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Quatro chaves para pensar a primavera chilena

Como o projeto neoliberal e a ultradireita voltaram a ser batidos na América do Sul. Que o resultado diz à esquerda brasileira. Quais os obstáculos à frente e as chances uma mudança real, a partir da Constituinte

Por Antonio Martins

Quem crê que há, na cena internacional, uma tendência irresistível à direita; e que, portanto, a paralisia da oposição brasileira diante de Bolsonaro é compreensível, precisa examinar com atenção as urnas e a ruas em festa, em Santiago. Uma semana depois dos bolivianos e um ano depois dos argentinos, foi a vez dos chilenos rechaçarem nas urnas as duas facções da direita – a ultracapitalista e a protofascista. A convocação de uma Constituinte exclusiva, a ser eleita em seis meses, não expressa apenas o repúdio à Constituição imposta, em 1980, pela ditadura militar liderada pelo general Pinochet. Marca também o rechaço ao neoliberalismo, esta espécie de ditadura sem disfarces do capital que Pinochet adotou sob assistência direta de Milton Friedman, Friedrick Hayek e da “escola de Chicago”, antes mesmo de Margareth Thatcher e Ronald Reagan.

Porque de toda a longa série de revoltas populares que marcaram 2019, a chilena – origem do plebiscito de ontem – foi ao mesmo tempo a mais persistente, a mais multitudinária e a de sentido político mais claro. Nascido de um motim secundarista contra o aumento das passagens de metrô, o levante mirou aos poucos o conjunto de políticas privatistas e de mercantilização da vida que infernizam a população. Voltou-se contra a Previdência privada, cara e que oferece aposentadorias miseráveis aos idosos. Questionou o custo exorbitante do ensino, o endividamento dos estudantes, a tentativa de entregar às corporações o abastecimento de água. Apontou a desigualdade – que empobrece as maiorias e achata as classes médias – como principal problema do país.

Se todos estes problemas afligem também os brasileiros, por que ainda mantém popularidade, aqui, um presidente que age incessantemente para agravar os dramas? Sem a menor pretensão de apontar respostas definitivas, este texto formula quatro hipóteses. Estão relacionadas, em essência, a um fenômeno central. A ultra-institucionalização da esquerda brasileira tornou-a insensível aos dramas das maiorias, incapaz de atuar em conjunto com elas e mesmo de analisar o país em seu conjunto e de formular estratégicas e táticas que coloquem em primeiro plano a transformação da sociedade. Quase toda ação política reduziu-se ao eleitoralismo – a manter espaços nos governos e parlamentos. E esta castração de horizontes utópicos produz, inevitavelmente, o desencanto da população e um salve-se quem puder das supostas lideranças. À ausência de um projeto, cada uma busca defender, acima de tudo, seu patrimônio político pessoal, o que só pode gerar descoordenação, caos e incapacidade de incidir na conjuntura.

O caso chileno é, em vasta medida, uma antítese. Os protagonistas foram as ruas, não os gabinetes. Ao contrário do que ocorreu no Brasil em 2013, estas mesmas ruas encontraram aliados na institucionalidade. Também puderam contar – ainda mais importante – com organizações de movimento social que não estavam politicamente subordinadas ao governo.

Isso permitiu um feito essencial: assumir a condição de polo anti-establishment, que em outros países é frequentemente oferecido à ultradireita e suas máscaras. Dadas estas condições, inverteram-se a correlação de forças e o sentido dos acontecimentos. Além de terem conquistado a Constituinte, os chilenos viverão, em 2021, eleições presidenciais antes inimagináveis. Os dois candidatos favoritos são, hoje, um prefeito do Partido Comunista e um membro do partido de direita que assusta seus correligionários ao dizer que se converteu à social-democracia…

Nada está decidido e o futuro é, como se verá, cheio de obstáculos. Mas o experimento chileno aponta claramente caminhos para uma esquerda interessada em olhar para o futuro – não em se lamentar pelo passado perdido. Por isso, vale a pena estudá-lo em profundidade.

I. As ruas podem voltar a ser vermelhas

Mais de sete anos depois, as “jornadas de junho” de 2013 são ainda um espinho cravado na garganta das esquerdas brasileiras. Os movimentos que as lideraram veem-nas como o instante em foi possível construir um novo país, e em que esta chance foi frustrada pelo apego ao poder do PT e de seus aliados. A esquerda institucional, em sua maioria, enxerga as manifestações como a largada para uma conspiração de direita que terminaria levando ao golpe de 2016 e aos retrocessos que se estendem até hoje. Poucos veem, em 2013, o que talvez de fato seja: parte de um furacão global, desencadeado pela crise financeira de 2008, incompreendido pela maior parte das forças políticas e, por isso, de resultados ainda imprevisíveis.

Na crise de 2008, os poderes globais salvaram a oligarquia financeira, transferiram as perdas para as sociedades e, ao fazê-lo, lançaram um desafio global. As primeiras revoltas populares que eclodiram em resposta foram as da Primavera Árabe de 2011, e terminaram quase sempre em tragédia. Egito, onde surgiu uma ditadura mais sanguinária que a anterior, em parte devido à precipitação de setores populares artificialmente radicalizados. Líbia e Síria, onde a revolta foi instrumentalizada pelos governos ocidentais, interessados na destruição dos Estados nacionais – o que alcançaram, no primeiro caso. Tunísia, cuja democratização de fachada produziu a manutenção das velhas políticas, o empobrecimento da população e uma frustração dos pobres que forneceu, ao Exército Islâmico, o maior número de combatentes vindos de um único país.

Em outro grupo de nações – onde se destacam a Ucrânia e o Brasil – deu-se algo ainda mais grave. Estavam no governo forças políticas que, por motivos diversos, incomodavam o establishment ocidental. Veio a revolta. Interessados em manter o controle do aparato estatal, os partidos no governo acomodaram-se e tentaram proteger-se apelando para a inércia do sistema político. Esta resposta sem coragem abriu, à ultradireita, a possibilidade de assumir a máscara de anti-establishment e de produzir movimentos reacionários vitoriosos.

Finalmente, houve países em que, a médio prazo, o descontentamento produziu resultados positivos. Na Espanha, os Indignados foram a base tanto para o surgimento do Podemos como para a relativa guinada à esquerda do Partido Socialista, que hoje compõem o governo. Nos EUA, o Occupy Wall Street lanço a consigna global do “somos 99%”. Também iniciou um movimento político-cultural de transformações que turbinou a recuperação do conceito de “socialismo”, as candidaturas de Bernie Sanders, o Black Lives Matter e a emergência de lideranças políticas nacionais anticapitalistas, como Alexandria Ocasio-Cortez.

Mas é provável que em nenhum país a virada à esquerda tenha sido tão profunda quanto no Chile. Lá ampliava-se, desde o golpe militar de 1973, o fosso de desigualdade. Lá, os governos de que a esquerda participou foram, desde o início, coalizões social-liberais (como se, no Brasil, PT e PSDB houvessem se coligado) – sem capacidade, portanto, de cativar os movimentos sociais. Lá, este mesmo amálgama (chamado de Concertación) foi afastado do poder em 2017, com a vitória de Sebastián Piñera, um bilionário claramente identificado com a direita.

Sob este governo, os passos da revolta iniciada em setembro de 2019 foram semelhantes ao 2013 brasileiro até nos detalhes. O estopim foi o aumento das passagens de transporte público – vinte centavos aqui, trinta pesos lá. A repressão policial (que, herança da brutalidade da ditadura, provocou 30 mortes e centenas de agressões e de estupros, nas delegacias de polícia) só foi capaz de multiplicar o alcance dos protestos e a solidariedade da população. Em poucos dias, a reivindicação por serviços públicos de qualidade alargou-se para outros temas. Em outubro, nas cordas, diante do fracasso da brutalidade, o governo viu-se obrigado a propor o plebiscito sobre a Constituinte, que jogou a luta política em novo patamar e que agora expõe o neoliberalismo a um xeque inédito.

As revoltas pós-2008, portanto, não têm dono. Num mundo de devastação social crescente, é provável que se tornem parte da paisagem política. Que cabe à esquerda: exorcizá-las ou compreendê-las?

II. Procura-se uma esquerda antissistema

Por muitos anos, a correlação de forças – um conceito de enorme importância para a ação política – foi utilizado no Brasil de maneira estática e mecânica. Lula assumiu a presidência, em 2002, com um Congresso conservador, uma mídia hostil e uma oligarquia financeira capaz de projetar seus tentáculos por todos os poderes. Seu governo não podia, é claro, lançar-se de início contra todas estas potências.

Mas a habilidade usada para neutralizá-las foi se convertendo, aos poucos, na crença de que esta acomodação seria eterna. O que era uma necessidade momentânea – fazer acordos pontuais com as elites de dominação centenária – passou, pouco a pouco, a ser visto como virtude. As jornadas de 2013 foram o sinal. Se estivesse de fato disposto a transformar o país, o governo poderia ter-se apoiado nelas, revisto os velhos pactos e aproveitado a nova correlação de forças para avançar. Em vez disso, vieram dois acordos fatais. Ainda em junho de 2013, Dilma Rousseff desistiu da Constituinte – depois de ter acenado com ela – para acertar-se com a velha política do Congresso. Em dezembro de 2014, poucos dias depois de reeleita, ela praticou estelionato eleitoral e traiu os eleitores para tentar um pacto com a oligarquia financeira. As concessões feitas a esta classe devastaram os mais pobres. Sentindo-se traídos, eles permaneceriam indiferentes diante de todo o processo que levou ao golpe de 2016.

Três fatores criaram, no Chile, condições para uma saída oposta. Num país marcado pelo conservadorismo (com poucas emendas, a Constituição de Pinochet permanece ainda hoje; o direito ao divórcio só foi estabelecido em 2014, e com muitas restrições), duas rebeliões jovens (“dos pinguins”) sacudiram a sociedade, entre 2006 e 2008.

No plano político-institucional, a percepção de que os partidos da Concertación eram incapazes de impulsionar uma mudança real levou ao surgimento, já em 2016, da Frente Ampla. Este conjunto de organizações comunistas, autonomistas e feministas – pequenas, mas em permanente diálogo com a sociedade – foi capaz, já em 2017, de lançar uma candidata presidencial. Beatriz Sánchez obteve, então, 20,3% dos votos. Por pouco, não chegou ao segundo turno.

Em 2019, a Frente Ampla permitiu que os protestos populares tivessem uma voz e, ao fim, um interlocutor, no meio político-institucional. Além disso, surgiram então, num movimento social não atrelado ao governo, articulações como a Plataforma de Unidade Social, que permitiram sustentar a revolta; evoluir a uma greve geral; enfrentar uma conjuntura em que as forças de repressão produziram 30 mortes, centenas de pessoas (na maioria jovens) agredidas e ou estupradas pela polícia; dezenas de outras cegadas por disparos de balas de borracha na altura dos olhos.

A articulação surtiu efeito. No início de novembro, depois de dois meses de protestos e resistência popular, o sistema político foi obrigado a ceder. Convocou-se o plebiscito, ainda que com limitações que se verá adiante. Boa parte delas pode virar letra morta, se a mobilização seguir intensa.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/quatro-chaves-para-enxergar-a-primavera-chilena/

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