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Aldeias na reclusão: Vírus e cerco à vida indígena

Relatos de um mundo sitiado. Latifúndios e missões evangélicas acossam territórios ancestrais. Queimadas tornam a vida insuportável. Covid e dependência das cidades apavoram — mas surgem ações para autonomia na produção de alimentos

Por Angela Pappiani, com relatos de Uraan Suruí (povo Paiter Suruí/RO) e Elly Mairu Karajá (povo Iny Karajá/TO)

A pandemia de coronavírus no Brasil já tirou a vida de mais de 160 mil pessoas. Apesar do ritmo de propagação e do número de mortes terem caído, o vírus continua entre nós, segue contaminando muitas pessoas nas cidades e nas aldeias e fazendo vítimas para além do efeito direto da doença, pois o suposto combate à pandemia tem permitido desvios de verbas, corrupção e ações populistas. E agora, com eleições, o uso político da grave crise sanitária e econômica promete trazer personagens e propostas na contramão das necessidades reais da população, da afirmação da democracia e do direito.

Os povos indígenas acompanham tudo de suas aldeias, muitas vezes perdidos entre fatos e notícias falsas, tentando enxergar as armadilhas, enfrentando dificuldades e sérias ameaças a seus direitos.

O depoimento a seguir é de um jovem Paiter Suruí, povo que teve o primeiro contato com os yara – os não indígenas – durante a ditadura militar. A política de ocupação da Amazônia esquartejou e loteou as florestas do Estado de Rondônia, levando colonos do sul do país para ocuparem a terra com a obrigação de derrubarem a mata, o que abriu caminho para mais violência, grileiros e latifúndios.

Os conflitos armados e epidemias de sarampo e tuberculose quase exterminaram os povos que ali viviam. Além dos Paiter Suruí, Cinta-larga, Zoró, Arara e Gavião que ocupavam esse mesmo território, no estado todo ainda vivem outros 24 povos indígenas. O livro “Histórias do começo e do fim do mundo – o contato do povo Paiter Suruí” traz depoimentos de 17 anciãos sobreviventes desse período e ajuda a compreender esse momento de nossa história (Baixe o livro aqui).

Cerca de 50 anos depois, o estado de Rondônia está quase totalmente ocupado por pastos e monoculturas, restando biodiversidade somente nos territórios indígenas e nas poucas áreas de proteção ambiental que sobreviveram e que agora voltam a ser atacadas. Nessas áreas ainda vivem povos isolados. No último dia 10 de setembro, um episódio trágico de conflito envolvendo um desses grupos sem contato levou à morte um grande defensor dos povos indígenas, o indigenista Rieli Franciscato. Acontecimento que revela o desmonte planejado da Funai e em especial das equipes de proteção aos isolados que só se mantêm graças à abnegação e à paixão de alguns poucos funcionários que se arriscam à morte.

Rondônia também é território disputado por garimpos ilegais de ouro e diamantes. O Estado brasileiro, que deveria cumprir a Constituição e garantir proteção aos territórios indígenas, às populações tradicionais e às poucas áreas de floresta que restam, promove a falência de todas as instituições criadas para esse fim, retira recursos e pessoal, impede ações de vigilância e a punição aos crimes ambientais, traz um discurso explícito que incentiva a ocupação e a exploração desses patrimônios, aliado a teorias de conspiração internacional para tomada da Amazônia. Um filme que já assistimos na década de 1970.

Os povos indígenas nas aldeias, e os que ainda se isolam do contato com nossa sociedade, estão totalmente expostos à ação dos invasores e da investida dos aliciadores que conseguem cooptar alguns membros dessas comunidades. E agora, se vêm cercados por uma nova e ameaçadora epidemia que volta a assombrar os mais velhos, que já viveram na pele e ainda guardam na memória os efeitos de outras epidemias e a perda de dezenas de parentes há tão pouco tempo atrás.

O depoimento de Uraan Suruí, jovem liderança da aldeia linha 14, da Terra Indígena 7 de setembro, em Rondônia, expressa a preocupação com a dependência de seu povo dos alimentos e medicamentos da cidade, com a pressão das igrejas evangélicas que desestabilizam as comunidades, com a necessidade de organização e união entre os povos indígenas para enfrentamento das ameaças aos direitos garantidos na Constituição.

“A gente está tentando reverter a situação da covid-19 aqui no território. Essa situação chegou de surpresa, é tudo muito novo. Cada aldeia tem uma situação diferente. Algumas se isolaram mesmo, outras não, muitos parentes aderiram, mas as saídas facilitaram a entrada da covid. Não temos como ficar totalmente isolados por tanto tempo, é difícil uma ruptura dessas.

“Aqui na minha aldeia estou controlando o máximo que posso e não tivemos nenhum caso confirmado até agora. Conversamos muito com a comunidade que é a maior da terra Suruí, porque se acontecer o contágio aqui, a situação pode ser muito grave. Já houve mortes em outras aldeias.

“Temos discutido muito sobre um ponto importante que é a dependência. Por que tanta dependência da cidade? O alimento, a gente deveria produzir na aldeia e não depender do mercado. Essa emergência nos mostrou que não estávamos preparados, por causa da dependência. Criamos grupos para discutir a pandemia e falamos sobre isso. Vai ser um novo cenário agora com iniciativa de diminuir a dependência da cidade.

O fortalecimento da tradição, do pensamento, das ideais, do conhecimento dos mais velhos é um ponto crucial para nossa existência. Meu pai e os irmãos dele têm discutido isso. Eles dizem: quando a gente fala da tradição, traz para o pensamento dos jovens que é uma coisa antiga, ultrapassada. Não é antiga, ultrapassada, mas aquilo que te sustenta, te dá base para enfrentar qualquer desafio, onde vai se apegar para ser forte. Se não der valor ao que você é, não tem segurança.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/aldeias-na-reclusao-virus-e-cerco-a-vida-indigena/

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