuja solução ainda não está à vista. Tal situação tem levado à perda dos pilares do ideal democrático: igualdade e soberania popular. O que está em questão é um regime político caracterizado pela articulação entre liberalismo político e democracia, duas tradições diferentes e, na visão de Mouffe, nem sempre conciliáveis. Assim, rejeitando a visão de Habermas sobre a co-originalidade de princípios, que o leva a sustentar a tese da indissociabilidade do termo Estado democrático de direito, Mouffe fala, com C.B. Macpherson, em “articulação histórica contingente”. A articulação entre a lógica democrática e a lógica liberal, portanto, embora gere uma tensão, se faz necessária, o que exige uma negociação constante entre forças políticas situadas em determinadas configurações hegemônicas.

Pensar a democracia liberal, prossegue a autora, exige ainda que a situemos em um sistema econômico. No nosso caso, trata-se do neoliberalismo, uma formação social que articula de forma específica a democracia liberal com o capitalismo financeiro de forma a esvaziar o elemento “democracia” – valores igualitários e soberania popular – mantendo apenas seu aspecto liberal, isto é, existência de eleições livres e defesa dos direitos humanos. Na verdade, o que o neoliberalismo alça a valor central é o liberalismo econômico. E esse esvaziamento do elemento democrático eliminou os espaços agonísticos que permitiriam com que diferentes projetos de sociedade pudessem se confrontar. Eis a situação denominada por Mouffe como pós-democracia.

Essa situação teria borrado as fronteiras entre direita e esquerda e feito sucumbir os partidos social democratas, que, em nome da globalização, aceitaram os ditames do capitalismo financeiro e os limites impostos à intervenção estatal e às políticas redistributivas. Na pós-política, a política tornou-se mera gestão da ordem, seara reservada aos especialistas.

Ao lado do fenômeno acima descrito é preciso também ter em conta o processo de oligarquização das sociedades europeias ocidentais causado pela hipertrofia do sistema financeiro, o que produziu a ampliação dos níveis de desigualdade. Esse processo, combinado com os efeitos da desindustrialização e agravado pelas políticas de austeridade impostas como resposta à crise de 2008, acelerou o movimento de pauperização e precarização da classe média e contribuiu para a erosão dos ideais democráticos da soberania popular e da igualdade. Sem ter em conta esse movimento não conseguimos compreender o atual momento populista.

Esse momento populista é então caracterizado – e aqui peço licença ao leitor para reproduzir suas palavras – “pela emergência de múltiplas resistências contra um sistema político e econômico que é cada vez mais percebido como sendo controlado por elites privilegiadas surdas às demandas de outros grupos da sociedade” (p.40). O momento populista, portanto, faz emergirem movimentos que se propõem a devolver ao “povo” a voz que lhe teria sido tirada pelas elites. É terreno fértil para os discursos anti-establishment. Os exemplos citados por Mouffe são alguns movimentos da direita nacionalista dos anos 1990 e a emergência de movimentos de esquerda que, na esteira dos movimentos anti-globalização, se fortaleceram após 2008, como Os Indignados do M15 na Espanha e o Ocuppy nos EUA. Os impactos de tais movimentos, no entanto, teriam sido limitados por conta de sua recusa em jogar o jogo da política institucional. A exceção seria o grego Syriza, que desafiou a hegemonia neoliberal pelos caminhos da política parlamentar. Nesse caso, seu insucesso em romper com as políticas de austeridade se deve mais às limitações impostas pela adesão à União Europeia – ao que eu acrescentaria, à zona do Euro, que é o que efetivamente retira a soberania monetária de seus membros. Entre as apostas de Chantal Mouffe estão a experiência do Podemos na Espanha e a voz insurgente de Jeremy Corbyn dentro do Partido Trabalhista inglês.

E aqui chegamos ao ponto central do diagnóstico político do livro: a incapacidade, por parte dos partidos social democratas, de compreender o momento populista e de “reconhecer que muitas das demandas articuladas pelos partidos populistas de direita são democráticas, e uma resposta progressiva deve ser dada a eles. Muitas dessas demandas vêm de grupos que são os principais prejudicados pela globalização neoliberal e que não podem ser satisfeitas dentro do projeto neoliberal” (p.44).

Diante disso, adverte Mouffe, desqualificar tais demandas como “neofacistas” ou fruto de paixões irracionais pode ser moralmente confortável, mas é politicamente frágil.

Assim, urge construir uma resposta política de esquerda que, recusando-se a responsabilizar os eleitores pela forma como as demandas são articuladas, reconheça o núcleo democrático na origem de muitas dessas demandas e ofereça uma linguagem diferente, capaz de dirigir tais insatisfações para outro adversário, um outro “eles”, ao mesmo tempo em que reconstrua discursivamente um “nós”, o povo, estabelecendo uma cadeia de equivalências entre tais demandas (demandas da classe trabalhadora, dos imigrantes, da classe média precarizada, comunidade LGBT etc.) de forma a criar uma nova hegemonia capaz de radicalizar a democracia.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/por-um-populismo-de-esquerda-um-chamado-a-politica/

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